Quando eu era criança, minha mãe me levava em passeios casuais pela floresta. Eu ficava fascinado com as aves, a vegetação densa e o córrego do rio, mas o que mais chamava minha atenção era uma planta de flor púrpura que crescia livremente por algumas partes da cidade. A beladona, como a mãe a chamava, era uma erva daninha; eu não entendia como podíamos considerar ruim algo tão insuspeito. Em seu caule brotavam pequenos frutos redondos de um negro profundo, que se assemelhavam a jabuticaba, e eu tinha vontade de botá-los na boca. Minha mãe sempre me fazia prometer que jamais experimentaria a fruta: embora as bagas fossem doces e saborosas, eram muito tóxicas, um punhado delas continha substância alucinógena forte o suficiente para me matar. Por isso eu sempre admirava as beladonas de longe, receoso de me aproximar delas, ainda que fossem tão bonitas que me fiz
De volta ao quarto, eu ainda tentava assimilar o que meu pai tinha dito. Lena estava sentada na sua cama, séria.— O papai está irritado, não é? — supôs ela.Sentei-me ao seu lado.— Não sabemos o que vai acontecer com ele — respondi, com sinceridade.Lena tomou fôlego.— Mas sabemos o que vai acontecer com a gente.Ela realmente ansiava pelo pagamento que nos seria concedido pelo Núcleo, estava claro. No entanto, eu não sabia se isso se tratava de pura ambição ou se ela apenas repetia o tipo de discurso que meu pai proferia quando estava embriagado.Observei minha irmã por alguns segundos. Ela sempre parecera mais nova que as garotas de sua idade, mas algo em seu semblante a transformava numa criança bem pequena agora — talvez fosse a serenidade com que lidava com a situação.Eu ainda n&ati
agora a droga dos gritos vinham da cozinha, mas eles sempre vinham de algum lugar. às vezes era meio chato, ainda mais quando eu tentava dormir. eu era um sujeito otimista, via pelo lado positivo. quando as pessoas se detestavam tanto, não prestavam atenção em mim. se tinha alguma coisa que eu sabia bem era que tudo tinha um preço, e que paz de espírito se comprava com a desarmonia dos outros. em geral, os oligarcas (aqueles filhos da puta), homens da milícia que guardavam as ruas da província, faziam patrulhas regulares, quando não montavam cabine no complexo habitacional. assim sendo, sempre que um prédio pegava fogo ou um ladrão era pego no centro da província, as patrulhas se esqueciam da existência do complexo. por que em casa seria diferente?mas eu não desejava mal a ninguém. tipo, eu não era um cara ruim.talvez fosse mesmo melhor que a lena despejasse
Eu ainda ofegava. Sentia os pneus começarem a girar, pegando velocidade progressivamente. Logo tomaríamos distância da praça rumo à guarita. A superfície em que eu estava sentado era fria, e, embora o escuro fosse absoluto, eu conseguia sentir a presença de outras pessoas ao redor.Contorci os braços. Puxei as mãos como se fosse forte o bastante para arrebentar as algemas, mas elas continuavam atadas uma a outra atrás das minhas costas.A noção do que estava acontecendo vinha em forma de fluxos: eu estava preso no furgão. O furgão ia para o Núcleo. Mas os Margons nunca iam para o Núcleo. Eu precisava sair!Levantei-me. A movimentação do veículo me fez desequilibrar. Caí de lado e, sem poder amparar meu corpo com as mãos, bati com o braço no chão. Ouvi risadas graves.— Sossega esse facho, rap
No dia, lembro-me de estar tonto. Tropeçava, tinha ralado o cotovelo. Ardia o braço e no estômago, mas eu não ligava...Eu me despedia do passado de escassez... essa seria a última vez que colocaria uma gota de gim barato na boca. Um novo futuro...Tinha visto os desgraçados da milícia levarem meu garoto. Tinha bebido, por isso não me lembrava muito bem. Talvez eu tenha sentido um pouco de remorso... ou até culpa... mas só até pensar que era para ter sido eu no lugar dele, apunhalado pelas costas. Eu tinha até me revoltado com a ideia de que me levariam embora. Todo o meu esforço para manter a família unida, e para quê? Meu filho era um moleque que não tinha respeito por ninguém. Esse era o problema dos jovens, mal saíam da casca do ovo e já achavam que podiam liderar o bando. Então que se foda... Simas deveria honrar meu bigode. Que
