Quanto realmente dura um pensamento?
Esta era a pergunta. Quanto tempo decorre do momento em que se formula um pensamento até o instante em que ele vai embora?
Às vezes, quando mais jovem, eu olhava para o céu e me dava conta de que choveria, e então me atinha a isso, à concepção de que a chuva estava por vir, tentando estudá-la por todo o tempo em que ela estivesse comigo. Mas, de uma maneira ou de outra, como quando eu contava os minutos antes de dormir, era impraticável cronometrar a duração de uma ideia.
Sempre fui assim: perguntas não me agradavam, a menos que viessem acompanhadas de resposta — ou, minimamente, da possibilidade de existir uma resposta. Mas eu sabia desde criança que ninguém elucidaria essa dúvida pessoal, sobre a duração das coisas que não podemos medir. Ninguém se importava. Talvez ninguém houvesse, um dia sequer, ao menos refletido a respeito.
Isso continuou indecifrável durante boa parte da minha vida. E agora, tantos anos após eu ter me perguntado sobre isso pela primeira vez, já não esperava chegar a conclusão nenhuma. Meu velho dilema lógico veio à tona quando eu menos imaginava, no final gelado de um mês de junho.
Corria feito louco pela floresta que ladeava os fundos do quintal de casa, suando em bicas, embora o frio fosse de inverno. Quanto tempo até meu irmão esquecer que está irritado comigo?, perguntei a mim mesmo. Ele vinha em meu encalço e não me deixaria em paz.
Dessa vez, tive que me contentar apenas com a certeza de que pensamentos eram finitos, e que essa reflexão estaria morta no momento em que eu parasse de correr. Ela morreu, de fato, bem no instante em que escondi minha enciclopédia de capa dura no interior de um carvalho oco. Corri por mais alguns minutos a fim de garantir que despistava meu perseguidor, e então parei perto de outra árvore, apoiando-me no tronco enquanto tomava fôlego.
— Eu disse que se corresse seria pior! — ralhou Farid, avançando furiosamente na minha direção.
Esperei pelo golpe e ele não demorou a vir. Senti a palma aberta do meu irmão estalar contra minha nuca, o que me fez trincar os dentes.
— Seu mal-apanhado! — xinguei, afastando-me.
Farid cutucou meu peito com o indicador e carranqueou.
— Simas, por que tu não veio quando chamei?
Respirei fundo, ainda arfante. O ar da floresta entrava frio e ardia nos meus pulmões.
Eu havia corrido para me livrar de algo comprometedor. Aquele livro, uma enciclopédia de páginas amareladas, tinha sido meu segundo maior achado do mês.
Frequentemente eu explorava a Escória, um terreno extenso e abandonado, que ficava a alguns quilômetros da minha casa, onde se jogava tudo o que não mais prestava; um purgatório de entulhos em que pilhas gigantescas se acumulavam, o destino de todas as coisas. Para muitos, a Escória era um antro de objetos velhos e sem serventia, mas alguns poucos encontravam valor em quinquilharias descartadas. Eu havia perambulado por entre os estofados rasgados e madeira desgastada aquela manhã, uma segunda vez na mesma semana. Aparentemente a enciclopédia grossa tinha estado lá desde o último sábado — quando os caminhões descartavam o lixo —, como se estivesse esperando que eu a encontrasse. Ao segurá-la, tinha sido difícil acreditar: havia inclusive figuras nos capítulos! Eu adorava admirar as ilustrações quase tanto quanto gostava de ler. Não tinha pensado duas vezes antes de colocá-la embaixo do braço e correr de volta para casa.
Porém Farid, meu irmão mais velho, vinha esperando por mim. Eu não sabia o que ele queria comigo, mas não poderia ter aparecido em pior hora. A enciclopédia era grande demais para que eu a escondesse debaixo da camisa — e esse era, aliás, o único motivo por que aquela verdadeira relíquia era a segunda melhor do mês em vez de primeira.
