Brenda sentia febre. Chegou a ter esperança de ser imune à doença. A probabilidade era baixa, mas existia. Todos no campus já tinham como fato garantido a imunidade de Rogério. Todos os seus colegas de casa tinham sido contaminados, mas ele, apesar de dizer ter se sentido ‘esquisito’ por alguns dias, não desenvolveu nenhum sintoma real. Quando Letícia ficou doente, Brenda teve certeza que logo ficaria também. Não sentiu nada nos primeiros dias. Mas logo agora que ela tinha começado a criar expectativas de que não adoeceria, os sintomas começaram a aparecer.
A estudante entrou no quarto, que dividia com Letícia, e trancou a porta. Ainda não estava preparada para o que viria a seguir. Precisaria de uns dias para se preparar, mas ela pensaria em tudo depois. Aquele momento ela precisava para si.
Abriu o guarda-roupa. No lado interno da porta, havia um espelho. Brenda encarou o próprio rosto. Os cabelos negros, ondulados até a altura da orelha, se transformavam em cachos grandes que, penteados para o lado direito, repousavam em seu ombro. O lado esquerdo de sua cabeça era raspado e seus cabelos tinham apenas alguns milímetros de cumprimento. Passou as mãos, primeiro na parte raspada, depois pela parte longa, sentindo toda a maciez que os cachos possuíam. Passou o dedo pela curvatura suave do próprio nariz, depois pela boca, cujo tom vermelho estava mais evidente como consequência da febre. Brenda sorriu ao pensar que a doença a deixara mais sensual. Olhou para os olhos castanhos e grandes que também apresentavam um brilho febril.
Brenda se despiu. Tinha os braços grandes e fortes, os seios eram redondos e rígidos e os mamilos, geralmente de um tom próximo do da própria pele, estavam vivazes pela febre. Passou as mãos por todas as curvas de seu corpo, enquanto arrepiava e tremia. Sentia o suor frio brotar em suas costas e sabia que precisava entrar em um banho frio. Mas queria contemplar seu corpo por mais uns instantes. Logo se despediria para sempre de tudo aquilo que contemplava e, definitivamente, não se sentia preparada.
Escutou um barulho suave na porta, como se alguém raspasse algo macio. Apurou os ouvidos e escutou o barulho se repetir. Foi então que ouviu a voz:
- Brê? Sou eu. Abre pra mim?
Era a voz de Letícia, mas não era. Talvez, alguém que conversasse apenas eventualmente, como um tio, um vizinho ou um colega, não percebesse a diferença, mas Brenda, que dividia o quarto com ela há quatro anos, sentia calafrios toda vez que ouvia aquele som que parecia uma imitação da voz original. O chamado se repetiu:
- Tá tudo bem, Brê? Abre pra mim!
A estudante não se importou com a própria nudez. Não tinha nada ali que a companheira de quarto ainda não tivesse visto. Abriu a porta.
Por saber que estava doente, não suportou a visão daquele corpo que não era o de Letícia, mas comportava Letícia. Abraçou a companheira, com cuidado para não derrubá-la, e se esvaiu em prantos, enquanto dizia:
- Eu também tô doente, Lê. Eu também tô doente.
Letícia envolveu a amiga com seu braço de pano. Ela não estava preparada para aquele momento, não queria ter que confortar a amiga. Ainda era tudo muito novo para ela também. Mas era assim que as coisas aconteciam e, mesmo sendo a última coisa que gostaria de fazer naquele momento, mentiu o melhor que pôde:
- Não é tão ruim assim, meu amor. Aproveita que o pessoal tá com muito menos costura pra fazer agora e vão ter mais tempo pra fazer seu corpo com capricho. Vai ser bem melhor que os das primeiras levas! Vai ser bem melhor até que o meu!
Brenda se afastou alguns centímetros, pra poder olhar o corpo falso da amiga e, entre lágrimas, riu:
- E o seu já é até bem caprichado!
As amigas soltaram o abraço e se sentaram na cama. Brenda conseguiu controlar a crise de choro, mas ainda suspirava quando voltou a falar:
- Desculpa não ter ido ao crematório. Eu juro que tentei, mas eu não ia conseguir ver seu corpo ali jogado, como se não fosse nada. Na verdade, eu não sei como você conseguiu ir... eu... eu não vou ser capaz... – conforme falava, Brenda percebeu que não conseguiria conter as lágrimas, antes de concluir a frase, então se deixou chorar novamente, enquanto concluía – eu não vou ser capaz de ver meu corpo queimar.
