A doença de Brenda ainda estava no estágio inicial e, por alguns dias, ela conseguiria viver normalmente, apesar da dor de cabeça e dos calafrios. Somente quando começassem a surgir os caroços negros nas axilas, pescoço e virilha é que ela deixaria seu corpo e participaria do ritual. Por isso a estudante tinha decidido que não procuraria os artesãos naquele dia. Antes de começar a pensar em seu futuro como boneca de pano, ela ainda precisava terminar algumas coisas com seu corpo humano.
As amigas cursavam jornalismo e, apesar de as aulas terem sido suspensas alguns meses atrás, quando da tardia constatação da gravidade da doença, elas continuavam com a ideia de tentar escrever um artigo sobre os fatores que convergiram em um caos social tão rápido, mas Letícia descobriu que, por algum motivo, nenhuma tecnologia parecia ouvir sua voz e, portanto, nada do que falava era captado pelo gravador ou pelo processador de texto. Seus novos dedos ainda não tinham habilidade e coordenação o suficiente para digitar. Portanto, por mais que elaborassem as ideias para o artigo em conjunto, cabia exclusivamente a Brenda a execução do texto. E isso tinha que ser feito com seu corpo humano.
As universitárias caminhavam pelo campus da faculdade, antes frequentada por centenas de pessoas, mas agora quase uma cidade fantasma, eventualmente cumprimentando um sobrevivente ou outro. Discutiam como deveriam começar o artigo e quais tópicos seriam abordados.
A residência universitária tinha se mantido em funcionamento, já que quase todos os estudantes estavam impedidos de voltar para a casa de seus familiares. Como os monitores, e até mesmo professores, continuavam no campus e possuíam as chaves de quase todos os setores da universidade, atividades prosseguiam autogeridas. Mas não se tratava mais de centenas de estudantes, quase todos haviam morrido. Restavam apenas poucas dezenas de universitários em seus corpos humanos, e outras dezenas que haviam preferido tornar-se boneco de pano a aceitar a morte.
As duas olhavam para a tela, lendo e relendo o texto, resultado de duas horas de trabalho:
Quando a peste bubônica decidiu que era hora de deixar as páginas dos livros de história e terminar o que havia iniciado mil anos antes, encontrou uma sociedade completamente vulnerável, incapaz de oferecer resistência.
No início dos anos dois mil, biomédicos e pesquisadores da área da saúde alertaram o mundo sobre a perda gradual da eficácia dos antibióticos, informando que se as patentes sobre processos de desenvolvimento e pesquisa não fossem quebrados, os micróbios se tornariam resistentes e toda bactéria seria uma superbactéria. Mas a quebra de patente prejudicava financeiramente os grandes laboratórios farmacêuticos e, o risco ainda estava distante demais. A lucratividade sempre foi mais importante que a segurança e os avisos caíram no vazio.
Logo no início do terceiro milênio, a humanidade percebeu seu total despreparo no combate a ameaças à saúde mundial, com a propagação do Corona Vírus. Tratava-se de um vírus pouco agressivo e de baixa letalidade, cujas principais características eram a facilidade de contágio e o longo período de incubação, mas o despreparo total é capaz de transformar pequenas ameaças em grandes catástrofes. As medidas de contenção eram desrespeitadas, não apenas por indivíduos rebeldes, mas até mesmo por governos que, priorizando a economia à vida humana, propagava informações incorretas, estimulando a população a não cumprir com as medidas sanitárias. Somado a isso, o descaso dos laboratórios em investir em medidas preventivas possibilitou que o vírus se espalhasse e propagasse por mais de um ano até que as primeiras vacinas fossem produzidas. E foi assim que um vírus de baixa letalidade ceifou a vida de milhões de pessoas, além de afetar, de maneira irrecuperável, a economia mundial.
Muitos acreditaram que esse seria um ponto de mudança, que com o exemplo recente, a segurança prevaleceria sobre os interesses econômicos e os laboratórios aceitariam quaisquer medidas necessárias para impedir um novo colapso, mesmo que isso significasse quebra de patente. Ilusão.