Se Farid me visse carregando o livro, os pescotapas seriam mais dolorosos. Além disso, meu pai acabaria ciente de que eu estivera mais uma vez me esgueirando pela terra-de-ninguém, como os mendigos faziam; obviamente, ele não queria que eu me comportasse feito mendigo e ficaria furioso se suspeitasse que eu vinha lendo de novo. Por muitos motivos, ninguém poderia saber! Portanto, eu havia disparado pela mata até encontrar meu esconderijo secreto, o carvalho seco perto do córrego do rio.
— Não lhe devo satisfação.
Eu não diria a verdade.
Seu semblante era azedo.
— É isso que quer que eu diga pro pai quando ele perguntar sobre tu?
Farid conseguia me provocar raiva às vezes. Não era muito inteligente, mas dominava perfeitamente a arte do cinismo.
— Eu corri porque... — entabulei — porque achei que você quisesse se vingar.
— Me vingar pelo quê?
— Por eu ter descoberto as garrafas embaixo do assoalho do quarto. — Era mentira, é claro; mas as garrafas realmente estavam lá, escondidas.
Farid perdeu a cor.
Meu pai gastava quase todo seu dinheiro em gim. Costumava beber na taverna do velho Omir, até que o exagero o fizera perder o controle e arranjar confusão com os frequentadores locais; agora arranjava álcool barato por meio de um de seus poucos amigos; bebia toda noite no jantar e toda manhã antes do café da manhã. Às vezes passava dias sem se alimentar propriamente. Transformava todo fim de semana num calvário para mim e minha irmã mais nova, mas não se deixava ser visto bêbado sob a luz do dia por receio do que os vizinhos pensariam. Farid não repreendia meu pai, conquanto também se incomodasse com seu passatempo insalubre; ele, por sua vez, apreciava alguns goles esporádicos e, portanto, mantinha ocultas ao menos três garrafas sob o assoalho.
— Não sei do que tu tá falando. — Mas ele sabia. Eu sabia que ele sabia.
— Então não vai se importar quando eu sugerir ao pai que vasculhe o quarto hoje à noite — insinuei.
Farid rosnou, derrotado.
Eu havia descoberto seu esconderijo ano passado, numa noite fria demais para que Farid realmente quisesse se levantar da cama. Ele caminhara na ponta dos pés até suas preciosas garrafas, achando que eu estava dormindo, mas o barulho do assoalho tinha me acordado. Na manhã seguinte, enquanto Farid estava fora, eu havia achado o compartimento repleto de gim caro. Não sabia como meu irmão tinha adquirido aquilo, mas, de qualquer forma, preferira guardar segredo a fim de usar a informação no momento certo. Esse era o momento certo.
Farid semicerrou os olhos.
— Ora, seu filhote de porco-do-mar! Tu não vai dizer nada se tiver amor à vida.
Soltei uma gargalhada vitoriosa.
— É melhor maneirar nesses tapas, então, cara.
Comecei a trilhar o caminho de volta, certificando-me de passar bem longe do carvalho onde meu novo projeto permanecia seguro. Farid não discutiria mais comigo, não gostaria que eu levasse adiante a ideia de revelar seu segredo.
— Ei, o pai me mandou perguntar se tu não vai pra madeireira hoje. — Ele corria para me acompanhar, pisando ruidosamente no tapete de folhas mortas.
Era isso que ele queria, é claro...
Revirei os olhos e respondi que começaria o serviço um pouco mais tarde hoje, por ordem do chefe, de modo que meu pai não precisava se preocupar, pois que seu "jantar" estaria à mesa.
Farid meneou a cabeça e ponderou, e então me lançou um olhar vacilante.
— Está bem. Mas, por favor, não conte aquele negócio — pediu uma última vez.
Ele sabia fazer cara de criança abandonada quando precisava, o que quase me fazia sentir dó. Mas não havia misericórdia entre mim e meu irmão, as negociações que fazíamos eram sempre pautadas no que nos beneficiasse mutuamente. Eu sempre estava à procura de algo que pudesse usar contra ele. Esse era nosso jogo, brincadeiras que trazíamos da infância: Farid e seus safanões; eu e minha coercitividade.
