Num mundo de vaidosos, os menos abastados precisam fazer sua parte para garantir a concentração de recursos no Núcleo. O jovem provinciano Simas, cuja maior ambição é não precisar carregar nos ombros o fardo do que restou de sua família após as tragédias do passado, tenta apenas fornecer o que lhe é cobrado. Tudo promete mudar com mais um fim de ciclo anual. É uma época muito aguardada, pois traz aos provincianos uma chance de serem resgatados e se integrarem ao Núcleo. Dizem que há uma vida de oportunidades lá, embora ninguém tenha retornado para descrevê-las. Ao contrário dos demais, Simas prefere permanecer invisível e não apostar no desconhecido. No entanto, algo dará errado desta vez, e logo ele perceberá que tinha razão em se resguardar. O Núcleo precisa de material descartável para seu mais novo modo de entretenimento: um jogo em que pessoas reais perdem seu livre-arbítrio e são vendidas como personagens usados em realidades virtuais. Simas descobrirá um universo novo e perverso, despertará a atenção de inimigos poderosos e tentará conquistar o apoio de um aliado improvável. Ele precisará, acima de tudo, criar sua própria maneira de jogar se quiser recobrar a liberdade e sobreviver.
Ler maisPara nós, é uma grande realização finalizar esta primeira etapa da série. Não teria sido possível sem todas as palavras amigas, os incentivos calorosos e, acima de tudo, a confiança que recebemos. Gostaríamos de agradecer imensamente àqueles que nos auxiliaram:Natalia Saj, por ter produzido as lindas capas da série e ter sido uma das nossas primeiras leitoras críticas.Hellen Caroline, por sua incomparável dedicação à revisão da obra. Uma pessoa incrível e uma profissional talentosa que tivemos a sorte de encontrar na reta final do processo.Rodolfo Marques, por ter nos concedido uma de suas virtuosas composições para que usássemos na divulgação, bem como por nos ajudar com nossas pesquisas para a obra.Sandro Aragão, por sua disposição e competência ao bater nossas fot
Eu contava as más notícias à Magister. Ela se sentava no centro de sua mesa em formato de meia-lua. Estávamos em seu escritório, de interior amplo e circular. Eu sempre admirara sua sala: a maneira como a projeção dimensional no piso dava a sensação de que o chão era fofo como areia sob os pés, as janelas amplas que proporcionavam o vislumbre da parte mais bela da cidade.Nos últimos anos, a Corte vinha travando uma batalha ferrenha contra a mentalidade conservadora, lidávamos com os rebeldes: criaturas asquerosas, sempre tentando "ver além do momento". O Simulador era uma manobra para direcionar sua atenção a algo que não fosse prejudicial ao interesse do Núcleo.Por conta disso, a ideia de que alguns provincianos haviam conseguido escapar da ilha de Ventura era preocupante. Além disso, havia aquela bronca se esgueirando pela cidade; uma
As águas noturnas, negras e misteriosas, escorregavam sob o barco como se velejássemos num véu.Pouco a pouco, a ilha sumia de vista. Olhei para o horizonte, ao oeste, onde mais tarde veria surgir o continente, e não pude evitar o arroubo de ânimo que me acometeu.Eu mal podia acreditar, mas em breve chegaria à província. Parecia fazer séculos desde que eu tinha estado em casa. Podia imaginar a indignação no rosto do meu pai, a surpresa de Farid e a alegria de Lena.De repente, a angústia das últimas semanas parecia pequena comparada com o prazer de eu me ver, desde tanto tempo, liberto.Isso me remeteu ao meu velho dilema de infância, quando um pensamento parecia contagiar os sentidos, com tamanha intensidade, capaz talvez de durar a eternidade. A ideia de contemplar o sorriso da minha irmã; de visitar a madeireira; de correr pela floresta que ladeava minha ca
Faltavam minutos para meia-noite. Com uma mochila nas costas e o mapa de cartolina no compartimento da frente, eu aguardava aflito. Kaira e Eidan ainda perambulavam pela casa, limitados pelos comandos de seus respectivos jogadores, mas isso não duraria muito tempo, pois assim que o servidor se desligasse, eles recobrariam sua autonomia, e então fugiríamos da cidade.Eu poderia esperar sentado na poltrona do saguão, porém, estava tão ansioso que era incapaz de me manter parado; vagava, alternando o olhar entre o relógio e a porta da frente. Havia antecipado aquele momento por dias, verificara cada detalhe do plano para ter certeza de que nada daria errado.Alve tinha confirmado, no dia anterior, que sua parte estava feita. No entanto, ainda tínhamos que considerar diversas variáveis — nem todos os pormenores podiam ser previstos.Precisaríamos de sorte, mas principalmente de sangue-frio.
