O ar do campo era diferente. Não tinha aquele cheiro misturado de asfalto quente e café fresco que eu conhecia tão bem na cidade. Aqui, era terra úmida, grama recém-cortada e um toque amargo de folhas secas. Cada respiração parecia pesar no meu peito, mas eu sabia que não era por causa do ar. Era a dor. Aquele tipo de dor que não dá trégua, que corrói devagar, como uma corrente de água fria que nunca para de passar.
Minha tia, Marta, me observava da varanda do sítio. Ela tinha aquele olhar compreensivo, mas não dizia muito. Nunca foi de forçar conversas, e eu agradecia por isso. Estava cansada de palavras, de conselhos, de gente dizendo que tudo ia ficar bem. Não ia. Não naquele momento.
— Você comeu alguma coisa hoje, Raila? — ela perguntou, sem me olhar diretamente.
Balancei a cabeça, negando. Meu estômago parecia um nó há semanas. Não importava o que eu tentasse engolir, nada ficava.
— Precisa se cuidar, menina. A vida não para só porque a gente quer. — a voz dela era firme, mas tinha um tom de carinho.
Respirei fundo, tentando não desabar ali mesmo.
— Eu sei, tia. Só... só preciso de tempo.
Minha tia suspirou, encostando-se na madeira velha da varanda.
— Tempo cura muita coisa, mas não faz tudo sozinho. Você precisa decidir o que vai fazer com ele.
Aquilo ficou na minha cabeça. Decidir. Como se fosse fácil. Eu tinha perdido tudo: a empresa que meus avós construíram com tanto esforço, a casa onde morava, até minha confiança em mim mesma. E por quê? Porque amei o homem errado. Porque fui burra o suficiente para acreditar em promessas que não passavam de mentiras.
O vento soprou forte, balançando as árvores e levantando um pouco de poeira no terreiro. Apertei os braços ao redor do meu corpo, como se pudesse me proteger do frio que vinha de dentro. Eu precisava reagir, mas cada movimento parecia um esforço sobre-humano.
Mais tarde, fui para o pequeno quarto que minha tia tinha preparado para mim. As paredes eram de madeira simples, decoradas com quadros de paisagens do campo. Era aconchegante, mas estranho. Não era meu lar. Meu lar tinha sido tirado de mim, arrancado de um jeito que ainda queimava cada vez que eu pensava nisso.
Sentei na cama e peguei o único objeto que trouxe comigo da antiga casa: uma foto dos meus avós. Eles estavam sorrindo, de mãos dadas, como sempre faziam. A imagem parecia zombar da minha situação. Não consegui proteger o que eles construíram. Deixei tudo escapar por entre os dedos. E eu não tinha coragem de encará-los.
Uma batida suave na porta me trouxe de volta. Era minha tia, com uma xícara de chá quente.
— Trouxe isso pra você. Ajuda a acalmar.
— Obrigada. — murmurei, pegando a xícara. O calor era reconfortante, mas não o suficiente para derreter o gelo dentro de mim.
Ela se sentou ao meu lado, em silêncio por um momento antes de falar.
— Você acha que eles estão decepcionados com você, não é?
Levantei os olhos para ela, surpresa.
— Como você sabe?
— É o que eu pensaria se estivesse no seu lugar. Mas você está errada, Raila. Seus avós te amam, independente do que você perdeu ou ganhou. Sei que em algum momento você vai ter coragem de falar com eles e vai perceber isso.
As palavras dela eram como um peso sobre meus ombros. Eu queria acreditar, mas era difícil.
— Mesmo assim, eu devia ter feito mais. Devia ter enxergado as mentiras antes que fosse tarde demais.
— Talvez. Mas agora já foi. O que importa é o que você vai fazer daqui pra frente. Você é jovem, tem força. Esse lugar pode não ser o que você imaginou para sua vida, mas é um começo.
Eu não respondi. Apenas fiquei ali, segurando a xícara de chá como se fosse uma âncora para não me perder nos meus pensamentos.
Na manhã seguinte, tia Marta me chamou para ajudar na horta. Eu nunca tinha trabalhado com aquilo, e logo descobri que não era fácil. Minhas mãos, acostumadas a teclados e documentos, ficaram ásperas em questão de horas. O sol parecia querer me castigar, mas, de alguma forma, aquela atividade física ajudava a silenciar a mente.
— Não é tão ruim, né? — ela comentou, observando enquanto eu arrancava ervas daninhas.
— Ainda estou decidindo. — tentei sorrir, mas saiu mais como uma careta.
Ela riu.
— Trabalhar com a terra tem seu jeito de curar as coisas. A gente planta, cuida, espera... e um dia, a colheita vem. É uma boa lição de paciência.
