Foi apenas à noite que pude retornar ao refúgio dos meus tesouros. Tive que me satisfazer com somente a sensação de ter meu novo livro velho nas mãos, pois àquela hora a floresta já estava escura e eu não podia distinguir as palavras no papel, meus olhos doíam quando eu tentava forçá-los.
Por entre as árvores, andando alguns poucos minutos desde o córrego, era possível ver as cercas que contornavam a casa de argamassa fina, toda branqueada com cal. Quando entrei, estremeci de frio; desejei poder despir o casaco, porém o interior estava quase tão gelado quanto as ruas lá fora.
— Passou na venda? — perguntou meu pai. Ele estava de costas à porta, em frente à lareira, com os braços cruzados enquanto observava as chamas.
Apoiei as sacolas de papel sobre a mesa e exprimi um gemido, sinalizando que sim.
A sala tinha cheiro de lenha queimada. Uma poeira negra começava a se acumular aos poucos sobre as superfícies dos móveis.
Lena, que até então permanecia sentada no chão ao lado do pai, esfregando as mãozinhas uma na outra, levantou-se e correu até mim, agarrando-me pela cintura com um sorriso.
— Isso tudo é saudade? — perguntei. A garota balançou a cabeça positivamente, mas eu sabia que era apenas vontade de receber o que eu havia trazido.
Tirei uma grossa cenoura de uma das sacolas e entreguei a ela. Lena agradeceu e saiu correndo para o quarto.
Eu ainda sorria quando meu pai resmungou:
— Já disse para não gastar dinheiro com isso.
— Hoje é o dia da cenoura — respondi. — É inviável que Lena não receba uma cenoura no dia da cenoura.
Ela alimentava Espicho, sua lebre de estimação, com qualquer outra coisa durante o resto da semana, mas às quintas-feiras era esperado que eu lhe trouxesse uma cenoura fresca digna de um banquete. Ela dizia que Espicho fazia uma cara engraçada quando comia e que, por isso, era divertido lhe dar de comer. Meu pai sempre ameaçava fazer do animal um ensopado, o que deixava Lena horrorizada, mesmo que no fundo todos soubéssemos que ele não teria coragem. Por mais que Espicho representasse mais uma boca para alimentar, era também um membro da família, e nos lembrava de uma época em que nossa mãe era viva.
— Eu trouxe a sua também — falei.
Ele rapidamente deixou suas implicâncias de lado, ainda que se contivesse para não correr até mim, como Lena acabara de fazer. Retirei da sacola a garrafa de vidro e a deixei na sala, depois rumei à cozinha para guardar o resto das compras na geladeira.
Mais tarde, Lena preparou peixe frito com ervilhas para o jantar.
— Farid não voltou ainda — murmurou minha irmã ao se servir.
Lancei um olhar inconsciente à porta da frente.
— Ele vai aparecer perto da hora de dormir — falei. Eu não sabia o que meu irmão fazia na rua até tarde, mas nunca questionava.
Lena não estava preocupada com isso, apenas queria roubar o filé de peixe do irmão, já que sua porção não a manteria saciada a noite toda, como vinha acontecendo nos últimos dias.
Sem pensar muito, separei um pedaço do meu próprio jantar e depositei em seu prato. Lena sorriu, agradecida.
— Você não deveria dispensar comida — resmungou meu pai. Ele tinha a maior porção, mas devorava tudo tão rapidamente que quase já não havia nada no seu prato. — Nesta época do ano, ninguém deveria.
Limitei-me a ignorá-lo, mas eu sabia que tinha razão. Em cerca de uma semana, chegaríamos ao fim de mais um ciclo anual. Era época de festa, de comemoração e de expectativas. Consequentemente, o preço da carne e do peixe dobrava.