Farid não se parecia muito comigo. Tínhamos a mesma pele grossa e bronzeada, os mesmos olhos castanhos, mas ele era relativamente mais alto e mais magro, além de cultivar a barba cerrada e uma cabeleira cacheada. A aparência de Farid não era das melhores, mas, por um motivo indiscutível, isso não o incomodava: era um desempregado. Ele, de todo modo, continuaria ocioso pelo resto da vida, porquanto tinha apenas um dos braços — a razão pela qual o perdera era uma longa história que preferíamos não mencionar.
Assenti ao seu pedido. Uma hora ou outra eu usaria a mesma cartada contra ele novamente.
Farid se preparou para se despedir de uma vez, pois nossos caminhos se separavam, já que eu rumava para fora da floresta, em direção ao Centro. Movido pelo costume, ele levantou sua única mão, preparando-se para acertar minha nuca com mais um de seus tapas. Quando o fuzilei com os olhos, ele interrompeu a ação, lembrando-se de que deveria ser gentil comigo a fim de garantir meu silêncio.
Agora eu me perguntava por quanto tempo poderia recorrer àquela ameaça até que ela começasse a soar vazia e sem valor. Quanto duraria? Bem, talvez ao menos isso eu conseguisse estimar.
Foi apenas à noite que pude retornar ao refúgio dos meus tesouros. Tive que me satisfazer com somente a sensação de ter meu novo livro velho nas mãos, pois àquela hora a floresta já estava escura e eu não podia distinguir as palavras no papel, meus olhos doíam quando eu tentava forçá-los.Por entre as árvores, andando alguns poucos minutos desde o córrego, era possível ver as cercas que contornavam a casa de argamassa fina, toda branqueada com cal. Quando entrei, estremeci de frio; desejei poder despir o casaco, porém o interior estava quase tão gelado quanto as ruas lá fora.— Passou na venda? — perguntou meu pai. Ele estava de costas à porta, em frente à lareira, com os braços cruzados enquanto observava as chamas.Apoiei as sacolas de papel sobre a mesa e exprimi um gemido, sinalizando que sim.A sala t
No caminho de volta, o automóvel sacolejava mais do que na ida, agora que não carregávamos troncos na traseira. Pude ver o Núcleo mais uma vez enquanto o panorama diminuía gradativamente no retrovisor. O vento sacudia a copa das árvores no acostamento. O ar parecia rarefeito aqui do alto, fazendo-me sentir mais relaxado.Plinio me ofereceu um adiantamento para que eu pudesse comprar uma roupa bacana para a festa. Apesar de aceitar o dinheiro, eu não prometeria comparecer amanhã.— Se eu fosse mais jovem, vestiria algo muito bacana — dizia Plinio. — Todos me notariam. Todos olhariam para mim.Franzi o cenho.— Você tem quase a minha idade.Plinio estava nos vinte e poucos, apesar de parecer um tanto mais velho e ter a saúde muito fraca para alguém tão jovem. Ele ficou ligeiramente sem jeito.— É. Bem... é verdade &mda
A noite era impenetrável. Embora eu me sentisse exausto, era como se nenhuma parte de mim estivesse disposta a descansar. A cama rangia a cada movimento inquieto, o que já parecia estar durando horas. Eu sabia que a manhã chegaria e eu precisaria estar de pé, mas por mais que tentasse desligar a consciência, um pedaço dela continuava funcionando a todo vapor.Meus olhos se adaptaram muito rapidamente à pouca luz, que entrava no quarto através da janela e que vinha de um dos postes na calçada. Eu conseguia discernir o contorno da mancha que havia no teto, bem na direção do meu olhar, e a encarava por uma eternidade.Quando mais novo, eu costumava ter pesadelos, razão pela qual, por tantas vezes, recusara-me a me deitar. Com os anos, eles foram se tornando menos frequentes. Agora minha maior dificuldade não era me manter na cama, mas essencialmente dormir. Em pensamento, os aconteci
