No caminho de volta, o automóvel sacolejava mais do que na ida, agora que não carregávamos troncos na traseira. Pude ver o Núcleo mais uma vez enquanto o panorama diminuía gradativamente no retrovisor. O vento sacudia a copa das árvores no acostamento. O ar parecia rarefeito aqui do alto, fazendo-me sentir mais relaxado.
Plinio me ofereceu um adiantamento para que eu pudesse comprar uma roupa bacana para a festa. Apesar de aceitar o dinheiro, eu não prometeria comparecer amanhã.
— Se eu fosse mais jovem, vestiria algo muito bacana — dizia Plinio. — Todos me notariam. Todos olhariam para mim.
Franzi o cenho.
— Você tem quase a minha idade.
Plinio estava nos vinte e poucos, apesar de parecer um tanto mais velho e ter a saúde muito fraca para alguém tão jovem. Ele ficou ligeiramente sem jeito.
— É. Bem... é verdade — concordou. — Mas, sabe, eu não sou como tu.
Em outros casos, eu rebateria sua afirmação vaga com uma pergunta, mas não era difícil entender o que ele estava querendo dizer. Ninguém gostaria de ter por perto um exibicionista tão gordo quanto ele era, com aqueles cabelos e bigode crespos. Plinio realmente não era nada bonito, e boa aparência era a maior virtude que alguém podia ter na Colmeia.
Preferi ficar calado durante o resto da viagem. Plinio agora parecia arrependido por ter iniciado o assunto, do mesmo modo envergonhado por ter admitido que era simplesmente feio demais para aproveitar as festividades como os demais jovens faziam.
A noite chegou fria mais uma vez. Mais tarde, eu tinha a lareira toda para mim. Farid tinha saído para buscar Lena no seu último dia de colégio, enquanto meu pai aproveitava um cochilo bêbado no sofá.
Espicho saltou de algum canto da sala escura para perto do fogo, farejando o tapete e esperando encontrar algo interessante. Devia estar com fome, agora que não havia sobrado nada de sua cenoura. Lebres eram bichos fascinantes, representavam o patamar mais baixo da cadeia alimentar. Eu sempre dizia que criaturas como Espicho eram apenas a refeição mais barata de qualquer outro animal do mundo, e então Lena virava a cara, argumentando que aquela lebre específica era bem mais do que "ração de gente". E era mesmo; era esquisita e tinha cor de vômito de gato.
Agora eu relembrava como tinha sido angustioso esperar pelo resultado do meu teste vocacional anos atrás. Lena vinha passando por ele e talvez precisasse de um pouco mais de apoio do que vinha recebendo do pai e dos irmãos. Era o momento em que seu futuro seria decidido, conquanto ela fosse jovem demais para saber o que seria melhor para si.
Eu costumava querer trabalhar no antiquário, imaginando como seria maravilhoso abrir aquelas máquinas velhas, remexer suas entranhas e fechá-las novamente, tornando-as úteis. Era inspiradora a ideia de que tudo o que existia precisava de ordem — uma engrenagem ao lado da outra — para funcionar. Cada peça em seu devido lugar: energia, movimento e calor. Assim era a anatomia humana, e a anatomia das lebres; a estrutura das casas onde morávamos; a elaboração dos livros que eu escondia nas árvores; as próprias árvores em si. Tudo funcionava de um jeito próprio. Havia um mecanismo lógico e ao mesmo tempo natural que operava cada sistema, fosse ele orgânico ou não. Trabalhar no antiquário seria muito melhor que derrubar árvores — e plantá-las e esperar que crescessem, para então derrubá-las de novo.
Mas precisávamos continuar cortando madeira até que a madeireira fosse nossa. Isso aumentaria nossa renda, e as coisas finalmente seriam mais fáceis: a semana inteira seria o dia da cenoura para Lena, meu pai se afundaria ainda mais nas suas garrafas, e eu poderia tirar algumas horas diárias para ler sem culpa. Foi por isso que, aos doze anos, eu manipulara os avaliadores de modo que parecesse talentoso o suficiente para atuar nesse ramo. Meu pai tinha ficado orgulhoso de mim, e por algum tempo nossa vida havia sido abastada, até que Farid perdera o braço, minha mãe descobrira aquela maldita doença, e, então, meu pai fora afastado do serviço devido ao vício.