Com a perda gradual do efeito dos antibióticos, a peste bubônica não foi a primeira doença obsoleta a ressurgir. A primeira grande crise foi a sífilis, seguida de perto pela cólera. Mas ninguém ligou. A gente sempre imagina o futuro como uma época próspera e melhor organizada, um período no qual as pessoas aprenderam com os erros do passado e utilizaram da tecnologia para criar uma condição de vida melhor. A impressão que eu tenho é que as coisas não melhoram. Centenas de anos se passam. A gente muda esteticamente as coisas e os padrões de beleza, o design evolui, mas continuamos sendo os mesmos e cometendo os mesmo erros, repetidamente. Acredita-se que podemos superar qualquer obstáculo e que a humidade ira sempre prevalecer, mas essa não é bem a verdade, nós não pensamos assim. A triste realidade é que a humanidade cometeu seu último erro.
Foi Letícia quem quebrou o silencio constrangedor:
- E aí? O que achou?
Brenda olhou para a amiga, vendo o perfil plano do rosto da boneca, e voltando a encarar o texto.
Letícia repetiu a pergunta:
- O que achou?
Dessa vez, Brenda reparou, pelo canto do olho, que a boneca a encarava. Respirou fundo, antes de responder:
- Achei muito parecido com todos os outros artigos que escrevemos juntas: Péssimo e raso.
As amigas continuaram contemplando a própria incompetência, em silêncio.
Nos primeiros meses do surto de contágio da peste, não existia alternativa, a chance de sobrevivência era menor que cinco por cento. Quando a esperança veio, não na forma de um tratamento desenvolvido por cientistas de países ricos, como todos esperavam, mas sendo um ritual de magia elaborado por uma mística haitiana, as crenças religiosas se tornaram fator decisivo na escolha pela vida ou pela morte. A partir do momento em que se adoecia, e como veremos, quase todo mundo adoeceu, havia apenas três opções:passar por todos os estágios da doença, aproveitando os dias de sintomas suaves para buscar redenção, resolver coisas mal acabadas e se despedir de amigos e familiares e nos últimos, desejar que os analgésicos fossem o suficiente para aliviar a dor excruciante;passar pelos est&aa
Por ser um ambiente frequentado por pessoas com acesso amplo à informação e com capacidade intelectual para proceder de acordo com todas as exigências sanitárias, no início da propagação da superpeste, o ambiente acadêmico manteve-se em funcionamento. Quando a disseminação da doença se mostrou incontrolável, a universidade decidiu interromper as funções, mas era tarde demais para exigir que os estudantes abrigados nas moradias universitárias retornassem para a casa de seus familiares. Nem toda a arrogância e sentimento de superioridade do mundo acadêmico foram o suficiente para impedir que a peste passasse a frequentar a universidade. As medidas profiláticas se tornaram mais rígidas e o controle de zoonose começou a visitar residência
Emerson caminhava sem pressa pelos corredores da universidade. Chegaria atrasado á reunião, mas isso não era um problema, o papel dos bonecos de pano na atribuição de atividades era tão insignificante que, mesmo as ideias dele ainda sendo muito consideradas por todas as pessoas, a reunião ocorreria tranquilamente sem ele. Para o historiador, o mais importante era aproveitar cada instante de caminhada para aumentar o controle sobre seu corpo.Quando dobrou o corredor e ouviu o barulho suave e ritmado atrás de si, soube que outro boneco de pano se esforçava para andar rápido e que, provavelmente, não teria coordenação motora para parar antes da colisão. No mesmo instante que virou o corpo para ver se conhecia o boneco, seus corpos se chocaram com maciez e ele foi lançado ao chão, quicando duas vezes antes de parar. ‘Pelo menos o chão est
