Nos dias subsequentes, os planejamentos continuaram. Já tínhamos o esboço perfeito da nossa rota de fuga. Ao contrário do que eu havia imaginado, ter a ajuda de Eidan e Kaira era proveitoso, de modo que fugir com eles talvez fosse menos perigoso do que fazê-lo sozinho. Eu ainda explorava Ventura, embora já conhecesse tudo o que precisava: o padrão das câmeras, o tempo que levaríamos para percorrer uma das ruas ao redor da alameda. Pelas calçadas, podíamos ver postes de luz, hidrantes high-tech e placas de sinalização. Eu memorizava cada ponto de referência a fim de me localizar mais facilmente.
Alve contrabandeou algumas ferramentas de sua loja. Ele também aproveitava os momentos livres para observar a chegada de abastecimento de produtos na alameda. De alguma forma, conseguira a façanha de acompanhar, da sacada de sua casa, o trabalho da equipe de manuten&cce
Às vezes eu tinha boas ideias. Minha professora do colégio costumava dizer que eu era criativa. Não era um elogio, criatividade era inútil, mas eu gostava disso. Eu tinha ideias na cozinha, o que por vezes me levava a inventar algo novo pra lanchar. Também costumava criar brincadeiras pra mostrar aos meus amigos. Eu não era boa em muitas coisas, mas tinha mesmo ideias bacanas.De vez em quando as pessoas eram bem cruéis. Era aí que eu ficava mais criativa ainda.Mas os outros não percebiam isso. Farid era um exemplo. Ele só me julgava, não gostava de mim, sempre me chamava de mal-apanhada e idiota. Só que ele era idiota também. Tão idiota que não conseguia perceber que era tão idiota assim.Meu irmão estava triste agora, mas eu não sentia pena. A mamãe costumava dizer que a família e
Faltavam minutos para meia-noite. Com uma mochila nas costas e o mapa de cartolina no compartimento da frente, eu aguardava aflito. Kaira e Eidan ainda perambulavam pela casa, limitados pelos comandos de seus respectivos jogadores, mas isso não duraria muito tempo, pois assim que o servidor se desligasse, eles recobrariam sua autonomia, e então fugiríamos da cidade.Eu poderia esperar sentado na poltrona do saguão, porém, estava tão ansioso que era incapaz de me manter parado; vagava, alternando o olhar entre o relógio e a porta da frente. Havia antecipado aquele momento por dias, verificara cada detalhe do plano para ter certeza de que nada daria errado.Alve tinha confirmado, no dia anterior, que sua parte estava feita. No entanto, ainda tínhamos que considerar diversas variáveis — nem todos os pormenores podiam ser previstos.Precisaríamos de sorte, mas principalmente de sangue-frio.
As águas noturnas, negras e misteriosas, escorregavam sob o barco como se velejássemos num véu.Pouco a pouco, a ilha sumia de vista. Olhei para o horizonte, ao oeste, onde mais tarde veria surgir o continente, e não pude evitar o arroubo de ânimo que me acometeu.Eu mal podia acreditar, mas em breve chegaria à província. Parecia fazer séculos desde que eu tinha estado em casa. Podia imaginar a indignação no rosto do meu pai, a surpresa de Farid e a alegria de Lena.De repente, a angústia das últimas semanas parecia pequena comparada com o prazer de eu me ver, desde tanto tempo, liberto.Isso me remeteu ao meu velho dilema de infância, quando um pensamento parecia contagiar os sentidos, com tamanha intensidade, capaz talvez de durar a eternidade. A ideia de contemplar o sorriso da minha irmã; de visitar a madeireira; de correr pela floresta que ladeava minha ca