Às vezes eu tinha boas ideias. Minha professora do colégio costumava dizer que eu era criativa. Não era um elogio, criatividade era inútil, mas eu gostava disso. Eu tinha ideias na cozinha, o que por vezes me levava a inventar algo novo pra lanchar. Também costumava criar brincadeiras pra mostrar aos meus amigos. Eu não era boa em muitas coisas, mas tinha mesmo ideias bacanas.De vez em quando as pessoas eram bem cruéis. Era aí que eu ficava mais criativa ainda.Mas os outros não percebiam isso. Farid era um exemplo. Ele só me julgava, não gostava de mim, sempre me chamava de mal-apanhada e idiota. Só que ele era idiota também. Tão idiota que não conseguia perceber que era tão idiota assim.Meu irmão estava triste agora, mas eu não sentia pena. A mamãe costumava dizer que a família e
Nos dias subsequentes, os planejamentos continuaram. Já tínhamos o esboço perfeito da nossa rota de fuga. Ao contrário do que eu havia imaginado, ter a ajuda de Eidan e Kaira era proveitoso, de modo que fugir com eles talvez fosse menos perigoso do que fazê-lo sozinho. Eu ainda explorava Ventura, embora já conhecesse tudo o que precisava: o padrão das câmeras, o tempo que levaríamos para percorrer uma das ruas ao redor da alameda. Pelas calçadas, podíamos ver postes de luz, hidrantes high-tech e placas de sinalização. Eu memorizava cada ponto de referência a fim de me localizar mais facilmente.Alve contrabandeou algumas ferramentas de sua loja. Ele também aproveitava os momentos livres para observar a chegada de abastecimento de produtos na alameda. De alguma forma, conseguira a façanha de acompanhar, da sacada de sua casa, o trabalho da equipe de manuten&cce
Dessa vez, Benjamin me deixou mais cedo. Ambos estávamos abalados com as últimas descobertas. Ele prometeu que pela manhã discutiríamos outra vez nosso plano de fuga. Agora que tínhamos ciência sobre o quartel general dos guardas de neoprene, era preciso tomar o dobro de cuidado em tudo o que fizéssemos.Dormir foi um desafio, imagens de caminhões e guardas armados sequestrando páuperes invadiam meus sonhos. Acordei mais cedo do que gostaria, pouco antes do sol trazer o início da manhã seguinte. Pus-me de pé e tomei um banho. Hoje teriam início os primeiros esboços do plano que, na melhor das hipóteses, me salvaria daquela ilha.Enquanto Benjamin não se reconectasse, eu não poderia fazer muito. Para não aumentar as suspeitas de Kaira e Eidan, o ideal seria permanecer longe de casa por algum tempo. Assim sendo, saí bem cedinho. Vasculhei as
Eu valorizava minhas mínimas ações. Escovar os dentes e pentear os cabelos ganhavam um novo significado.Entretanto eu não me sentia completamente satisfeito, mesmo podendo me mexer outra vez. A vida na província nunca havia sido boa, mas ao menos era verdadeira, e minha família precisava de mim tanto quanto eu precisava dela. A promessa de Benjamin transformava um tormento irremediável em esperança.Ainda no dia anterior, após Benjamin prometer que me ajudaria a deixar a ilha, debatêramos o modo como realizaríamos tal fuga. Ele mapearia a cidade e me informaria sobre todas as saídas disponíveis, além de me ensinar como evitar os mecanismos de segurança. O processo provavelmente demoraria dias, e nenhum de nós podia garantir que daria certo. Estranhamente, começamos a agir como se nunca tivéssemos discutido, e quando eu me dei conta disso, prefer
Se algo eu havia aprendido com meus serviços de madeireiro era que a destruição podia ser boa. Ninguém esperava que uma árvore se tornasse um guarda-roupa por conta própria. É claro que se um tronco pudesse falar, pediria que não o derrubassem. Mas, de uma maneira geral, o ciclo de devastar para depois construir era natural e — por que não —, de certa forma, romântico. Talvez essa fosse a ideia que, em primeiro lugar, havia me inspirado a aprender mecânica e marcenaria: a noção de que uma barra de ferro nunca era simplesmente um pedaço de metal, mas matéria prima cheia de potencial.Eu me lembrava do dia em que Lena se desfizera de sua cadeira de jantar favorita; minha irmã a recebera de Plinio aos cinco anos de idade, um assento feito de pinho, pintado de cor-de-rosa e marrom, decorado com algumas figurinhas adesivas. Por anos, Lena se recusara a comer se