O momento era quase lúdico. Deitado no colchão quente, eu me sentia confortável. As cobertas eram de tecido leve como pluma. Eu não tinha nenhuma pressa de acordar ou dificuldade de acreditar que eu houvesse mesmo ido me deitar na noite passada.
Por fim, abri os olhos e encarei o teto. Alguma coisa estava errada, absurdamente errada. Eu estava consciente, mas ainda preso num sonho.
Então empurrei as cobertas, de modo tão repentino que surpreendi a mim mesmo. Eu estava num quarto decorado e mobiliado; havia adesivos colados nos móveis e pôsteres nas paredes. Não era nada parecido com as quinas circulares e corredores brancos cromados.
Caminhei até o banheiro e, com a tranquilidade de quem não tinha preocupação nenhuma, escovei os dentes. Ainda estava um tanto grogue, as palmas das minhas mãos estavam insensíveis como se não fossem realmente minhas.
<Sentei-me à mesa pouco antes que a garota servisse meu prato. Todos ficaram em silêncio. Meu coração batia forte, e eu sentia espasmos em diferentes pontos do corpo, como se uma parte de mim lutasse para quebrar a maldição que me aprisionava.Nada parecia real. A maneira perfeita como o café da manhã se dispunha sobre a mesa, os azulejos brancos e limpos, as superfícies imaculadas dos móveis de madeira. Até a forma como permanecíamos parados era pouco natural.Era possível ouvir o cantar de pássaros lá fora. A luz do sol cruzava as janelas de cortinas abertas. O perfume de café fresco se misturava ao cheiro de plástico novo.Observei meus braços, implorando em pensamento que eles se movessem, mas continuavam parados como se desdenhassem de mim.Alguns anos atrás, na praça central da província, durante um evento
Imóvel na sala de estar, eu não poderia me sentir mais curioso e desorientado. Não me esqueceria tão cedo daquele codinome — possivelmente nunca, caso passasse o resto da minha vida nessa cidade. "B" era a única informação que eu tinha sobre a pessoa que me colocara no jogo, que controlava meus movimentos todo dia e tomava decisões por mim. De fato, eu me perguntara algumas vezes se descobriria quem ele era. Tudo o que eu sabia, até então, era que ele não gostava de mostrar o rosto e que era um habitante do Núcleo.Ouvi um barulho metálico de estática. Apertei os olhos, esperando passar.— Olá? Ainda está me escutando? — perguntou ele.— Onde está você?— No meu computador...— Você não está aqui?— Claro que não! — disse, como se aquela fosse u
Se algo eu havia aprendido com meus serviços de madeireiro era que a destruição podia ser boa. Ninguém esperava que uma árvore se tornasse um guarda-roupa por conta própria. É claro que se um tronco pudesse falar, pediria que não o derrubassem. Mas, de uma maneira geral, o ciclo de devastar para depois construir era natural e — por que não —, de certa forma, romântico. Talvez essa fosse a ideia que, em primeiro lugar, havia me inspirado a aprender mecânica e marcenaria: a noção de que uma barra de ferro nunca era simplesmente um pedaço de metal, mas matéria prima cheia de potencial.Eu me lembrava do dia em que Lena se desfizera de sua cadeira de jantar favorita; minha irmã a recebera de Plinio aos cinco anos de idade, um assento feito de pinho, pintado de cor-de-rosa e marrom, decorado com algumas figurinhas adesivas. Por anos, Lena se recusara a comer se
Eu valorizava minhas mínimas ações. Escovar os dentes e pentear os cabelos ganhavam um novo significado.Entretanto eu não me sentia completamente satisfeito, mesmo podendo me mexer outra vez. A vida na província nunca havia sido boa, mas ao menos era verdadeira, e minha família precisava de mim tanto quanto eu precisava dela. A promessa de Benjamin transformava um tormento irremediável em esperança.Ainda no dia anterior, após Benjamin prometer que me ajudaria a deixar a ilha, debatêramos o modo como realizaríamos tal fuga. Ele mapearia a cidade e me informaria sobre todas as saídas disponíveis, além de me ensinar como evitar os mecanismos de segurança. O processo provavelmente demoraria dias, e nenhum de nós podia garantir que daria certo. Estranhamente, começamos a agir como se nunca tivéssemos discutido, e quando eu me dei conta disso, prefer