Durante o jantar, ninguém se pronunciava; estávamos todos pensativos com os próximos eventos da semana. Na sexta-feira, Lena receberia o resultado de seu teste vocacional, uma avaliação realizada na província, cujo objetivo era definir a área de atuação ocupacional de cada jovem de doze anos. Dizia-se que o teste era uma maneira de auxiliar os jovens a encontrar o trabalho ideal. Desde os falecidos pais do meu pai, toda a família era conhecida na província como madeireiros, portanto era esperado que Lena seguisse a linhagem. Isso não tinha nada a ver com tradição: nosso status era tamanho que dentro de alguns anos acabaríamos tomando posse da única madeireira da cidade — algo ao que meu pai ansiava.
Lena costumava se fazer de durona, falava que ninguém a mandaria trabalhar em qualquer coisa senão aquilo ao que ela tinha sido criada para fazer, mas eu percebia sua insegurança quando o pai estava por perto e o assunto vinha à tona.
Após a refeição, todos nos prostramos em frente à lareira. O fogo brando aquecia meus braços, mas as costas continuavam frias. A verdade era que desejávamos ligar o aquecedor, assim poderíamos cada um descansar em seu canto, mas desde que a cobrança pela energia elétrica encarecera tanto, todos concordávamos que o ideal era restringir o uso de alguns aparelhos domésticos. Por conta disso, éramos obrigados a nos aquecer diante das chamas.
De todo modo, não era tão ruim ficar sentado no chão, ao lado da minha irmã. Observávamos a madeira ganhar uma cor viva e incandescente antes de ser consumida à carvão. O ar tinha um cheiro doce de nostalgia, como numa época passada em que desligávamos o aquecedor com o único intuito de passarmos um tempo juntos.
Aquela noite, mais tarde, Lena dormiu abraçada com Espicho, um costume que havia deixado de lado há um ou dois anos.
Pela manhã, tive que reunir forças para me levantar da cama, imaginando como seria bom descansar no feriado que estava por vir. Passei a tarde transportando madeira para a traseira da caminhonete de Plinio, um rapaz gorducho que parecia ter o dobro de sua idade e que sempre cheirava a suor. Ele era também meu único chefe, portanto tive que conter minha insatisfação quando ele pediu ajuda para entregar toda aquela madeira na praça central.
Enquanto descíamos a serra que separava o complexo habitacional do Centro da província, eu podia ver à distância os enormes arranha-céus coloridos. Perguntava-me outra vez como alguém tinha conseguido construir prédios tão altos. Eu nunca saberia, pois eles pertenciam ao Núcleo, um lugar onde eu jamais pisaria.
Eu morava com minha família numa das províncias, como eram chamadas as cidadelas da região. Havia mais cinco cidades como a minha, todas dispostas ao redor do Núcleo — uma sétima localidade. Elas eram consideravelmente extensas, mas pequenas, se comparadas com o resto do continente. Juntas, as sete cidades formavam uma só nação, a Colmeia, chamada assim devido ao posicionamento geográfico das cidadelas. Certa vez, eu encontrara um livro de História com uma gravura: a distribuição simétrica das províncias ao redor do Núcleo fazia toda a região parecer, de fato, uma colmeia de abelhas.
No entanto, essa informação era bem mais do que muitos de nós, os páuperes — habitantes das províncias — podíamos ter. A maioria era ignorante, aprendendo o bastante apenas para trabalhar nas funções que lhes eram designadas pelos testes vocacionais, tendo escasso acesso a qualquer tipo de material de aprendizagem. Eu sabia que as coisas não eram assim no Núcleo, um lugar onde os recursos eram abundantes e as pessoas dispunham de todo tipo de conforto; de lá vinham os livros que eu encontrava em meio ao lixo: desfaziam-se do conhecimento impresso porque sabedoria com certeza lhes era barata. Era isso no que eu acreditava, mas ninguém sabia muito sobre o que realmente existia para além das fronteiras entre os vilarejos miseráveis das províncias e a suntuosa cidade no centro de tudo; durante décadas, poucos de nós estiveram lá, e os que tiveram a chance de conhecê-la nunca haviam retornado. Os páuperes apenas imaginavam a vida que devia existir detrás dos muros do Núcleo, por meio de pequenas evidências como a vista magnânima que tínhamos àquela altura da serra, contemplando alguns arranha-céus e estradas pavimentadas quilômetros abaixo.