Brenda abriu os olhos e, instantaneamente, sentiu a têmpora esquerda latejar em uma dor nauseante. Tentou chamar Letícia para pedir algum conforto, mas as dores constantes e a febre diária tinham minado pouco a pouco todo o seu ânimo e força de vontade. O que conseguiu fazer foi encolher o corpo, abraçando os joelhos e chorar em silêncio, solitária no quarto escuro.Na sala de confecção dos bonecos, Letícia conversava com Jotapê, um dos artesãos, enquanto admirava o futuro corpo de Brenda e sugeria pequenas alterações e reparos.Quando as confecções começaram, quinze pessoas trabalhavam incansavelmente naquela sala preparando bonecos em larga escala, mas ao mesmo tempo, personalizados. Altura, volume dos enchimentos e detalhamento, tudo feito de forma a atender de maneira precisa a exigência dos solicitantes. Cada artesão tinha plena co
O ritmo de cada palavra pronunciada por Jamille, em perfeita harmonia com os batuques e com a dança frenética, hipnotizava Margarida. Quando tudo ficou em silêncio e o que restou foi apenas um barulho de apito dentro de sua cabeça, ela demorou alguns instantes para sair do transe. Letícia estava do seu lado e cobria a boca de mentira com a mão. Emerson corria pelo gramado, levantando uma nuvem branca de fubá e cal enquanto atropelava os símbolos no chão. Rogério sentara no gramado, abraçando os joelhos e olhando para o nada.A cabeça da psicóloga tentava assimilar os fatos, mas o absurdo da situação e a brutalidade com que ocorrera dificultava seu entendimento. Humanos e bonecos acudiam Jamille e os dançarinos. Emerson sumira. Letícia não estava mais do seu lado, mas caminhava em direção corpo inerte de sua amiga Brenda. Rog&
Letícia não conseguia entender direito o que tinha acontecido. Lembrava-se que, em algum momento a música tinha parado e todos tinham caído no chão. Viu Emerson sair correndo e imaginou que ele pretendia acudir Jamille, mas o historiador ignorou o corpo jogado no chão e continuou correndo. Rogério também estava caído e ela tentou lembrar se ele também fazia parte do ritual, sua cabeça estava confusa. Ela só queria saber se aquilo tinha acabado e se ela e Brenda já poderiam ir para casa, mas tudo estava tão confuso... ‘meu ritual também foi assim?‘O que ela estava fazendo ajoelhada com a cabeça de Brenda apoiada em seus joelhos? Como Brenda conseguia estar dormindo depois de toda aquela confusão? ‘Ela está dormindo, né?’ Tinha que estar, os dois corpos, o de carne e o de pano, estavam imóveis. Alg
O incidente dentro dos muros da cidade universitária, envolvendo a agressão à professora de antropologia e o assassinato de Brenda, foi capaz de mobilizar a todos e a movimentação começou logo na manhã seguinte. Conforme a notícia se espalhava, ninguém conseguia permanecer neutro.A maioria esmagadora da população acadêmica ficava chocada com a notícia, não querendo acreditar que alguém entre eles tinha sido capaz de cometer uma atrocidade daquela magnitude, no entanto, foram capazes de perceber que, mesmo que fossem apenas poucas pessoas, algumas concordavam com o posicionamento do agressor. Nem a universidade era um local seguro para os bonecos. Reunidos na praça, estavam Emerson, Letícia, Margarida, Raul, Rogério e Jotapê. O braço e o peito de Emerson tinham sido p
- Ei, Lê, se você não aparecer logo, a gente vai sem você?A voz de sua mãe era séria e parecia urgente. Letícia saiu de casa, carregando a mochila em um dos ombros e andando com dificuldade enquanto terminava de se ajeitar e só então viu que a mãe sorria. Mesmo assim, preferiu se justificar:- Desculpa, bem na hora que eu tava saindo, precisei voltar pra fazer xixi.A mãe riu e fez um gesto com a mão, dizendo que estava tudo bem, enquanto entrava no carro. O pai, sentado no banco do motorista, olhou para Letícia e perguntou:- Você trancou a porta da casa, filhota?Letícia sabia que tinha trancado, mas a pergunta a deixou insegura. Colocou a mochila perto do pneu do carro e voltou, primeiro destrancando o portão externo, depois, atravessando a garagem, checou a porta da frente. Tudo trancado.