Meu primeiro vislumbre toda manhã costumava ser uma mancha no teto. Eu devia ter dez anos de idade quando uma infiltração havia se espalhado pela parede do quarto, dando origem a manchas de umidade por toda parte. Durante meses, meu pai prometera cobri-las de tinta e impermeabilizar tudo, mas essa sempre se tornava "a tarefa da semana que vem", portanto meus irmãos e eu convivêramos com os borrões por mais de dois anos e meio. Para ser sincero, isso nunca foi um incômodo, achava divertido tentar identificar formas nas nódoas enegrecidas. Por vezes, sentava-me ao lado de Lena, ainda tão pequena que nem tinha pronunciado suas primeiras palavras, e apontava para a parede, estimulando-a a distinguir silhuetas. Passáramos a tratar as manchas como gravuras bem-humoradas, como se fossem estampas num papel de parede. Surpreendentemente, elas se mostraram muito úteis: vez ou outra, alguém perguntava algo como "
Meus olhos queimavam. Eu sentia o sal na boca e isso aumentava mais ainda o enjoo. Meu pai estava sentado à mesa. Eu sabia que ele estava satisfeito. Ele era mau.Quando eu era criança, tinha medo dos animais noturnos da floresta. Meus irmãos diziam que quando eu fosse mais velha não ia sentir medo de coisas bobas. Simas dizia que agora eu era uma moça. Mas eu ainda tinha medo, o tempo todo, e não era de animais. Eu preferia continuar tendo medo de animais.No dia em que me contaram sobre a morte da mamãe, eu tinha abraçado o papai, implorando que ele dissesse que não era verdade, dissesse que ele ia consertar a situação. O resto da família ainda estava viva, mas de repente passei a me sentir mais sozinha. Meu pai tinha começado a fazer aquelas coisas feias. Simas discutia com ele à noite. Eu sabia que não tinha perdido apenas minha m&ati
Mais tarde, eles voltaram. Dessa vez, era mesmo a Assistente 44. Aplicaram-me mais um soro na veia, então dormi por mais algum tempo. Ouvi alguém falar sobre "choque circulatório leve". Acariciaram-me mais uma vez. Quando eu acordei, estava num outro quarto, esse um tanto mais amplo; todas as paredes eram cobertas por espelhos. As feridas tinham sido fechadas de alguma forma.Por horas, tudo o que fiz foi me manter quieto num canto, de cabeça baixa. Por fim, não tendo como desviar o olhar, comecei, pouco a pouco, a ver meu rosto no reflexo desconhecido.Meu queixo felizmente ainda era o mesmo.Eu permeava um torpor, como se sempre estivesse com sono. Já não podia contar os dias que passavam. Ao longo do tempo, eles continuavam bombardeando meu organismo com seus tranquilizantes, disso eu sabia.— Precisamos nos certificar de que você está mais cooperativo — alguém explicou em
Coloquei-me de pé. Ouviu-se o freio repentino do furgão. Alguém gritou. Uma pontada espamódica atravessou minha coxa. Minhas palmas ardiam. Sem perder tempo, atravessei o acostamento e me abriguei sob as árvores, sabendo que seus troncos finos não me serviriam por muito tempo. A alguns metros, pude ver mais dois selecionados disparando para longe do furgão. Pessoas deixavam seus veículos. Uma fumaça escura se dissipava no ar."Não deixe que escapem!", alguém ordenou. Aí vi o capacete branco de um guarda.Pus-me a correr. Nos primeiros segundos, uma sensação aguda insistente me atormentava sempre que eu apoiava o calcanhar no chão, mas a adrenalina fervia meu sangue, e tudo com o que eu me preocupava era em cortar o bosque que ladeava a estrada larga, a fim de desaparecer de vista.Não ousei diminuir o ritmo. Quando estava quase cedendo ao cansaç