Tínhamos a praça central, um dos nossos poucos locais de lazer. Não sabíamos se as outras províncias também dispunham de algo assim, pois páuperes de diferentes localidades nunca se encontravam.
Ao chegarmos à praça, algumas carroças circulavam pelos jardins, crianças brincavam na areia suja e idosos se sentavam nos bancos de concreto. Não se via muitos jovens por ali, afinal a noite de sábado se aproximava e com ela era esperada a grande festa pública que sucedia os resultados dos testes vocacionais. Uma vez ao ano, durante o inverno, vislumbravam-se os comerciantes pendurando bandeirinhas nas árvores e postes de luz, jovens enfeitando seus corpos com todo tipo de adereço brilhoso: eram as tradições que precediam a Festa da Grande Emersão.
Eu estava no meio de tudo isso, mas não me sentia disposto a festejar; folguedo como esse era um despropósito, já que o ano seguinte não traria nada de mais; a única razão para eu perambular pela praça naquela tarde era a obrigação de encher de lenha seca a enorme fogueira que preparavam para amanhã. Pois que este era o meu trabalho: garantir que todos tivessem madeira em suas lareiras, canteiros de obra ou fogueiras em tempos de folia.
Levei a madeira até a área especificada; era pesada, como de costume, mas eu não tinha problema para carregá-la. Ao redor, ouvia-se os gritos animados das crianças, o vozerio indistinto. O vento frio da manhã soprava areia para o alto e me obrigava a piscar o tempo todo a fim de proteger os olhos.
Quando a traseira da caminhonete se esvaziou e Plinio foi tratar dos negócios com o cliente, avistei a barraca de Alve. O rapaz era um jovem mercador, rechonchudo e desengonçado, que sempre colocava seus produtos à disposição dos transeuntes da praça central, mesmo que muitos dos itens vendidos não fossem legais. Ele vinha carregando duas caixas grandes de aparência pesada desde sua carroça até a estrutura de ferro e tábuas em que acomodava suas peças; estava prestes a deixá-las cair quando as segurei pelo outro lado. O rapaz quase pulou para trás, sentindo que alguém havia posto as mãos em seus produtos, mas, quando ouviu minha voz, soltou uma gargalhada aliviada.
— Eita, você sempre chega na hora certa! — exclamou ele, enquanto apoiávamos as caixas no chão.
— O que acontece quando não estou por perto para salvar o dia? — perguntei.
Alve bufou.
— Aí as caixas caem e eu fico triste. Mas, para minha sorte, você quase sempre está por perto, não é?
Olhei ao redor, observando a inquietação das pessoas. Dessa vez, gostaria de não estar.
Alve abriu uma das caixas e começou a retirar dela mercadorias, dispondo-as sobre a tábua da barraca. Prataria, bijuterias e mais algumas bugigangas feitas de alumínio, que eu não sabia identificar o que eram. Às vezes eu me perguntava se era realmente possível ganhar algum dinheiro vendendo aquilo.
Algo no interior da caixa tilintou; inclinei-me para frente a fim de espiar dentro dela. Foi então que Alve se inquietou, como se tivesse acabado de se lembrar de alguma coisa importante.
— Consegui um produto novo, guri. Esqueci de dizer! — Tentou manter o tom de voz baixo. Ele empurrou com os pés a caixa na minha direção, revelando uma fileira de frascos cheios de um líquido azul. — Mal pude acreditar quando pus as mãos nessas belezinhas.