Meu primeiro vislumbre toda manhã costumava ser uma mancha no teto. Eu devia ter dez anos de idade quando uma infiltração havia se espalhado pela parede do quarto, dando origem a manchas de umidade por toda parte. Durante meses, meu pai prometera cobri-las de tinta e impermeabilizar tudo, mas essa sempre se tornava "a tarefa da semana que vem", portanto meus irmãos e eu convivêramos com os borrões por mais de dois anos e meio. Para ser sincero, isso nunca foi um incômodo, achava divertido tentar identificar formas nas nódoas enegrecidas. Por vezes, sentava-me ao lado de Lena, ainda tão pequena que nem tinha pronunciado suas primeiras palavras, e apontava para a parede, estimulando-a a distinguir silhuetas. Passáramos a tratar as manchas como gravuras bem-humoradas, como se fossem estampas num papel de parede. Surpreendentemente, elas se mostraram muito úteis: vez ou outra, alguém perguntava algo como "
Meus olhos queimavam. Eu sentia o sal na boca e isso aumentava mais ainda o enjoo. Meu pai estava sentado à mesa. Eu sabia que ele estava satisfeito. Ele era mau.Quando eu era criança, tinha medo dos animais noturnos da floresta. Meus irmãos diziam que quando eu fosse mais velha não ia sentir medo de coisas bobas. Simas dizia que agora eu era uma moça. Mas eu ainda tinha medo, o tempo todo, e não era de animais. Eu preferia continuar tendo medo de animais.No dia em que me contaram sobre a morte da mamãe, eu tinha abraçado o papai, implorando que ele dissesse que não era verdade, dissesse que ele ia consertar a situação. O resto da família ainda estava viva, mas de repente passei a me sentir mais sozinha. Meu pai tinha começado a fazer aquelas coisas feias. Simas discutia com ele à noite. Eu sabia que não tinha perdido apenas minha m&ati
Mais tarde, eles voltaram. Dessa vez, era mesmo a Assistente 44. Aplicaram-me mais um soro na veia, então dormi por mais algum tempo. Ouvi alguém falar sobre "choque circulatório leve". Acariciaram-me mais uma vez. Quando eu acordei, estava num outro quarto, esse um tanto mais amplo; todas as paredes eram cobertas por espelhos. As feridas tinham sido fechadas de alguma forma.Por horas, tudo o que fiz foi me manter quieto num canto, de cabeça baixa. Por fim, não tendo como desviar o olhar, comecei, pouco a pouco, a ver meu rosto no reflexo desconhecido.Meu queixo felizmente ainda era o mesmo.Eu permeava um torpor, como se sempre estivesse com sono. Já não podia contar os dias que passavam. Ao longo do tempo, eles continuavam bombardeando meu organismo com seus tranquilizantes, disso eu sabia.— Precisamos nos certificar de que você está mais cooperativo — alguém explicou em
Coloquei-me de pé. Ouviu-se o freio repentino do furgão. Alguém gritou. Uma pontada espamódica atravessou minha coxa. Minhas palmas ardiam. Sem perder tempo, atravessei o acostamento e me abriguei sob as árvores, sabendo que seus troncos finos não me serviriam por muito tempo. A alguns metros, pude ver mais dois selecionados disparando para longe do furgão. Pessoas deixavam seus veículos. Uma fumaça escura se dissipava no ar."Não deixe que escapem!", alguém ordenou. Aí vi o capacete branco de um guarda.Pus-me a correr. Nos primeiros segundos, uma sensação aguda insistente me atormentava sempre que eu apoiava o calcanhar no chão, mas a adrenalina fervia meu sangue, e tudo com o que eu me preocupava era em cortar o bosque que ladeava a estrada larga, a fim de desaparecer de vista.Não ousei diminuir o ritmo. Quando estava quase cedendo ao cansaç