- Você não precisa ir. Cada um tem seu jeito de aceitar. Eu precisava ver meu corpo ser destruído pra conseguir acreditar que não tinha mais volta. Que agora eu sou isso aqui.
E se levantando da cama e erguendo os braços, Letícia mostrava o próprio corpo. Ela era uma boneca de pano de um metro e setenta de altura. O tecido de sua pele era marrom e levemente felpudo. A boneca era muito bem feita e possuía todas as áreas do corpo bem demarcadas. O detalhamento da mão era impecável, tornando suas habilidades motoras, quase completamente, funcionais. Apenas o rosto não se parecia em mais nada com um rosto humano. Os olhos e a boca eram desenhados e, portanto, não possuíam profundidade. Nos olhos, pequenos pedaços de tecido tinham sido costurados. O aspecto estético não era dos melhores, mas permitia que Letícia pudesse fechar os olhos quando quisesse, e até mesmo piscar. Os cabelos eram feitos de tranças de lã e era a única coisa que sobrara do corpo original de Letícia. O molde havia sido seu próprio corpo, permitindo que ela pudesse continuar vestindo as antigas roupas por sobre seu formato de boneca.
Brenda olhou a boneca e, pela primeira vez, pensou que estava sendo egoísta. Que a pessoa em sua frente havia passado recentemente pela mesma situação que ela passava agora e, de fato, acabara de ver o próprio corpo arder em uma fogueira. Admirou a amiga pela força que demonstrava e decidiu que, como em outras vezes, nos últimos quatro anos, se inspiraria na resiliência de Letícia.
Já exibia um sorriso no rosto quando disse:
- Na verdade, sua cintura é mais definida agora do que era antes.
A doença de Brenda ainda estava no estágio inicial e, por alguns dias, ela conseguiria viver normalmente, apesar da dor de cabeça e dos calafrios. Somente quando começassem a surgir os caroços negros nas axilas, pescoço e virilha é que ela deixaria seu corpo e participaria do ritual. Por isso a estudante tinha decidido que não procuraria os artesãos naquele dia. Antes de começar a pensar em seu futuro como boneca de pano, ela ainda precisava terminar algumas coisas com seu corpo humano. As amigas cursavam jornalismo e, apesar de as aulas terem sido suspensas alguns meses atrás, quando da tardia constatação da gravidade da doença, elas continuavam com a ideia de tentar escrever um artigo sobre os fatores que convergiram em um caos social tão
Nos primeiros meses do surto de contágio da peste, não existia alternativa, a chance de sobrevivência era menor que cinco por cento. Quando a esperança veio, não na forma de um tratamento desenvolvido por cientistas de países ricos, como todos esperavam, mas sendo um ritual de magia elaborado por uma mística haitiana, as crenças religiosas se tornaram fator decisivo na escolha pela vida ou pela morte. A partir do momento em que se adoecia, e como veremos, quase todo mundo adoeceu, havia apenas três opções:passar por todos os estágios da doença, aproveitando os dias de sintomas suaves para buscar redenção, resolver coisas mal acabadas e se despedir de amigos e familiares e nos últimos, desejar que os analgésicos fossem o suficiente para aliviar a dor excruciante;passar pelos est&aa
Por ser um ambiente frequentado por pessoas com acesso amplo à informação e com capacidade intelectual para proceder de acordo com todas as exigências sanitárias, no início da propagação da superpeste, o ambiente acadêmico manteve-se em funcionamento. Quando a disseminação da doença se mostrou incontrolável, a universidade decidiu interromper as funções, mas era tarde demais para exigir que os estudantes abrigados nas moradias universitárias retornassem para a casa de seus familiares. Nem toda a arrogância e sentimento de superioridade do mundo acadêmico foram o suficiente para impedir que a peste passasse a frequentar a universidade. As medidas profiláticas se tornaram mais rígidas e o controle de zoonose começou a visitar residência
