Boneca de Pano
Boneca de Pano
Por: Evandro R Saracino
Prólogo

Em seus vinte e três anos, Letícia tinha passado por um bocado de situações péssimas e, em cada uma delas, vivenciara a certeza de que jamais se recuperaria de tamanha tristeza, mágoa, decepção ou ressentimento.

O primeiro ferimento profundo do qual se lembrava, foi a morte de sua avó Lídia. Na época, Letícia tinha doze anos de idade e aquele foi seu primeiro contato com o fato de que a existência é frágil e pode acabar a qualquer momento. Não de maneira ordeira e previsível, mas de maneira imbecil e absurda. Depois da morte da avó Lídia, a neta tinha certeza de que algum dia se deitaria pra dormir e jamais acordaria, de que escorregaria em uma escada qualquer e quebraria o pescoço ou que um carro desgovernado a encontraria na calçada para imprimi-la no muro mais próximo. Tinha medo de morrer. Sentia saudades da avó.

            A descoberta de que seu namorado do ensino médio estava apaixonado por outra pessoa do mesmo círculo de amizades foi o segundo ferimento profundo. Esse ferimento era completamente diferente da morte. Apesar de a morte sempre marcar, como quando seu avô morrera, seis meses depois da avó, era um ferimento que já estava em uma área de familiaridade. Aqueles sentimentos eram todos novos. Antes ela sentia medo de morrer, mas nas semanas que sucederam o término do namoro, a morte parecia atraente. Mágoa, rancor, vergonha, abandono, ciúmes e inveja. A convergência de tantos sentimentos pesados parecia nunca ir embora.

            Mas nenhuma dessas ocasiões serviu como preparação para o que Letícia vivia naquele instante. Ninguém, no mundo todo, estava preparado para aquilo.

            Rogério, um dos poucos sobreviventes, caminhava lentamente para o centro do ginásio poliesportivo da universidade. A pilha de corpos ali amontoada, misturada com cadernos, cadeiras e outros inflamáveis, era impressionante. E mesmo assim, o andar do universitário era seguro, como se ele já tivesse se habituado a monstruosidade. Rogério se agachou, pegou um caderno da pilha, tateou os bolsos da calça jeans, procurando o isqueiro e não achou. Sem a mesma solenidade e frieza, outro universitário, Marcos, chegou correndo e entregou um isqueiro a Rogério que, finalmente pôde atear fogo ao caderno e jogá-lo ao centro do amontoado de corpos.

            Letícia assistia ao crematório de seu próprio corpo.

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