Com Lena trabalhando na madeireira, quando a gordura finalmente terminasse de entupir as artérias do coração fraco de Plinio, viríamos a receber a maior parte do lucro da empresa, e aí as noites de sexta seriam mais confortáveis do que aquecer-se à lareira. No momento, só podíamos esperar que o dia da Grande Emersão passasse e um novo ano começasse.
Farid abriu a porta da frente. Meu pai se levantou, ainda segurando a boca da garrafa. Lena entrou com movimentos rígidos, vestia um casaco velho de Farid que era maior que seu corpo, seus cabelos escuros e cacheados estavam presos para trás.
Abracei meus joelhos, sentado no chão, esperando que a garota se manifestasse, mas Lena, de mochila nas costas, apenas caminhou em direção ao quarto. Meu pai gritou seu nome, fazendo-a parar imediatamente.
— Trate de falar com teu pai! — ordenou ele.
Lena respirou fundo.
— Boa noite, pai — disse ela, mas não voltou a se mover.
Meu pai gemeu ao se levantar do sofá e pousar a garrafa sobre a mesa da sala. Ele parecia um tanto mais sóbrio agora.
— Vamos, me dê o certificado.
Lena se virou ao pai, mas não tirou os olhos do chão. Farid resmungou alguma coisa e se apoiou na parede atrás de si, como se esperasse que algo ruim acontecesse. Levantei-me num pulo, estudando a expressão apática no rosto da minha irmã.
Quando meu pai já abria a boca para repetir a ordem, Lena soltou uma das alças da mochila em seu ombro e abriu o fecho, tirando de dentro uma folha de papel. Não foi preciso entregá-la ao pai, pois ele a tomou de sua mão.
— A-acho que erraram alguma coisa... — gaguejou ela, tentando se explicar. — Acho que eles...
Meu pai a interrompeu, suspendendo a palma aberta no ar enquanto seus olhos percorriam o conteúdo do certificado. Então seu semblante mudou, demonstrando fúria; não era qualquer frustração, mas uma revolta tão peculiar que apenas nós, como filhos, sabíamos identificar.
— Que que é isto? — Sua voz saiu gutural, para dentro, antes de se elevar num crescendo ameaçador. — Que porra é esta?!
Aproximei-me rapidamente, imaginando que uma intervenção logo seria necessária, mas Farid me lançou um olhar de aviso.
— Eu disse que meu irmão trabalhava com madeira — murmurejou ela, suas palavras quase inaudíveis. — Disse também que era o que você fazia, mas...
— Não interessa o que você disse! — berrou ele. Lena estremeceu. — O que interessa está aqui, nesta merda de papel!
Ele se aproximou de Lena, balançando o documento diante dela. Ela se contraía cada vez mais, tentando instintivamente se afastar do pai. Eu não gostava de vê-la daquele jeito.
Estava claro. O teste vocacional tinha designado Lena para trabalhar em qualquer função senão na madeireira. Eu conhecia meu pai o suficiente para saber que ele não admitiria isso.
— Pai, não é para tanto — falei.
— Cale a boca, Simas!
— Podemos conversar com calma?
Ele finalmente se virou para mim, sua expressão era assustadora.
— Mandei calar a porra da boca!
Mesmo que fosse um pouco mais baixo que Farid, meu pai ainda era robusto da época em que realizava trabalho braçal, e eu sabia por experiência própria que um de seus bofetões podia deixar marca.
— Vou ganhar dinheiro, papai, você vai ver! — insistia Lena, tentando minimizar o problema. — Vou ajudar em casa assim como o Simas faz.
— Trabalhando num restaurante? Você sabe quanto recebe uma garçonete? — Ele apontou para o papel. — Tantas vezes falei: o que dá retorno é a madeireira! Teu avô e teu pai trabalharam lá a vida toda. Sabe quanto aquilo rende por mês?
Nesse momento, Lena estava com o rosto espremido, pronta para se debulhar em lágrimas. Meu pai fechou o punho, amassando o certificado.
