Aproveitando a privacidade momentânea, Letícia levantou da cama e vestiu um short largo. Sem motivo aparente, tapou a boca e começou a rir. Margarida foi contagiada pelo riso e perguntou:
- O que aconteceu?
- Você acredita que eu tava pensando se já tinha escovado os dentes?
- Alguns hábitos nunca somem, né? Inclusive, eu não escovei os dentes ainda!
A psicóloga se levantou e foi correndo para o banheiro.
Raul entrou no quarto dando bom dia, procurou um local no chão que tivesse uma aparência receptiva, não encontrou, empurrou um pé de tênis e, um pouco constrangido e desconfortável, afastou algumas das roupas espalhadas pelo chão e se sentou. Rogério chegou logo em seguida, carregando duas das cadeiras da cozinha, olhou para o chão e ergueu as sobrancelhas, impressionado com a falta de área livre em um quar
Por impulso, Margarida levou a mão à chave, pronta para destrancar a porta, mas sentiu outra mão se sobrepor à sua. Rogério estava ao seu lado e movimentava a cabeça de um lado para o outro, indicando que ela não deveria abrir a porta. Entendendo o gesto, Margarida soltou a chave e perguntou:- Quem é?Um rumor se seguiu à pergunta e, Margarida e Rogério, constataram que havia mais de uma pessoa do outro lado da porta. Jotapê e Emerson, curiosos, também se aproximaram. Apenas Letícia permanecera no quarto.Após alguns segundos o rumor de conversas silenciou e uma voz feminina se destacou:- Aqui é a Carol, eu sou do curso de Jornalismo, mas o Emerson me conhece, aconteceu uma coisa e me pediram pra vir buscar vocês. É urgente.Com um aceno de cabeça, Emerson confirmou conhecer Carol e Margarida levou novamente a mão at&
Deitado no sofá do alojamento de Margarida, Emerson sentia a realidade voltando, lentamente. “A desolação”, pensava consigo mesmo, utilizando o nome utilizado para o vazio completo e a vontade de autodestruição que os bonecos de pano sentiam em momentos de emoções extremas. “Fazia tempo que eu não me sentia assim, achei que nunca mais me sentiria assim.” O boneco mantinha a mão esquerda em frente ao rosto e a olhava fixamente enquanto movia os dedos um por um. ”Eu achei que se eu tivesse controle suficiente sobre meu corpo, jamais me sentiria novamente assim. E eu nunca mais quero me sentir assim.”Raul e Margarida não tinham voltado. As pessoas não sabiam como lidar com um corpo enforcado em uma árvore já que as autoridades públicas como a polícia e o corpo de bombeiros pareciam estar extintos e eles queriam a
Na universidade, uma semana após a sequência de mortes brutais, as pessoas ainda tentavam se organizar, mas Letícia chegara à conclusão de que ela não servia para aquilo, não participava mais das reuniões e mal se arriscava a sair de casa. Mesmo sem sua permissão, percebia tudo acontecendo rápido demais. Deitada na cama, conseguia ouvir a conversa entre Margarida e Jotapê, na sala e ele também planejava ir embora. A boneca não queria perder mais um amigo, mas não sabia como impedir e não tinha forças. O passado se repetia constantemente em sua mente, drenando as energias:Letícia sentia febre e dizia que era apenas um resfriado, em uma negação tola, já que se lembrava das coceiras que sentira nas canelas no dia anterior. Interrompia o contato com a família, percebia os amigos se tornando distantes. A dor na axila, pesco
Organizar a viagem não era uma tarefa simples e não podia ser feita de qualquer jeito. O grupo precisou de pouco tempo discutindo ao redor da mesa para perceber isso. Não podiam simplesmente partir, tinham que analisar e tentar prever todos os obstáculos mais prováveis que encontrariam pela jornada e se preparar para o máximo número de situações possíveis. Infelizmente, a pessoa mais apta para esse tipo de tarefa era Emerson.A primeira questão levantada, e mais óbvia, foi sobre o meio de transporte que utilizariam. Nenhum deles tinha veículo particular e, apesar das ruas estarem repletas de carros e motos abandonados, teriam de aprender a burlar o leitor de impressão digital para abrir e ligar o automóvel. Mas mesmo que conseguissem, não poderiam garantir que cada veículo percorresse uma grande distância. Pelo que tinham visto, das informaç&otil