Semicerrei os olhos. Aquele líquido era um soro muito caro que o Núcleo mandava mensalmente para o posto de saúde da província. Há cerca de duas semanas, o transporte dos materiais hospitalares havia sido interceptado, e centenas de frascos daquele líquido tinham desaparecido. Apesar de ser um remédio controlado, era cobiçado por muitos páuperes por acreditarem fazer bem à pele. Era óbvio que Alve não deveria tê-los consigo.
— Você não pretende vender isso aí, não é? — Lancei a Alve um olhar de repreensão.
— Já vendi alguns. Você não imagina o quanto as pessoas pagam por um desses — respondeu, com um sorriso orgulhoso.
— Isso vai contra as regras. O Núcleo emitiu nota oficial a respeito. Qualquer um que seja visto com as coisas roubadas daquele dia deverá ser punido!
— E desde quando você se preocupa com as regras? — perguntou numa voz esganiçada de deboche. — Sabe muito bem que andar pela Escória é proibido e perigoso...
— Eu me arrisco quando sei que ninguém está vendo, não na praça central e na frente de todo mundo.
Ele deu de ombros.
— Então você não vai querer comprar nenhum? — inferiu, com as sobrancelhas levantadas. — Posso fazer um desconto, já que você é meu amigo.
Minha vontade era de sacudi-lo até que Alve tomasse consciência de seus atos, mas ele era um caso perdido. Apenas grunhi em resposta, repreendendo-o com uma expressão de desapontamento.
Eu era amigo de Alve Sorcier há mais tempo do que qualquer um dos dois podia lembrar. Ele tinha, assim como minha irmã, um afã por animais domésticos, era viciado em café e passava a maior parte do tempo tentando faturar algum dinheiro fácil. Sedentário, quase não saía de casa e preferia jogar jogos eletrônicos em seu computador, que, de tão velho, praticamente já não funcionava.
— Não seja tão rabugento! — rosnou ele. — São tempos de festa.
Fiz uma careta.
— Sabe o que penso sobre isso.
Ele estalou a língua num muxoxo.
— Você soa como minha avó quando fala da Festa da Grande Emersão.
— Sua avó parece ser uma pessoa sensata.
— Ela acha que camundongos são chinchilas possuídas por algum espírito maligno. Não acho que isso seja sensato — rebateu.
Dei de ombros.
— Ela tem razão em achar estúpida toda essa mobilização — anuí. — Todo ano os testes vocacionais são feitos. Todo ano enfeitamos a cidade. E tudo isso para quê?
— Para nos divertirmos, ora!
— Você sabe que esse não é o verdadeiro motivo.
Na Festa da Grande Emersão, realizada todo último sábado do ano, os páuperes tinham uma razão a mais para se alvoroçar. Nesse dia, a província era inundada por representantes do Núcleo, homens altos e bem-vestidos vindos do outro lado das fronteiras; eram os chamados olheiros e, até onde eu sabia, faziam nada além de perambular pela cidade coletando informações. Era a única época em que habitantes do Núcleo podiam ser vistos na província, após isso eles iam embora e só voltavam no fim do ano seguinte. A comoção das pessoas mediante a presença intimidadora desses olheiros tinha motivo: eles levavam páuperes consigo toda vez, todo o caminho pela ponte de ferro. Não se sabia qual era o interesse daqueles homens quanto à população torpe da província, mas todos faziam o que podiam para chamar sua atenção, esperançosos com a possibilidade de serem levados para um lugar melhor.
Alve lançou um olhar vago em direção ao fim da praça. Embora fosse impossível ver daqui o limite entre a província e as terras do Núcleo, eu sabia que ele imaginava a velha ponte de ferro.
— As pessoas querem uma chance. É um motivo nobre — falou, ligeiramente distraído.
— Nesse caso, uma chance pode não ser coisa boa.
O rapaz terminou de arrumar todos os seus cacarecos sobre a barraca, e então se virou para mim com cara de quem não estava satisfeito em discutir sobre aquele assunto.