Enquanto ela falava, olhei para a terra entre meus dedos. Era estranho pensar que algo tão simples pudesse ter tanto significado. Talvez eu precisasse disso — de algo concreto, algo que dependesse de mim para crescer.
Mais tarde, quando o sol começou a se pôr, sentei no gramado em frente à casa e observei o céu mudar de cor. Era bonito, quase como uma pintura. Por um momento, esqueci da dor, do peso no meu peito. Não era felicidade, mas era algo próximo de paz.
Minha tia apareceu com dois copos de suco de laranja e se sentou ao meu lado.
— Sabe, você é bem diferente da sua mãe, e graças a Deus que você é! Devo confessar que sempre achei que seu coração pertencia a lugares como este, apesar de você nunca ter mostrado interesse.
— Não acredito que o campo seja o meu lugar, tia. — dei de ombros. — Acho que me perdi no caminho.
— Todos nós nos perdemos às vezes. O importante é lembrar que sempre podemos nos encontrar de novo.
Ficamos em silêncio depois disso, apenas observando o céu. As estrelas começaram a aparecer, uma por uma, como se estivessem tentando me dizer que ainda havia esperança, mesmo no escuro.
Eu ainda não sabia como recomeçar de fato, mas ali, naquele momento, percebi que talvez o campo não fosse apenas um refúgio. Talvez pudesse ser o lugar onde eu me reconstruísse. Afinal, como tia Marta disse, tudo na vida começa com uma semente. E eu precisava começar a plantar a minha.
O papel na minha mão parecia mais pesado que o mundo inteiro. Meus olhos percorriam cada linha daquele documento como se estivessem presos, como se não conseguissem desviar. Era um contrato... um maldito contrato que levou embora o que eu tinha de mais valioso. Perdi tudo. Algo chamou minha atenção dessa vez. Meus dedos tremiam enquanto eu olhava a assinatura. Era parecida demais com a minha, mas não era minha. O coração disparou como se tentasse fugir do peito. Não conseguia acreditar.Larguei o papel sobre a mesa e corri para a cozinha, onde minha tia lavava louça, alheia ao meu desespero. Entrei apressada, quase tropeçando em mim mesma.— Tia, olha isso! — estendi o documento para ela, que enxugou as mãos no avental e pegou o papel, franzindo a testa. — Olha essa assinatura. Parece a minha, não parece?Ela olhou com atenção, ajustando os óculos que sempre escorregavam pelo nariz.— Parece, Raila... mas você tem certeza de que não assinou isso? Às vezes, na correria, a gente faz coi
Os pneus da camionete da minha tia rangeram contra o cascalho da estradinha principal. Aquele motor roncava alto, como se quisesse anunciar minha chegada. Eu não estava exatamente planejando virar o centro das atenções, mas, ao atravessar a entrada da pequena cidade, percebi que estava prestes a acontecer exatamente isso.— Ah, lá vem confusão. — murmurei para mim mesma, segurando firme o volante.O lugar parecia saído de um filme antigo. Casas simples com fachadas coloridas, janelas decoradas com cortinas de crochê. Crianças correndo pela calçada, senhores sentados em cadeiras de balanço nas varandas. Todos pararam o que estavam fazendo assim que a camionete passou. A curiosidade deles me acertava como flechas.— Quem será essa? — ouvi uma senhora comentar, enquanto apontava na minha direção. Ao lado dela, um senhor ajeitava os óculos, como se quisesse me decifrar.Minha vontade era encolher no banco e desaparecer. Aquilo não era bem o que eu tinha em mente quando decidi dar uma volt
Acordei com o mugido da vaca soando mais alto e agudo do que o habitual. Ainda meio zonza de sono, me vesti rápido e corri para o curral. A cena me deixou aflita: Branquinha, uma das vacas da tia, estava deitada no chão, respirando com dificuldade. Tia Marta já estava lá, ajoelhada ao lado dela, com o rosto marcado pela preocupação.— Raila, ela piorou desde ontem. — disse tia Marta, a voz embargada. — Nem comeu o pouco que coloquei para ela.— A gente precisa fazer alguma coisa, tia. — respondi, tentando conter o nervosismo. — Tem certeza que ela não teve nenhuma melhora?— Nenhuma, menina. Estou achando que nós não vamos dar conta sozinhas.Olhei para Branquinha, tentando pensar em algo que pudesse ajudar. Peguei um balde de água fresca e tentei oferecer, mas ela sequer abriu os olhos. O sentimento de impotência começava a me consumir.— Talvez ela esteja desidratada, tia. Vamos tentar levantar? — sugeri, embora, no fundo, eu soubesse que não seria tão simples.Tia Marta assentiu, e
