Coloquei-me de pé. Ouviu-se o freio repentino do furgão. Alguém gritou. Uma pontada espamódica atravessou minha coxa. Minhas palmas ardiam. Sem perder tempo, atravessei o acostamento e me abriguei sob as árvores, sabendo que seus troncos finos não me serviriam por muito tempo. A alguns metros, pude ver mais dois selecionados disparando para longe do furgão. Pessoas deixavam seus veículos. Uma fumaça escura se dissipava no ar.
"Não deixe que escapem!", alguém ordenou. Aí vi o capacete branco de um guarda.
Pus-me a correr. Nos primeiros segundos, uma sensação aguda insistente me atormentava sempre que eu apoiava o calcanhar no chão, mas a adrenalina fervia meu sangue, e tudo com o que eu me preocupava era em cortar o bosque que ladeava a estrada larga, a fim de desaparecer de vista.
Não ousei diminuir o ritmo. Quando estava quase cedendo ao cansaç
Um minuto passava rápido. Esperei que a inconsciência viesse mais uma vez, mas minha punição era permanecer desperto. A ajuda não demorou a chegar: o metal da ponte rangeu outra vez, então fui conduzido para dentro de um transporte. Eu já não me mexia, algo dentro de mim parecia quebrado. Senti o caminho se desdobrar de volta ao Núcleo, como se uma força magnética se recusasse a me deixar partir.Aplicaram algo em mim. "Os ferimentos são superficiais", ouvi dizerem, "os projéteis são de material sintético". Estavam cuidando de mim, não queriam que eu morresse.Arrastaram-me pelos corredores brancos, e então eu me vi outra vez — como num déjà vu angustiante — no quarto onde tinham me mantido preso. Dessa vez, minhas mãos estavam atadas.Eu havia estado tão perto de casa, tão próximo da
A sensação era de mau agouro.A Assistente 44 deixou a sala logo atrás de Delos e retornou cerca de vinte minutos depois.— Não achei que o veria de novo, garoto — comentou.— O que vão fazer comigo? — perguntei. Minha voz saiu mais desesperada do que eu previra. — Aonde me levarão?— Você quase me arrumou um problema com essas suas perguntas — disse ela, colocando uma muda de roupas sobre a cama. — O que deu em você para tentar escapar daquele jeito?— Você me contou que seríamos todos escravizados.A mulher ponderou por um instante.— Talvez minhas palavras tenham dado margem a uma má interpretação. É por isso que somos instruídos a não falar demais.A Assistente 44 soltou as amarras, pedindo que eu não reagisse, caso contrário teria que me sedar
enfim a bebida tinha levado o velho. a gente nunca sabia quanto meu pai viveria, ainda era meio que jovem, mas eu já imaginava que o dia dele também ia chegar.já tínhamos velado o corpo. agora éramos só a lena e eu.tudo estava dando errado. primeiro a mãe, depois o simas e agora o velho góris. os margons nunca tinham passado por uma crise como essa.eu me sentia o último guerreiro num campo de batalha. sabia, desde sempre, que uma hora ou outra ia acabar virando o homem da família, só não esperava que a família fosse ficar tão pequena.sentia que devia consolar a lena, ela era só uma criança. passar por mudanças tão grandes, o tempo todo, devia afetar sua cabeça de alguma forma. mas eu não sabia o que dizer numa ocasião como essa. no início, ela chorou muito. foi chocante encontrar a lena gritando do l
olho por olho, dente por dente. uma máxima antiga que tinha passado de geração pra geração sem que a gente soubesse de onde veio. era a história da minha vida.as luzes da casa estavam apagadas, mas eu não poderia acendê-las nem se quisesse. eu mal tinha voltado do posto de saúde, onde tinha ficado desde o dia em que fui pego pela milícia. ainda sentia o efeito das drogas. estava dormente.eu já deveria saber que nas províncias ninguém estava livre do passado. na minha juventude, anos atrás, eu tinha cometido um erro, e minha invalidez servia não só pra me impedir de repeti-lo, mas pra me deixar marcado. uma reputação ruim podia perseguir um homem à ruína. ninguém tinha investigado nada. uma vez criminoso, criminoso até a morte.agora eu chorava num canto da sala. já não podia limpar o rosto. estav
O momento era quase lúdico. Deitado no colchão quente, eu me sentia confortável. As cobertas eram de tecido leve como pluma. Eu não tinha nenhuma pressa de acordar ou dificuldade de acreditar que eu houvesse mesmo ido me deitar na noite passada.Por fim, abri os olhos e encarei o teto. Alguma coisa estava errada, absurdamente errada. Eu estava consciente, mas ainda preso num sonho.Então empurrei as cobertas, de modo tão repentino que surpreendi a mim mesmo. Eu estava num quarto decorado e mobiliado; havia adesivos colados nos móveis e pôsteres nas paredes. Não era nada parecido com as quinas circulares e corredores brancos cromados.Caminhei até o banheiro e, com a tranquilidade de quem não tinha preocupação nenhuma, escovei os dentes. Ainda estava um tanto grogue, as palmas das minhas mãos estavam insensíveis como se não fossem realmente minhas.<
Sentei-me à mesa pouco antes que a garota servisse meu prato. Todos ficaram em silêncio. Meu coração batia forte, e eu sentia espasmos em diferentes pontos do corpo, como se uma parte de mim lutasse para quebrar a maldição que me aprisionava.Nada parecia real. A maneira perfeita como o café da manhã se dispunha sobre a mesa, os azulejos brancos e limpos, as superfícies imaculadas dos móveis de madeira. Até a forma como permanecíamos parados era pouco natural.Era possível ouvir o cantar de pássaros lá fora. A luz do sol cruzava as janelas de cortinas abertas. O perfume de café fresco se misturava ao cheiro de plástico novo.Observei meus braços, implorando em pensamento que eles se movessem, mas continuavam parados como se desdenhassem de mim.Alguns anos atrás, na praça central da província, durante um evento
Imóvel na sala de estar, eu não poderia me sentir mais curioso e desorientado. Não me esqueceria tão cedo daquele codinome — possivelmente nunca, caso passasse o resto da minha vida nessa cidade. "B" era a única informação que eu tinha sobre a pessoa que me colocara no jogo, que controlava meus movimentos todo dia e tomava decisões por mim. De fato, eu me perguntara algumas vezes se descobriria quem ele era. Tudo o que eu sabia, até então, era que ele não gostava de mostrar o rosto e que era um habitante do Núcleo.Ouvi um barulho metálico de estática. Apertei os olhos, esperando passar.— Olá? Ainda está me escutando? — perguntou ele.— Onde está você?— No meu computador...— Você não está aqui?— Claro que não! — disse, como se aquela fosse u
Se algo eu havia aprendido com meus serviços de madeireiro era que a destruição podia ser boa. Ninguém esperava que uma árvore se tornasse um guarda-roupa por conta própria. É claro que se um tronco pudesse falar, pediria que não o derrubassem. Mas, de uma maneira geral, o ciclo de devastar para depois construir era natural e — por que não —, de certa forma, romântico. Talvez essa fosse a ideia que, em primeiro lugar, havia me inspirado a aprender mecânica e marcenaria: a noção de que uma barra de ferro nunca era simplesmente um pedaço de metal, mas matéria prima cheia de potencial.Eu me lembrava do dia em que Lena se desfizera de sua cadeira de jantar favorita; minha irmã a recebera de Plinio aos cinco anos de idade, um assento feito de pinho, pintado de cor-de-rosa e marrom, decorado com algumas figurinhas adesivas. Por anos, Lena se recusara a comer se