— Por tudo o que é mais venusto! Você vê como esses olheiros se vestem, guri. Eles cheiram como pele de bebê, mesmo sendo só um pouco mais novos do que a soma da nossa idade — argumentou. — Você nunca viu as ruas do Núcleo lá do alto da serra?
— Claro que sim...
— Aquele lugar é diferente deste aqui. Aposto que eu não precisaria vender porta-incensos numa sexta-feira se tivesse a chance de viver lá — disse, segurando um dos objetos inidentificáveis que permaneciam à disposição na sua barraca. Agora eu sabia que aquilo era um porta-incenso.
Cruzei os braços.
— Como pode ter tanta certeza?
Alve se empertigou antes de se abaixar e começar a revirar uma outra caixa.
— Não acredito que vamos ter esta conversa de novo!
Eu sabia o que ele estava procurando.
— Está bem, não precisamos tê-la — cedi.
Mas já era tarde demais. Alve sacou um calhamaço de dentro da caixa. Eu já havia visto aquele livro milhares de vezes. O título em alto relevo na capa vinho desgastada se apresentava por si só: Fundamentos Primordiais.
— Está tudo aqui, guri — disse Alve, sacudindo o exemplar. — Se você se preocupasse em ler o que realmente importa em vez de seja lá o que você pega do lixo, com certeza saberia de tudo isso.
Soltei um gemido sofrido.
— Lá vamos nós de novo...
Alve abriu o livro e o folheou. Eu detestava quando ele lia qualquer coisa em voz alta — Alve tinha, em geral, uma dicção horrível —, especialmente quando eram trechos dos Fundamentos Primordiais.
Aquele não era um livro qualquer, era uma espécie de “código de boa conduta” distribuído gratuitamente na região. A maioria dos páuperes carregava um exemplar consigo, acreditando que ele atraía boa sorte. Eram as palavras escritas pelos habitantes do Núcleo, as pessoas do lado de lá, dirigidas para nós.
Alve parou numa página e tocou o papel com a ponta do dedo.
— “A metrópole é o alicerce que sustenta todos, como as colunas que firmam vossa habitação e as raízes que nutrem o cedro do vosso jardim” — recitou, lendo devagar e colocando ênfase em quase todas as palavras.
— Alve, chega!
O rapaz levantou a palma no ar para que eu me calasse.
— “Àqueles que se afligem, não vos inquieteis um só dia. Em vez disso, ocupai-vos e diligenciai, pois a metrópole é o lugar onde a justiça impera, a riqueza é abundante e as belezas imortais” — continuou ele. — “E, principalmente, ela é por direito daqueles que pospe... pospre...” — enrolou-se.
— Prosperam.
— “Ela é por direito daqueles que prosperam e se esforçam” — repetiu.
Alve se interrompeu e me olhou com cara de “viu só?”. Ele já virava a página quando tomei os Fundamentos de sua mão e os fechei sem cerimônia. Ele bramiu e tentou puxar o exemplar de volta, claramente ofendido.
— Isso não prova nada. É só um livro! — objetei, apesar de saber que muitos o consideravam um tomo obrigatório e inquestionável.
Alve continuava lutando para pegar os Fundamentos de volta.
— Talvez eu devesse dizer o mesmo sobre os seus livros!
— A vida não é ficção, cara!
Ele conseguiu puxar os Fundamentos de volta. Afagou a capa como quem pedia desculpas.
— Por que você tem tanta dificuldade em acreditar que pode haver algo bom do outro lado? Por que acha que o que temos aqui na província é tudo o que existe?
Espalmei a superfície da barraca e rebati a pergunta.
— Por que você acredita em tudo o que lhe falam?
— Não tudo. Mas todo mundo já ouviu falar dos selecionados que atravessaram e depois mandaram cartas para a família dizendo como o lado de lá é muito melhor do que este aqui.
— Isso é algo que as pessoas dizem — contestei. — Mas ninguém nunca realmente recebeu notícia.
Alve deu de ombros.
— Não dá para discutir com você assim. Você não tem argumentos, simplesmente desacredita tudo.