— Responda ao teu pai! — exigiu ele. — Sabe quanto aquilo rende?
Intervi mais uma vez:
— Meu salário não é muito maior do que o de qualquer um que trabalha em comércio no Centro.
— Isso porque ainda não temos direito à firma! — retorquiu meu pai.
— Talvez eu não vá ser garçonete. Talvez eu vá cozinhar, como a mamãe me ensinou — especulou Lena, sua voz tão embargada que era difícil entender o que dizia.
— Teu pai não teve filho para ficar servindo ninguém! — Avançou na direção da minha irmã. — É isso que você quer ser? Serva dos outros?
Finalmente me coloquei entre meu pai e Lena. O homem me segurou pelo braço, tentando me tirar da frente, mas eu sabia que ele estava próximo do limite e que acabaria machucando Lena caso ninguém se opusesse.
Agora todo mundo berrava. Meu pai ameaçava dar uma coça na Lena; ela implorava que não, agarrada às minhas costas; Farid mandava que eu não me metesse.
— Eu vou herdar a madeireira, então Lena é livre para fazer o que quiser! — argumentei.
— Veja o que aconteceu com seu irmão! — rugiu meu pai. — Se alguma coisa acontecer com você, quem vai sustentar esta família?
— O que houve com Farid foi consequência das escolhas que ele mesmo fez.
Farid havia tido problemas com a lei. As políticas na província eram severas, e ninguém gostava de ladrões. Após assaltar uma loja no Centro, ele recebera sua punição.
— Os olheiros vão me escolher — asseverou Lena. — Eles vão me escolher. Vão me levar embora e você nunca mais vai precisar se incomodar comigo.
— Isso seria bom, seria menos um desperdício nesta casa. Mas eles nunca escolheriam você. É feia, uma mal-apanhada. Ninguém iria querer você!
— Já chega! — Empurrei meu pai pelo peito.
Lena disparou para o quarto, soluçante. Meu pai ordenou que ela retornasse, sua carranca se tornando cada vez mais enrugada ao perceber que a garota não o obedeceria. Corri rapidamente atrás de Lena e tranquei a porta do quarto por dentro antes que meu pai viesse.
Minha irmã se encolheu num canto da parede, em prantos e abraçada com Espicho. Meu pai começou a esmurrar a porta, ameaçando derrubá-la.
Sentei-me ao lado de Lena e envolvi seu corpo trêmulo. As batidas insistentes eram ensurdecedoras; os gritos, de pura ira.
— Eu tentei, Simas. Juro — engasgava Lena. — Queria ser como você. Pedi que me deixassem ser como você. Eu juro!
Tentei acalmá-la. Os socos se tornavam cada vez mais fortes contra a porta. Espicho pulou do colo de Lena e saltitou, assustado, para debaixo de uma das camas. Ela envolveu meus braços com suas mãos, como se dependesse do meu apoio para sustentar o próprio peso. Seu rosto estava úmido e meio grudento das lágrimas.
Passamos muito tempo ali. Os soluços foram diminuindo até cessar, porém Lena ainda tremia quando meu pai finalmente desistiu de tentar entrar a qualquer custo. O calor do abraço era reconfortante, e os cabelos da minha irmã faziam cócegas no meu rosto. Farid anunciou que dormiria fora essa noite, e aí a porta da frente bateu com força. Após algumas horas, ouvi o som de algo se quebrando em algum cômodo da casa, e depois foi só silêncio.
Eu também sentia vontade de chorar. Queria que minha mãe ainda estivesse conosco, afinal ela sempre soubera o que fazer. Mas agora éramos apenas nós dois, e eu precisava agir como o irmão mais velho. Gostaria de poder garantir a Lena que tudo se resolveria; em vez disso, apenas a amparei num balanço cadenciado para frente e para trás.
Lena era forte. Era ela quem tinha convencido a família a não matar aquela lebre feia; quando decidira aprender a cozinhar tão bem quanto a mamãe, tinha praticado na cozinha diariamente e obrigado todo mundo a comer, mesmo quando a receita dava errado. Quando colocava algo na cabeça, era teimosa e determinada. Ela estava mortificada agora, mas eu sabia que pela manhã agiria como a garota valente que sempre foi.