Emerson caminhava sem pressa pelos corredores da universidade. Chegaria atrasado á reunião, mas isso não era um problema, o papel dos bonecos de pano na atribuição de atividades era tão insignificante que, mesmo as ideias dele ainda sendo muito consideradas por todas as pessoas, a reunião ocorreria tranquilamente sem ele. Para o historiador, o mais importante era aproveitar cada instante de caminhada para aumentar o controle sobre seu corpo.Quando dobrou o corredor e ouviu o barulho suave e ritmado atrás de si, soube que outro boneco de pano se esforçava para andar rápido e que, provavelmente, não teria coordenação motora para parar antes da colisão. No mesmo instante que virou o corpo para ver se conhecia o boneco, seus corpos se chocaram com maciez e ele foi lançado ao chão, quicando duas vezes antes de parar. ‘Pelo menos o chão est
Brenda abriu os olhos e, instantaneamente, sentiu a têmpora esquerda latejar em uma dor nauseante. Tentou chamar Letícia para pedir algum conforto, mas as dores constantes e a febre diária tinham minado pouco a pouco todo o seu ânimo e força de vontade. O que conseguiu fazer foi encolher o corpo, abraçando os joelhos e chorar em silêncio, solitária no quarto escuro.Na sala de confecção dos bonecos, Letícia conversava com Jotapê, um dos artesãos, enquanto admirava o futuro corpo de Brenda e sugeria pequenas alterações e reparos.Quando as confecções começaram, quinze pessoas trabalhavam incansavelmente naquela sala preparando bonecos em larga escala, mas ao mesmo tempo, personalizados. Altura, volume dos enchimentos e detalhamento, tudo feito de forma a atender de maneira precisa a exigência dos solicitantes. Cada artesão tinha plena co
O ritmo de cada palavra pronunciada por Jamille, em perfeita harmonia com os batuques e com a dança frenética, hipnotizava Margarida. Quando tudo ficou em silêncio e o que restou foi apenas um barulho de apito dentro de sua cabeça, ela demorou alguns instantes para sair do transe. Letícia estava do seu lado e cobria a boca de mentira com a mão. Emerson corria pelo gramado, levantando uma nuvem branca de fubá e cal enquanto atropelava os símbolos no chão. Rogério sentara no gramado, abraçando os joelhos e olhando para o nada.A cabeça da psicóloga tentava assimilar os fatos, mas o absurdo da situação e a brutalidade com que ocorrera dificultava seu entendimento. Humanos e bonecos acudiam Jamille e os dançarinos. Emerson sumira. Letícia não estava mais do seu lado, mas caminhava em direção corpo inerte de sua amiga Brenda. Rog&
Letícia não conseguia entender direito o que tinha acontecido. Lembrava-se que, em algum momento a música tinha parado e todos tinham caído no chão. Viu Emerson sair correndo e imaginou que ele pretendia acudir Jamille, mas o historiador ignorou o corpo jogado no chão e continuou correndo. Rogério também estava caído e ela tentou lembrar se ele também fazia parte do ritual, sua cabeça estava confusa. Ela só queria saber se aquilo tinha acabado e se ela e Brenda já poderiam ir para casa, mas tudo estava tão confuso... ‘meu ritual também foi assim?‘O que ela estava fazendo ajoelhada com a cabeça de Brenda apoiada em seus joelhos? Como Brenda conseguia estar dormindo depois de toda aquela confusão? ‘Ela está dormindo, né?’ Tinha que estar, os dois corpos, o de carne e o de pano, estavam imóveis. Alg
O incidente dentro dos muros da cidade universitária, envolvendo a agressão à professora de antropologia e o assassinato de Brenda, foi capaz de mobilizar a todos e a movimentação começou logo na manhã seguinte. Conforme a notícia se espalhava, ninguém conseguia permanecer neutro.A maioria esmagadora da população acadêmica ficava chocada com a notícia, não querendo acreditar que alguém entre eles tinha sido capaz de cometer uma atrocidade daquela magnitude, no entanto, foram capazes de perceber que, mesmo que fossem apenas poucas pessoas, algumas concordavam com o posicionamento do agressor. Nem a universidade era um local seguro para os bonecos. Reunidos na praça, estavam Emerson, Letícia, Margarida, Raul, Rogério e Jotapê. O braço e o peito de Emerson tinham sido p