— Minha mãe também não confiava neles.
— Talvez por isso esteja morta... — Alve corou imediatamente, assim que percebeu o peso das palavras que tinha acabado de dizer, sem nem completar o pensamento. Não pude evitar o ímpeto de desviar o rosto, sentindo aquela sensação gelada, como sempre sentia quando alguém mencionava aquilo. — Quero dizer... bem, talvez... Ah, cara, foi mal! Eu não quis dizer isso.
Alve espremeu os olhinhos verdes com força, como fazia quando estava sob estresse. Sua pele bem branca agora estava quase mais vermelha que seus cabelos ruivos. O rapaz geralmente tinha uma aparência desbotada e brilhante, e graças ao seu corpo gorducho, parecia sempre um ponto luminoso sob a luz do sol; dessa vez, porém, estava tão envergonhado que mais lembrava um tomate.
Eu sabia que ele não tinha a intenção de me ofender. A verdade era que eu não me importava que ele falasse sobre esse assunto, mas ainda reagia mal quando precisava lidar com tantas lembranças desagradáveis. Minha mãe morrera oito meses atrás, tinha perdido a luta contra uma doença degenerativa. Eu detestava que Alve usasse essa tragédia para corroborar suas ideias, mas ele era tão desgracioso que dificilmente me provocaria qualquer sentimento, senão, em outras circunstâncias, vontade de rir.
— Tudo bem... — tranquilizei.
— Eu não deveria ter dito isso.
— É, eu sei. Mas eu não me importo.
— Foi um descuido.
— Está bem, cara. Já chega! — repeti, balançando-o pelo ombro.
Alve finalmente abriu os olhos, e então tomou fôlego.
— Deixe este assunto de lado. Eles nunca selecionaram você, não vão selecionar agora — falou, cortando o papo.
De fato, eu jamais havia sido escolhido por um dos representantes do Núcleo, mas isso se dava porque eu me mantinha longe dos olheiros, de modo que não me percebessem. Diferentemente de como ocorria nas outras famílias, eu crescera ouvindo as fábulas que minha mãe contava na hora de dormir, e uma lição que eu sempre tirava delas era a de nunca acreditar na bondade de estranhos.
A maioria passava a vida toda sendo encorajada a pensar como Alve. Os Fundamentos Primordiais eram o único livro que muitos já haviam lido, e aqueles que não eram alfabetizados se satisfaziam em ouvir o que os demais tinham a dizer sobre o Núcleo. Essa era a principal razão, aliás, por que meu pai detestava que eu lesse qualquer coisa; também não acreditava no sistema e, portanto, achava que a função de todos os livros provenientes do Núcleo era ludibriar as pessoas.
Todos adoravam a Festa da Grande Emersão. Não era a primeira vez, desde que eu tinha chegado à maturidade, que vivia esse período do ano. As pessoas ansiavam por ele, muitas, inclusive, inscreviam-se por conta própria com solicitações para que fossem selecionadas pelos olheiros. Por temer ser escolhido contra minha vontade, eu desenvolvera técnicas para não chamar atenção: felizmente minha barba crescia volumosa, meus cabelos eram longos aos ombros. Cultivar uma aparência maltratada era a maneira mais eficiente de se manter invisível aos olhos dos representantes do Núcleo.
Ao menos era isso que eu ouvira dos meus pais desde cedo: ficar sob os holofotes não era boa ideia. Eles costumavam dizer que nada do que vinha do outro lado da grande ponte de ferro podia ser bom, e pela maneira imponente como os olheiros se portavam, eu não via motivos por que questionar. Não sabia como meus pais haviam começado a pensar assim, se isso era apenas uma desconfiança ou se fazia parte da criação que meus avós haviam lhes dado. Eu jamais saberia, de qualquer forma: os Margons evitavam conversar sobre esse assunto, e eu nunca havia conhecido meus avós vivos.