A celebração prosseguiu. Os mesmos feirantes realizavam seus rodízios; os jovens dançavam, agindo como se nada tivesse acontecido.Eu havia perdido Lena de vista. Mergulhei no tumulto e abri caminho. Gritei seu nome e consegui encontrá-la cerca de cinco minutos depois, perto da urna de madeira.— Eu disse para não se distanciar!Ela tinha um semblante culpado.— Desculpe, a multidão me arrastou.Lancei à garota um olhar complacente. Era mesmo muito fácil se perder naquela selva de pessoas.Retornamos a um ponto menos movimentado, e eu já me preparava para comprar algo para comermos quando Lena puxou meu braço com força.— O papai está aqui!Olhei na direção em que ela apontava e pude ver o homem de jaqueta vermelha chamativa, enroscado como uma serpente numa negra alta. Semicerrei os olhos, imaginando que a
Quando eu era criança, minha mãe me levava em passeios casuais pela floresta. Eu ficava fascinado com as aves, a vegetação densa e o córrego do rio, mas o que mais chamava minha atenção era uma planta de flor púrpura que crescia livremente por algumas partes da cidade. A beladona, como a mãe a chamava, era uma erva daninha; eu não entendia como podíamos considerar ruim algo tão insuspeito. Em seu caule brotavam pequenos frutos redondos de um negro profundo, que se assemelhavam a jabuticaba, e eu tinha vontade de botá-los na boca. Minha mãe sempre me fazia prometer que jamais experimentaria a fruta: embora as bagas fossem doces e saborosas, eram muito tóxicas, um punhado delas continha substância alucinógena forte o suficiente para me matar. Por isso eu sempre admirava as beladonas de longe, receoso de me aproximar delas, ainda que fossem tão bonitas que me fiz
De volta ao quarto, eu ainda tentava assimilar o que meu pai tinha dito. Lena estava sentada na sua cama, séria.— O papai está irritado, não é? — supôs ela.Sentei-me ao seu lado.— Não sabemos o que vai acontecer com ele — respondi, com sinceridade.Lena tomou fôlego.— Mas sabemos o que vai acontecer com a gente.Ela realmente ansiava pelo pagamento que nos seria concedido pelo Núcleo, estava claro. No entanto, eu não sabia se isso se tratava de pura ambição ou se ela apenas repetia o tipo de discurso que meu pai proferia quando estava embriagado.Observei minha irmã por alguns segundos. Ela sempre parecera mais nova que as garotas de sua idade, mas algo em seu semblante a transformava numa criança bem pequena agora — talvez fosse a serenidade com que lidava com a situação.Eu ainda n&ati
agora a droga dos gritos vinham da cozinha, mas eles sempre vinham de algum lugar. às vezes era meio chato, ainda mais quando eu tentava dormir. eu era um sujeito otimista, via pelo lado positivo. quando as pessoas se detestavam tanto, não prestavam atenção em mim. se tinha alguma coisa que eu sabia bem era que tudo tinha um preço, e que paz de espírito se comprava com a desarmonia dos outros. em geral, os oligarcas (aqueles filhos da puta), homens da milícia que guardavam as ruas da província, faziam patrulhas regulares, quando não montavam cabine no complexo habitacional. assim sendo, sempre que um prédio pegava fogo ou um ladrão era pego no centro da província, as patrulhas se esqueciam da existência do complexo. por que em casa seria diferente?mas eu não desejava mal a ninguém. tipo, eu não era um cara ruim.talvez fosse mesmo melhor que a lena despejasse
Eu ainda ofegava. Sentia os pneus começarem a girar, pegando velocidade progressivamente. Logo tomaríamos distância da praça rumo à guarita. A superfície em que eu estava sentado era fria, e, embora o escuro fosse absoluto, eu conseguia sentir a presença de outras pessoas ao redor.Contorci os braços. Puxei as mãos como se fosse forte o bastante para arrebentar as algemas, mas elas continuavam atadas uma a outra atrás das minhas costas.A noção do que estava acontecendo vinha em forma de fluxos: eu estava preso no furgão. O furgão ia para o Núcleo. Mas os Margons nunca iam para o Núcleo. Eu precisava sair!Levantei-me. A movimentação do veículo me fez desequilibrar. Caí de lado e, sem poder amparar meu corpo com as mãos, bati com o braço no chão. Ouvi risadas graves.— Sossega esse facho, rap