Dessa vez, Benjamin me deixou mais cedo. Ambos estávamos abalados com as últimas descobertas. Ele prometeu que pela manhã discutiríamos outra vez nosso plano de fuga. Agora que tínhamos ciência sobre o quartel general dos guardas de neoprene, era preciso tomar o dobro de cuidado em tudo o que fizéssemos.Dormir foi um desafio, imagens de caminhões e guardas armados sequestrando páuperes invadiam meus sonhos. Acordei mais cedo do que gostaria, pouco antes do sol trazer o início da manhã seguinte. Pus-me de pé e tomei um banho. Hoje teriam início os primeiros esboços do plano que, na melhor das hipóteses, me salvaria daquela ilha.Enquanto Benjamin não se reconectasse, eu não poderia fazer muito. Para não aumentar as suspeitas de Kaira e Eidan, o ideal seria permanecer longe de casa por algum tempo. Assim sendo, saí bem cedinho. Vasculhei as
Nos dias subsequentes, os planejamentos continuaram. Já tínhamos o esboço perfeito da nossa rota de fuga. Ao contrário do que eu havia imaginado, ter a ajuda de Eidan e Kaira era proveitoso, de modo que fugir com eles talvez fosse menos perigoso do que fazê-lo sozinho. Eu ainda explorava Ventura, embora já conhecesse tudo o que precisava: o padrão das câmeras, o tempo que levaríamos para percorrer uma das ruas ao redor da alameda. Pelas calçadas, podíamos ver postes de luz, hidrantes high-tech e placas de sinalização. Eu memorizava cada ponto de referência a fim de me localizar mais facilmente.Alve contrabandeou algumas ferramentas de sua loja. Ele também aproveitava os momentos livres para observar a chegada de abastecimento de produtos na alameda. De alguma forma, conseguira a façanha de acompanhar, da sacada de sua casa, o trabalho da equipe de manuten&cce
Às vezes eu tinha boas ideias. Minha professora do colégio costumava dizer que eu era criativa. Não era um elogio, criatividade era inútil, mas eu gostava disso. Eu tinha ideias na cozinha, o que por vezes me levava a inventar algo novo pra lanchar. Também costumava criar brincadeiras pra mostrar aos meus amigos. Eu não era boa em muitas coisas, mas tinha mesmo ideias bacanas.De vez em quando as pessoas eram bem cruéis. Era aí que eu ficava mais criativa ainda.Mas os outros não percebiam isso. Farid era um exemplo. Ele só me julgava, não gostava de mim, sempre me chamava de mal-apanhada e idiota. Só que ele era idiota também. Tão idiota que não conseguia perceber que era tão idiota assim.Meu irmão estava triste agora, mas eu não sentia pena. A mamãe costumava dizer que a família e
Faltavam minutos para meia-noite. Com uma mochila nas costas e o mapa de cartolina no compartimento da frente, eu aguardava aflito. Kaira e Eidan ainda perambulavam pela casa, limitados pelos comandos de seus respectivos jogadores, mas isso não duraria muito tempo, pois assim que o servidor se desligasse, eles recobrariam sua autonomia, e então fugiríamos da cidade.Eu poderia esperar sentado na poltrona do saguão, porém, estava tão ansioso que era incapaz de me manter parado; vagava, alternando o olhar entre o relógio e a porta da frente. Havia antecipado aquele momento por dias, verificara cada detalhe do plano para ter certeza de que nada daria errado.Alve tinha confirmado, no dia anterior, que sua parte estava feita. No entanto, ainda tínhamos que considerar diversas variáveis — nem todos os pormenores podiam ser previstos.Precisaríamos de sorte, mas principalmente de sangue-frio.