Eu contava as más notícias à Magister. Ela se sentava no centro de sua mesa em formato de meia-lua. Estávamos em seu escritório, de interior amplo e circular. Eu sempre admirara sua sala: a maneira como a projeção dimensional no piso dava a sensação de que o chão era fofo como areia sob os pés, as janelas amplas que proporcionavam o vislumbre da parte mais bela da cidade.Nos últimos anos, a Corte vinha travando uma batalha ferrenha contra a mentalidade conservadora, lidávamos com os rebeldes: criaturas asquerosas, sempre tentando "ver além do momento". O Simulador era uma manobra para direcionar sua atenção a algo que não fosse prejudicial ao interesse do Núcleo.Por conta disso, a ideia de que alguns provincianos haviam conseguido escapar da ilha de Ventura era preocupante. Além disso, havia aquela bronca se esgueirando pela cidade; uma
Para nós, é uma grande realização finalizar esta primeira etapa da série. Não teria sido possível sem todas as palavras amigas, os incentivos calorosos e, acima de tudo, a confiança que recebemos. Gostaríamos de agradecer imensamente àqueles que nos auxiliaram:Natalia Saj, por ter produzido as lindas capas da série e ter sido uma das nossas primeiras leitoras críticas.Hellen Caroline, por sua incomparável dedicação à revisão da obra. Uma pessoa incrível e uma profissional talentosa que tivemos a sorte de encontrar na reta final do processo.Rodolfo Marques, por ter nos concedido uma de suas virtuosas composições para que usássemos na divulgação, bem como por nos ajudar com nossas pesquisas para a obra.Sandro Aragão, por sua disposição e competência ao bater nossas fot
Ele empurrou uma porta cinza e me guiou para o interior do prédio. Entramos por um corredor que nos levou até um elevador circular. O ambiente era opressivo, ou talvez fosse o frio na minha barriga que tornasse tudo tão intimidante. Após um saguão e uma porta, fui deixado sozinho numa sala escura. Havia apenas uma plataforma no centro, onde me posicionei, seguindo as instruções.Durante uns segundos, o local permaneceu em absoluta escuridão. Em seguida, tudo começou a se iluminar em tons de azul. Uma música tocava, e era, mais uma vez, muito diferente de tudo que eu já havia escutado.Eu estava atônito.Imagens começaram a percorrer a sala, saltando por toda parte; cruzavam o ar como projéteis; a princípio, supus que fossem reproduzidas por telas, mas a própria luz parecia sólida. Palavras, símbolos e sinais. Tudo era novidade para mim: at
Quanto realmente dura um pensamento?Esta era a pergunta. Quanto tempo decorre do momento em que se formula um pensamento até o instante em que ele vai embora?Às vezes, quando mais jovem, eu olhava para o céu e me dava conta de que choveria, e então me atinha a isso, à concepção de que a chuva estava por vir, tentando estudá-la por todo o tempo em que ela estivesse comigo. Mas, de uma maneira ou de outra, como quando eu contava os minutos antes de dormir, era impraticável cronometrar a duração de uma ideia.Sempre fui assim: perguntas não me agradavam, a menos que viessem acompanhadas de resposta — ou, minimamente, da possibilidade de existir uma resposta. Mas eu sabia desde criança que ninguém elucidaria essa dúvida pessoal, sobre a duração das coisas que não podemos medir. Ninguém se importava. Talvez nin
Foi apenas à noite que pude retornar ao refúgio dos meus tesouros. Tive que me satisfazer com somente a sensação de ter meu novo livro velho nas mãos, pois àquela hora a floresta já estava escura e eu não podia distinguir as palavras no papel, meus olhos doíam quando eu tentava forçá-los.Por entre as árvores, andando alguns poucos minutos desde o córrego, era possível ver as cercas que contornavam a casa de argamassa fina, toda branqueada com cal. Quando entrei, estremeci de frio; desejei poder despir o casaco, porém o interior estava quase tão gelado quanto as ruas lá fora.— Passou na venda? — perguntou meu pai. Ele estava de costas à porta, em frente à lareira, com os braços cruzados enquanto observava as chamas.Apoiei as sacolas de papel sobre a mesa e exprimi um gemido, sinalizando que sim.A sala t