Alve não se convenceria. Além disso, de todo modo, Plinio acenava para mim ao lado da caminhonete, indicando à distância que já podíamos voltar ao complexo habitacional.
— Preciso ir agora — avisei.
Alve sacudiu a cabeça e me deu um abraço hesitante. Forcei um sorriso e voltei caminhando.
Era pertinente que eu tivesse tido aquela conversa com meu amigo. A vida bucólica e simples na província, estar próximo dos meus irmãos, viver na terra em que minha mãe havia nos criado: esses eram direitos dos quais eu jamais abriria mão. O que eu não sabia até então, apesar das evidências — e isso me faria temer ainda mais, caso pudesse prever —, era que dessa vez as coisas seriam um tanto diferentes.
No caminho de volta, o automóvel sacolejava mais do que na ida, agora que não carregávamos troncos na traseira. Pude ver o Núcleo mais uma vez enquanto o panorama diminuía gradativamente no retrovisor. O vento sacudia a copa das árvores no acostamento. O ar parecia rarefeito aqui do alto, fazendo-me sentir mais relaxado.Plinio me ofereceu um adiantamento para que eu pudesse comprar uma roupa bacana para a festa. Apesar de aceitar o dinheiro, eu não prometeria comparecer amanhã.— Se eu fosse mais jovem, vestiria algo muito bacana — dizia Plinio. — Todos me notariam. Todos olhariam para mim.Franzi o cenho.— Você tem quase a minha idade.Plinio estava nos vinte e poucos, apesar de parecer um tanto mais velho e ter a saúde muito fraca para alguém tão jovem. Ele ficou ligeiramente sem jeito.— É. Bem... é verdade &mda
A noite era impenetrável. Embora eu me sentisse exausto, era como se nenhuma parte de mim estivesse disposta a descansar. A cama rangia a cada movimento inquieto, o que já parecia estar durando horas. Eu sabia que a manhã chegaria e eu precisaria estar de pé, mas por mais que tentasse desligar a consciência, um pedaço dela continuava funcionando a todo vapor.Meus olhos se adaptaram muito rapidamente à pouca luz, que entrava no quarto através da janela e que vinha de um dos postes na calçada. Eu conseguia discernir o contorno da mancha que havia no teto, bem na direção do meu olhar, e a encarava por uma eternidade.Quando mais novo, eu costumava ter pesadelos, razão pela qual, por tantas vezes, recusara-me a me deitar. Com os anos, eles foram se tornando menos frequentes. Agora minha maior dificuldade não era me manter na cama, mas essencialmente dormir. Em pensamento, os aconteci
A celebração prosseguiu. Os mesmos feirantes realizavam seus rodízios; os jovens dançavam, agindo como se nada tivesse acontecido.Eu havia perdido Lena de vista. Mergulhei no tumulto e abri caminho. Gritei seu nome e consegui encontrá-la cerca de cinco minutos depois, perto da urna de madeira.— Eu disse para não se distanciar!Ela tinha um semblante culpado.— Desculpe, a multidão me arrastou.Lancei à garota um olhar complacente. Era mesmo muito fácil se perder naquela selva de pessoas.Retornamos a um ponto menos movimentado, e eu já me preparava para comprar algo para comermos quando Lena puxou meu braço com força.— O papai está aqui!Olhei na direção em que ela apontava e pude ver o homem de jaqueta vermelha chamativa, enroscado como uma serpente numa negra alta. Semicerrei os olhos, imaginando que a
Quando eu era criança, minha mãe me levava em passeios casuais pela floresta. Eu ficava fascinado com as aves, a vegetação densa e o córrego do rio, mas o que mais chamava minha atenção era uma planta de flor púrpura que crescia livremente por algumas partes da cidade. A beladona, como a mãe a chamava, era uma erva daninha; eu não entendia como podíamos considerar ruim algo tão insuspeito. Em seu caule brotavam pequenos frutos redondos de um negro profundo, que se assemelhavam a jabuticaba, e eu tinha vontade de botá-los na boca. Minha mãe sempre me fazia prometer que jamais experimentaria a fruta: embora as bagas fossem doces e saborosas, eram muito tóxicas, um punhado delas continha substância alucinógena forte o suficiente para me matar. Por isso eu sempre admirava as beladonas de longe, receoso de me aproximar delas, ainda que fossem tão bonitas que me fiz