Depois do ritual fracassado de Brenda, outros três rituais foram realizados, sem alarde, em espaços discretos e bem protegidos. Outros cinco habitantes da cidade universitária pereceram da peste, sem desejar participar da transferência de alma. A praga parecia ter saciado sua fome e ninguém mais adoecia. De acordo com as notícias recebidas de fora do Campus, parecia ser uma tendência nacional, ou pelo menos, era isso que as pessoas de diferentes localidades do país diziam.O desafio, daquele ponto em diante, seria começar a construir uma nova estrutura de poder e governança que tratasse com igualdade todos os sobreviventes, sem que houvesse discriminação aos que optaram se tornar bonecos de pano para sobreviver. Desejar igualdade e aceitação não era utopia, mas o desejo de milhares de pessoas espalhadas pelo território nacional. O que ninguém sabia
Jotapê estava sentado com os cotovelos apoiados na mesa. Ao seu redor, pedaços de linha de costura, pequenos retalhos de tecido e muito papel alumínio picotado. O homem troncudo aguardava ansioso, enquanto Letícia andava de um lado para o outro da sala com o celular nas mãos:- Vamos, testa logo! Você só precisa desbloquear a tela, não precisa fazer mais nada!A boneca de pano sabia que era só um teste, que ela não precisava fazer nada além de desbloquear a tela e que não leria nenhuma mensagem indesejada por acidente, o aparelho em mãos não era nem o dela, mas sim do artesão. A insegurança era baseada em uma expectativa irracional: Se o teste produzisse resultado positivo, ela não teria mais nenhuma desculpa que a impedisse de ligar seu aparelho e procurar notícias sobre sua família.Margarida saiu do quarto, experimentava, depois d
Depois de três dias de preparativos, os quatro injustiçados tinham conseguido se preparar para a viagem. Jotapê havia feito algumas melhorias no corpo dos bonecos, na tentativa de deixa-los mais resistentes e preparados para a viagem. Margarida tinha inventariado uma quantidade de alimentos que fosse o suficiente para durar alguns dias, caso não encontrassem nenhum ponto de abastecimento ainda com estoque e Raul, depois de muitas discussões para convencer os amigos de que era capaz de se manter em segurança se saísse de casa sozinho, havia partido em busca de duas carretas atreláveis às bicicletas de Margarida e Jotapê. Esses equipamentos eram muito práticos e fáceis de controlar, possuíam baterias e um motor leve que se adaptava constantemente à velocidade do ciclista, eliminando o peso da carga e facilitando na frenagem. Era a solução ideal para transportar os bonecos de pano e a bagagem. Na verdade, o intuito de Raul nunca fora sair para procurar as carroça
O grupo se entreolhou. À distância que estavam, eles não conseguiram definir se a figura parada adiante era uma pessoa de carne e osso ou um boneco de pano. A pele parecia humana, mas a forma como a figura se movimentava não parecia natural.Percebendo a insegurança do grupo, o homem falou, com uma voz anasalada:- Não vou lhes fazer mal. Na verdade, é o oposto, eu quero lhes fazer bem.Margarida pedalou algumas vezes, aproximando-se, mas levou a bicicleta até o meio fio, antes de parar completamente e descer. Parecia estar mais confiante que seus amigos, mas o tom de desconfiança em sua voz era óbvio:- Quem é você?Sem responder, o homem acenou mais duas vezes, uma na direção de Letícia, convidando-a a descer do reboque e se aproximar, e outra na direção de Jotapê, que ainda estava alguns metros atrás.A f