Notei que havia adormecido quando senti seu corpo tombando em meu colo. Gostaria que fosse possível carregá-la até sua cama sem precisar acordá-la, mas, quando me movi, ela resmungou e abriu os olhos. Ajudei Lena a despir o casaco e se deitar, aí a cobri com o edredom.
Apaguei as luzes. Também já me preparava para me deitar quando Lena chamou meu nome no escuro, com uma voz sussurrada e sonolenta.
— O papai nunca vai entender, não é?
Eu não queria recorrer a falsas esperanças, mas elas eram meu último recurso.
— Durma. Tudo ficará bem.
Ela soltou um gemido exausto como resposta.
Acomodei-me na minha cama e fechei os olhos. Ouvi a voz da minha irmã mais uma vez.
— Tudo estaria melhor se o papai fosse quem tivesse morrido — disse ela, tão contida e debilmente que podia ser só uma impressão minha.
Não respondi, porque não havia o que dizer. Fiquei calado no escuro. As últimas palavras da noite soavam como uma promessa, exatamente como quando Lena tomava uma decisão.
A noite era impenetrável. Embora eu me sentisse exausto, era como se nenhuma parte de mim estivesse disposta a descansar. A cama rangia a cada movimento inquieto, o que já parecia estar durando horas. Eu sabia que a manhã chegaria e eu precisaria estar de pé, mas por mais que tentasse desligar a consciência, um pedaço dela continuava funcionando a todo vapor.Meus olhos se adaptaram muito rapidamente à pouca luz, que entrava no quarto através da janela e que vinha de um dos postes na calçada. Eu conseguia discernir o contorno da mancha que havia no teto, bem na direção do meu olhar, e a encarava por uma eternidade.Quando mais novo, eu costumava ter pesadelos, razão pela qual, por tantas vezes, recusara-me a me deitar. Com os anos, eles foram se tornando menos frequentes. Agora minha maior dificuldade não era me manter na cama, mas essencialmente dormir. Em pensamento, os aconteci
A celebração prosseguiu. Os mesmos feirantes realizavam seus rodízios; os jovens dançavam, agindo como se nada tivesse acontecido.Eu havia perdido Lena de vista. Mergulhei no tumulto e abri caminho. Gritei seu nome e consegui encontrá-la cerca de cinco minutos depois, perto da urna de madeira.— Eu disse para não se distanciar!Ela tinha um semblante culpado.— Desculpe, a multidão me arrastou.Lancei à garota um olhar complacente. Era mesmo muito fácil se perder naquela selva de pessoas.Retornamos a um ponto menos movimentado, e eu já me preparava para comprar algo para comermos quando Lena puxou meu braço com força.— O papai está aqui!Olhei na direção em que ela apontava e pude ver o homem de jaqueta vermelha chamativa, enroscado como uma serpente numa negra alta. Semicerrei os olhos, imaginando que a
Quando eu era criança, minha mãe me levava em passeios casuais pela floresta. Eu ficava fascinado com as aves, a vegetação densa e o córrego do rio, mas o que mais chamava minha atenção era uma planta de flor púrpura que crescia livremente por algumas partes da cidade. A beladona, como a mãe a chamava, era uma erva daninha; eu não entendia como podíamos considerar ruim algo tão insuspeito. Em seu caule brotavam pequenos frutos redondos de um negro profundo, que se assemelhavam a jabuticaba, e eu tinha vontade de botá-los na boca. Minha mãe sempre me fazia prometer que jamais experimentaria a fruta: embora as bagas fossem doces e saborosas, eram muito tóxicas, um punhado delas continha substância alucinógena forte o suficiente para me matar. Por isso eu sempre admirava as beladonas de longe, receoso de me aproximar delas, ainda que fossem tão bonitas que me fiz