De volta ao quarto, eu ainda tentava assimilar o que meu pai tinha dito. Lena estava sentada na sua cama, séria.— O papai está irritado, não é? — supôs ela.Sentei-me ao seu lado.— Não sabemos o que vai acontecer com ele — respondi, com sinceridade.Lena tomou fôlego.— Mas sabemos o que vai acontecer com a gente.Ela realmente ansiava pelo pagamento que nos seria concedido pelo Núcleo, estava claro. No entanto, eu não sabia se isso se tratava de pura ambição ou se ela apenas repetia o tipo de discurso que meu pai proferia quando estava embriagado.Observei minha irmã por alguns segundos. Ela sempre parecera mais nova que as garotas de sua idade, mas algo em seu semblante a transformava numa criança bem pequena agora — talvez fosse a serenidade com que lidava com a situação.Eu ainda n&ati
agora a droga dos gritos vinham da cozinha, mas eles sempre vinham de algum lugar. às vezes era meio chato, ainda mais quando eu tentava dormir. eu era um sujeito otimista, via pelo lado positivo. quando as pessoas se detestavam tanto, não prestavam atenção em mim. se tinha alguma coisa que eu sabia bem era que tudo tinha um preço, e que paz de espírito se comprava com a desarmonia dos outros. em geral, os oligarcas (aqueles filhos da puta), homens da milícia que guardavam as ruas da província, faziam patrulhas regulares, quando não montavam cabine no complexo habitacional. assim sendo, sempre que um prédio pegava fogo ou um ladrão era pego no centro da província, as patrulhas se esqueciam da existência do complexo. por que em casa seria diferente?mas eu não desejava mal a ninguém. tipo, eu não era um cara ruim.talvez fosse mesmo melhor que a lena despejasse
Eu ainda ofegava. Sentia os pneus começarem a girar, pegando velocidade progressivamente. Logo tomaríamos distância da praça rumo à guarita. A superfície em que eu estava sentado era fria, e, embora o escuro fosse absoluto, eu conseguia sentir a presença de outras pessoas ao redor.Contorci os braços. Puxei as mãos como se fosse forte o bastante para arrebentar as algemas, mas elas continuavam atadas uma a outra atrás das minhas costas.A noção do que estava acontecendo vinha em forma de fluxos: eu estava preso no furgão. O furgão ia para o Núcleo. Mas os Margons nunca iam para o Núcleo. Eu precisava sair!Levantei-me. A movimentação do veículo me fez desequilibrar. Caí de lado e, sem poder amparar meu corpo com as mãos, bati com o braço no chão. Ouvi risadas graves.— Sossega esse facho, rap
No dia, lembro-me de estar tonto. Tropeçava, tinha ralado o cotovelo. Ardia o braço e no estômago, mas eu não ligava...Eu me despedia do passado de escassez... essa seria a última vez que colocaria uma gota de gim barato na boca. Um novo futuro...Tinha visto os desgraçados da milícia levarem meu garoto. Tinha bebido, por isso não me lembrava muito bem. Talvez eu tenha sentido um pouco de remorso... ou até culpa... mas só até pensar que era para ter sido eu no lugar dele, apunhalado pelas costas. Eu tinha até me revoltado com a ideia de que me levariam embora. Todo o meu esforço para manter a família unida, e para quê? Meu filho era um moleque que não tinha respeito por ninguém. Esse era o problema dos jovens, mal saíam da casca do ovo e já achavam que podiam liderar o bando. Então que se foda... Simas deveria honrar meu bigode. Que