Raul foi o primeiro a acordar. Pela iluminação pálida e a suave neblina que podia ver pela janela do quarto, sabia que ainda deveria ser bem cedo, antes de sete horas da manhã, mas não tinha sono o suficiente para voltar a dormir. Sem ter o que fazer, o orangotango desejou que tivesse lembrado se de colocar, pelo menos, um livro na mochila.
Decidiu que fuçaria a mochila de Letícia e de Margarida em busca de algum passatempo e levantou da cama. Foi quando ouviu, do lado de fora do quarto, o barulho de uma porta se fechando.
Como na noite anterior, o orangotango correu para os corredores do motel e não viu ninguém. Dessa vez, lembrou-se de checar o interior do carro, checando a janela. Mas, de qualquer forma, não estava mais preocupado. Se alguém quisesse fazer mal ao grupo, teria aproveitado a noite, momento em que eles estavam mais vulneráveis. Se a pessoa se manteve escondida, é
Enquanto esperava o irmão, com os cotovelos apoiados no bagageiro, Letícia se deixava consumir pela ansiedade. ‘E se ele não me reconhecer? E se, por algum motivo, tiver medo de mim?’, pensava. Mas, do lado de dentro do Hotel Conforto, o jovem também se sentia ansioso e, por isso, apressava a idosa: - Vamos esperar lá fora! Eu aposto que eles já chegaram! Percebendo que não conseguiria acalmar o adolescente, Ornella se levantou e estendeu uma das mãos a Vinicius, que segurou, automaticamente, e assim, de mãos dadas, a dupla saiu do hotel. Quando viu a porta de vidro se abrir e o irmão emergir do ambiente mais escuro, foi como se um raio atingisse Letícia. A boneca não teve presença de espírito para reagir, mas, diferentemente da dela, a ansiedade do irmão se tornou propulsão e o adolescente soltou a mão da idosa, cruzando a distância que o separava de sua irmã em um piscar de olhos. Num primeiro momento, o irmão enxergou a boneca como ela sem
Com os implantes feitos nas pontas dos dedos, Letícia e Raul perceberam que conseguiam digitar no computador. Trocar e-mails virara uma forma muito mais conveniente de conversarem do que a falta de privacidade ao usar um celular alheio. Letícia escrevia: Oiê! Não acredito que você não tem notícia de mais ninguém além de mim! Eu, por outro lado, estou bem atualizada! Vou tentar te contar tudo. Margarida ficou aqui no hotel mesmo e você não vai acreditar! Ela tá lecionando português para a molecada toda. Tudo começou com ela tirando sarro da forma que o Vini escreve, aliás, você já viu como meu irmão escreve tudo errado? Ela tá feliz e, eu acho, mas não tenho certeza, que o La Croix apareceu no quarto dela um dia
Em seus vinte e três anos, Letícia tinha passado por um bocado de situações péssimas e, em cada uma delas, vivenciara a certeza de que jamais se recuperaria de tamanha tristeza, mágoa, decepção ou ressentimento.O primeiro ferimento profundo do qual se lembrava, foi a morte de sua avó Lídia. Na época, Letícia tinha doze anos de idade e aquele foi seu primeiro contato com o fato de que a existência é frágil e pode acabar a qualquer momento. Não de maneira ordeira e previsível, mas de maneira imbecil e absurda. Depois da morte da avó Lídia, a neta tinha certeza de que algum dia se deitaria pra dormir e jamais acordaria, de que escorregaria em uma escada qualquer e quebraria o pescoço ou que um carro desgovernado a encontraria na calçada para imprimi-la no muro mais próximo. Tinha medo de morrer. Sentia saudades da avó.
Brenda sentia febre. Chegou a ter esperança de ser imune à doença. A probabilidade era baixa, mas existia. Todos no campus já tinham como fato garantido a imunidade de Rogério. Todos os seus colegas de casa tinham sido contaminados, mas ele, apesar de dizer ter se sentido ‘esquisito’ por alguns dias, não desenvolveu nenhum sintoma real. Quando Letícia ficou doente, Brenda teve certeza que logo ficaria também. Não sentiu nada nos primeiros dias. Mas logo agora que ela tinha começado a criar expectativas de que não adoeceria, os sintomas começaram a aparecer. A estudante entrou no quarto, que dividia com Letícia, e trancou a porta. Ainda não estava preparada para o que viria a seguir. Precisaria de uns dias para se preparar, mas ela pensa
A doença de Brenda ainda estava no estágio inicial e, por alguns dias, ela conseguiria viver normalmente, apesar da dor de cabeça e dos calafrios. Somente quando começassem a surgir os caroços negros nas axilas, pescoço e virilha é que ela deixaria seu corpo e participaria do ritual. Por isso a estudante tinha decidido que não procuraria os artesãos naquele dia. Antes de começar a pensar em seu futuro como boneca de pano, ela ainda precisava terminar algumas coisas com seu corpo humano. As amigas cursavam jornalismo e, apesar de as aulas terem sido suspensas alguns meses atrás, quando da tardia constatação da gravidade da doença, elas continuavam com a ideia de tentar escrever um artigo sobre os fatores que convergiram em um caos social tão
Nos primeiros meses do surto de contágio da peste, não existia alternativa, a chance de sobrevivência era menor que cinco por cento. Quando a esperança veio, não na forma de um tratamento desenvolvido por cientistas de países ricos, como todos esperavam, mas sendo um ritual de magia elaborado por uma mística haitiana, as crenças religiosas se tornaram fator decisivo na escolha pela vida ou pela morte. A partir do momento em que se adoecia, e como veremos, quase todo mundo adoeceu, havia apenas três opções:passar por todos os estágios da doença, aproveitando os dias de sintomas suaves para buscar redenção, resolver coisas mal acabadas e se despedir de amigos e familiares e nos últimos, desejar que os analgésicos fossem o suficiente para aliviar a dor excruciante;passar pelos est&aa
Por ser um ambiente frequentado por pessoas com acesso amplo à informação e com capacidade intelectual para proceder de acordo com todas as exigências sanitárias, no início da propagação da superpeste, o ambiente acadêmico manteve-se em funcionamento. Quando a disseminação da doença se mostrou incontrolável, a universidade decidiu interromper as funções, mas era tarde demais para exigir que os estudantes abrigados nas moradias universitárias retornassem para a casa de seus familiares. Nem toda a arrogância e sentimento de superioridade do mundo acadêmico foram o suficiente para impedir que a peste passasse a frequentar a universidade. As medidas profiláticas se tornaram mais rígidas e o controle de zoonose começou a visitar residência
Emerson caminhava sem pressa pelos corredores da universidade. Chegaria atrasado á reunião, mas isso não era um problema, o papel dos bonecos de pano na atribuição de atividades era tão insignificante que, mesmo as ideias dele ainda sendo muito consideradas por todas as pessoas, a reunião ocorreria tranquilamente sem ele. Para o historiador, o mais importante era aproveitar cada instante de caminhada para aumentar o controle sobre seu corpo.Quando dobrou o corredor e ouviu o barulho suave e ritmado atrás de si, soube que outro boneco de pano se esforçava para andar rápido e que, provavelmente, não teria coordenação motora para parar antes da colisão. No mesmo instante que virou o corpo para ver se conhecia o boneco, seus corpos se chocaram com maciez e ele foi lançado ao chão, quicando duas vezes antes de parar. ‘Pelo menos o chão est