Um minuto passava rápido. Esperei que a inconsciência viesse mais uma vez, mas minha punição era permanecer desperto. A ajuda não demorou a chegar: o metal da ponte rangeu outra vez, então fui conduzido para dentro de um transporte. Eu já não me mexia, algo dentro de mim parecia quebrado. Senti o caminho se desdobrar de volta ao Núcleo, como se uma força magnética se recusasse a me deixar partir.Aplicaram algo em mim. "Os ferimentos são superficiais", ouvi dizerem, "os projéteis são de material sintético". Estavam cuidando de mim, não queriam que eu morresse.Arrastaram-me pelos corredores brancos, e então eu me vi outra vez — como num déjà vu angustiante — no quarto onde tinham me mantido preso. Dessa vez, minhas mãos estavam atadas.Eu havia estado tão perto de casa, tão próximo da
A sensação era de mau agouro.A Assistente 44 deixou a sala logo atrás de Delos e retornou cerca de vinte minutos depois.— Não achei que o veria de novo, garoto — comentou.— O que vão fazer comigo? — perguntei. Minha voz saiu mais desesperada do que eu previra. — Aonde me levarão?— Você quase me arrumou um problema com essas suas perguntas — disse ela, colocando uma muda de roupas sobre a cama. — O que deu em você para tentar escapar daquele jeito?— Você me contou que seríamos todos escravizados.A mulher ponderou por um instante.— Talvez minhas palavras tenham dado margem a uma má interpretação. É por isso que somos instruídos a não falar demais.A Assistente 44 soltou as amarras, pedindo que eu não reagisse, caso contrário teria que me sedar
enfim a bebida tinha levado o velho. a gente nunca sabia quanto meu pai viveria, ainda era meio que jovem, mas eu já imaginava que o dia dele também ia chegar.já tínhamos velado o corpo. agora éramos só a lena e eu.tudo estava dando errado. primeiro a mãe, depois o simas e agora o velho góris. os margons nunca tinham passado por uma crise como essa.eu me sentia o último guerreiro num campo de batalha. sabia, desde sempre, que uma hora ou outra ia acabar virando o homem da família, só não esperava que a família fosse ficar tão pequena.sentia que devia consolar a lena, ela era só uma criança. passar por mudanças tão grandes, o tempo todo, devia afetar sua cabeça de alguma forma. mas eu não sabia o que dizer numa ocasião como essa. no início, ela chorou muito. foi chocante encontrar a lena gritando do l
olho por olho, dente por dente. uma máxima antiga que tinha passado de geração pra geração sem que a gente soubesse de onde veio. era a história da minha vida.as luzes da casa estavam apagadas, mas eu não poderia acendê-las nem se quisesse. eu mal tinha voltado do posto de saúde, onde tinha ficado desde o dia em que fui pego pela milícia. ainda sentia o efeito das drogas. estava dormente.eu já deveria saber que nas províncias ninguém estava livre do passado. na minha juventude, anos atrás, eu tinha cometido um erro, e minha invalidez servia não só pra me impedir de repeti-lo, mas pra me deixar marcado. uma reputação ruim podia perseguir um homem à ruína. ninguém tinha investigado nada. uma vez criminoso, criminoso até a morte.agora eu chorava num canto da sala. já não podia limpar o rosto. estav
O momento era quase lúdico. Deitado no colchão quente, eu me sentia confortável. As cobertas eram de tecido leve como pluma. Eu não tinha nenhuma pressa de acordar ou dificuldade de acreditar que eu houvesse mesmo ido me deitar na noite passada.Por fim, abri os olhos e encarei o teto. Alguma coisa estava errada, absurdamente errada. Eu estava consciente, mas ainda preso num sonho.Então empurrei as cobertas, de modo tão repentino que surpreendi a mim mesmo. Eu estava num quarto decorado e mobiliado; havia adesivos colados nos móveis e pôsteres nas paredes. Não era nada parecido com as quinas circulares e corredores brancos cromados.Caminhei até o banheiro e, com a tranquilidade de quem não tinha preocupação nenhuma, escovei os dentes. Ainda estava um tanto grogue, as palmas das minhas mãos estavam insensíveis como se não fossem realmente minhas.<