De volta ao quarto, eu ainda tentava assimilar o que meu pai tinha dito. Lena estava sentada na sua cama, séria.— O papai está irritado, não é? — supôs ela.Sentei-me ao seu lado.— Não sabemos o que vai acontecer com ele — respondi, com sinceridade.Lena tomou fôlego.— Mas sabemos o que vai acontecer com a gente.Ela realmente ansiava pelo pagamento que nos seria concedido pelo Núcleo, estava claro. No entanto, eu não sabia se isso se tratava de pura ambição ou se ela apenas repetia o tipo de discurso que meu pai proferia quando estava embriagado.Observei minha irmã por alguns segundos. Ela sempre parecera mais nova que as garotas de sua idade, mas algo em seu semblante a transformava numa criança bem pequena agora — talvez fosse a serenidade com que lidava com a situação.Eu ainda n&ati
agora a droga dos gritos vinham da cozinha, mas eles sempre vinham de algum lugar. às vezes era meio chato, ainda mais quando eu tentava dormir. eu era um sujeito otimista, via pelo lado positivo. quando as pessoas se detestavam tanto, não prestavam atenção em mim. se tinha alguma coisa que eu sabia bem era que tudo tinha um preço, e que paz de espírito se comprava com a desarmonia dos outros. em geral, os oligarcas (aqueles filhos da puta), homens da milícia que guardavam as ruas da província, faziam patrulhas regulares, quando não montavam cabine no complexo habitacional. assim sendo, sempre que um prédio pegava fogo ou um ladrão era pego no centro da província, as patrulhas se esqueciam da existência do complexo. por que em casa seria diferente?mas eu não desejava mal a ninguém. tipo, eu não era um cara ruim.talvez fosse mesmo melhor que a lena despejasse
Eu ainda ofegava. Sentia os pneus começarem a girar, pegando velocidade progressivamente. Logo tomaríamos distância da praça rumo à guarita. A superfície em que eu estava sentado era fria, e, embora o escuro fosse absoluto, eu conseguia sentir a presença de outras pessoas ao redor.Contorci os braços. Puxei as mãos como se fosse forte o bastante para arrebentar as algemas, mas elas continuavam atadas uma a outra atrás das minhas costas.A noção do que estava acontecendo vinha em forma de fluxos: eu estava preso no furgão. O furgão ia para o Núcleo. Mas os Margons nunca iam para o Núcleo. Eu precisava sair!Levantei-me. A movimentação do veículo me fez desequilibrar. Caí de lado e, sem poder amparar meu corpo com as mãos, bati com o braço no chão. Ouvi risadas graves.— Sossega esse facho, rap
No dia, lembro-me de estar tonto. Tropeçava, tinha ralado o cotovelo. Ardia o braço e no estômago, mas eu não ligava...Eu me despedia do passado de escassez... essa seria a última vez que colocaria uma gota de gim barato na boca. Um novo futuro...Tinha visto os desgraçados da milícia levarem meu garoto. Tinha bebido, por isso não me lembrava muito bem. Talvez eu tenha sentido um pouco de remorso... ou até culpa... mas só até pensar que era para ter sido eu no lugar dele, apunhalado pelas costas. Eu tinha até me revoltado com a ideia de que me levariam embora. Todo o meu esforço para manter a família unida, e para quê? Meu filho era um moleque que não tinha respeito por ninguém. Esse era o problema dos jovens, mal saíam da casca do ovo e já achavam que podiam liderar o bando. Então que se foda... Simas deveria honrar meu bigode. Que
Meu primeiro vislumbre toda manhã costumava ser uma mancha no teto. Eu devia ter dez anos de idade quando uma infiltração havia se espalhado pela parede do quarto, dando origem a manchas de umidade por toda parte. Durante meses, meu pai prometera cobri-las de tinta e impermeabilizar tudo, mas essa sempre se tornava "a tarefa da semana que vem", portanto meus irmãos e eu convivêramos com os borrões por mais de dois anos e meio. Para ser sincero, isso nunca foi um incômodo, achava divertido tentar identificar formas nas nódoas enegrecidas. Por vezes, sentava-me ao lado de Lena, ainda tão pequena que nem tinha pronunciado suas primeiras palavras, e apontava para a parede, estimulando-a a distinguir silhuetas. Passáramos a tratar as manchas como gravuras bem-humoradas, como se fossem estampas num papel de parede. Surpreendentemente, elas se mostraram muito úteis: vez ou outra, alguém perguntava algo como "