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2. O fim da humanidade

            A doença de Brenda ainda estava no estágio inicial e, por alguns dias, ela conseguiria viver normalmente, apesar da dor de cabeça e dos calafrios. Somente quando começassem a surgir os caroços negros nas axilas, pescoço e virilha é que ela deixaria seu corpo e participaria do ritual. Por isso a estudante tinha decidido que não procuraria os artesãos naquele dia. Antes de começar a pensar em seu futuro como boneca de pano, ela ainda precisava terminar algumas coisas com seu corpo humano.

            As amigas cursavam jornalismo e, apesar de as aulas terem sido suspensas alguns meses atrás, quando da tardia constatação da gravidade da doença, elas continuavam com a ideia de tentar escrever um artigo sobre os fatores que convergiram em um caos social tão rápido, mas Letícia descobriu que, por algum motivo, nenhuma tecnologia parecia ouvir sua voz e, portanto, nada do que falava era captado pelo gravador ou pelo processador de texto. Seus novos dedos ainda não tinham habilidade e coordenação o suficiente para digitar. Portanto, por mais que elaborassem as ideias para o artigo em conjunto, cabia exclusivamente a Brenda a execução do texto. E isso tinha que ser feito com seu corpo humano.

            As universitárias caminhavam pelo campus da faculdade, antes frequentada por centenas de pessoas, mas agora quase uma cidade fantasma, eventualmente cumprimentando um sobrevivente ou outro. Discutiam como deveriam começar o artigo e quais tópicos seriam abordados.

 A residência universitária tinha se mantido em funcionamento, já que quase todos os estudantes estavam impedidos de voltar para a casa de seus familiares. Como os monitores, e até mesmo professores, continuavam no campus e possuíam as chaves de quase todos os setores da universidade, atividades prosseguiam autogeridas. Mas não se tratava mais de centenas de estudantes, quase todos haviam morrido. Restavam apenas poucas dezenas de universitários em seus corpos humanos, e outras dezenas que haviam preferido tornar-se boneco de pano a aceitar a morte.

             

            As duas olhavam para a tela, lendo e relendo o texto, resultado de duas horas de trabalho:

            Quando a peste bubônica decidiu que era hora de deixar as páginas dos livros de história e terminar o que havia iniciado mil anos antes, encontrou uma sociedade completamente vulnerável, incapaz de oferecer resistência.

No início dos anos dois mil, biomédicos e pesquisadores da área da saúde alertaram o mundo sobre a perda gradual da eficácia dos antibióticos, informando que se as patentes sobre processos de desenvolvimento e pesquisa não fossem quebrados, os micróbios se tornariam resistentes e toda bactéria seria uma superbactéria. Mas a quebra de patente prejudicava financeiramente os grandes laboratórios farmacêuticos e, o risco ainda estava distante demais. A lucratividade sempre foi mais importante que a segurança e os avisos caíram no vazio.

            Logo no início do terceiro milênio, a humanidade percebeu seu total despreparo no combate a ameaças à saúde mundial, com a propagação do Corona Vírus. Tratava-se de um vírus pouco agressivo e de baixa letalidade, cujas principais características eram a facilidade de contágio e o longo período de incubação, mas o despreparo total é capaz de transformar pequenas ameaças em grandes catástrofes. As medidas de contenção eram desrespeitadas, não apenas por indivíduos rebeldes, mas até mesmo por governos que, priorizando a economia à vida humana, propagava informações incorretas, estimulando a população a não cumprir com as medidas sanitárias. Somado a isso, o descaso dos laboratórios em investir em medidas preventivas possibilitou que o vírus se espalhasse e propagasse por mais de um ano até que as primeiras vacinas fossem produzidas. E foi assim que um vírus de baixa letalidade ceifou a vida de milhões de pessoas, além de afetar, de maneira irrecuperável, a economia mundial.

Muitos acreditaram que esse seria um ponto de mudança, que com o exemplo recente, a segurança prevaleceria sobre os interesses econômicos e os laboratórios aceitariam quaisquer medidas necessárias para impedir um novo colapso, mesmo que isso significasse quebra de patente. Ilusão.

 Com a perda gradual do efeito dos antibióticos, a peste bubônica não foi a primeira doença obsoleta a ressurgir. A primeira grande crise foi a sífilis, seguida de perto pela cólera. Mas ninguém ligou. A gente sempre imagina o futuro como uma época próspera e melhor organizada, um período no qual as pessoas aprenderam com os erros do passado e utilizaram da tecnologia para criar uma condição de vida melhor. A impressão que eu tenho é que as coisas não melhoram. Centenas de anos se passam. A gente muda esteticamente as coisas e os padrões de beleza, o design evolui, mas continuamos sendo os mesmos e cometendo os mesmo erros, repetidamente. Acredita-se que podemos superar qualquer obstáculo e que a humidade ira sempre prevalecer, mas essa não é bem a verdade, nós não pensamos assim. A triste realidade é que a humanidade cometeu seu último erro.

Foi Letícia quem quebrou o silencio constrangedor:

- E aí? O que achou?

Brenda olhou para a amiga, vendo o perfil plano do rosto da boneca, e voltando a encarar o texto.

Letícia repetiu a pergunta:

- O que achou?

Dessa vez, Brenda reparou, pelo canto do olho, que a boneca a encarava. Respirou fundo, antes de responder:

- Achei muito parecido com todos os outros artigos que escrevemos juntas: Péssimo e raso.

As amigas continuaram contemplando a própria incompetência, em silêncio.

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