Marcio MelloCheguei ao sítio já no fim da tarde, depois de horas tentando resolver a confusão com meu carro. A estrada de terra parecia um teste de resistência, mas enfim estava ali, diante do casarão simples e cercado por um ar tão puro que me fez esquecer do cansaço por um instante. No entanto, a sensação de tranquilidade foi logo interrompida. Uma jovem que nunca vi antes ali aguardava na varanda, os braços cruzados e o olhar afiado como lâmina.— Finalmente resolveu aparecer? — disse ela, a voz carregada de ironia.Parei por um instante, ajeitando o chapéu enquanto tentava recuperar o fôlego. Não queria começar mal, mas o jeito ríspido dela me pegou de surpresa.— Tive uns contratempos na estrada. Meu carro quebrou. — expliquei, tentando soar mais calmo do que me sentia. — Vim o mais rápido que pude.Ela bufou, balançando a cabeça como se minha justificativa fosse uma desculpa esfarrapada.— A vaca tá mal desde ontem. Não sei se dá pra salvar. Mas claro, você tinha mais o que faz
Raila SalimQuando abri os olhos, o cheiro de café fresco e pão assado já dominava o ar. Minha tia Marta não dava trégua, sempre madrugando para preparar o desjejum mais farto. Antes mesmo de me levantar, ouvi sua voz firme e inconfundível atravessando a casa:— Raila! Levanta logo, menina. O café tá na mesa!Soltei um suspiro. Era sempre assim, ela mais animada do que o necessário para aquela hora. Espreguicei-me e fui até a cozinha. Lá estava ela, com o avental manchado de farinha e os cabelos presos em um coque que parecia estar à prova de tempestades. A mesa estava posta com frutas, pães, manteiga e um bolo de fubá. Ela se virou e me encarou com aquele olhar típico dela, uma mistura de carinho e determinação.— Senta logo. Comida esfriando não tem graça.Me sentei sem reclamar, afinal, Marta tinha um talento especial para fazer com que até as coisas simples parecessem um banquete. Peguei um pedaço de pão, passei manteiga e mordi enquanto ela me observava com uma expressão que eu c
A vaca ainda estava deitada no canto do curral, o olhar dela refletindo o cansaço de quem travava uma batalha silenciosa contra a dor. Eu tinha acabado de jogar um pouco de feno ao lado dela, tentando incentivá-la a comer, quando ouvi os passos de Márcio se aproximando. O som das botas dele no chão de terra ecoava no meu peito como um tambor. Eu sabia que ele viria, sempre vinha, mas isso não tornava a situação mais fácil.— Como ela está? — perguntou ele, com aquela voz firme, mas tingida de preocupação.Não levantei o rosto. Continuei ajoelhada ao lado da vaca, passando a mão pelo pelo dela, como se pudesse acalmá-la ou transferir um pouco da minha força para ela. Respondi sem olhar para ele:— Igual. Não melhorou muito desde ontem.Eu podia sentir o peso do olhar dele sobre mim, mas me recusei a retribuí-lo. Havia algo na maneira como ele me encarava, sempre tentando quebrar essa barreira invisível que eu erguera entre nós. Não era só sobre a vaca. Não podia ser.— Precisamos ajust
Marcio MelloA noite estava fria, e o vento zunia pelas frestas da janela da sala. Eu tinha acabado de me jogar no sofá, ainda com a camisa polo amarrotada do trabalho. O cheiro de desinfetante e pelos de cachorro parecia ter impregnado em mim. Meu corpo estava exausto, mas minha mente ainda repassava a cirurgia difícil que eu fizera mais cedo. A anestesia demorou mais do que o esperado para fazer efeito, e a situação do animal era delicada. Só queria um pouco de silêncio.— Você não vai sair hoje? — perguntou meu irmão mais velho, encostado na porta da sala com aquela postura relaxada que sempre me irritou. Ele era o oposto de mim. Enquanto eu me matava no trabalho, ele parecia sempre encontrar tempo para viver a vida, como ele mesmo dizia.Levantei os olhos, tentando disfarçar o incômodo. — Não. Tô cansado.Ele deu uma risadinha curta e balançou a cabeça, como se já esperasse essa resposta. Veio caminhando até o meio da sala, parando na frente da TV desligada.— Você tá sempre cans
Raila SalimEu estava encostada na cerca, observando o movimento ao redor do sítio. O som dos pássaros e o vento suave não conseguiam aliviar o incômodo que crescia dentro de mim. Marcio estava ali novamente, como sempre que minha tia Marta inventava uma desculpa para chamá-lo. Ele tinha aquele jeito calmo demais que me irritava, como se nada no mundo pudesse aborrecê-lo.— Pode me ajudar com isso aqui? — ele perguntou, apontando para algo que segurava nas mãos.Eu peguei sem sequer olhar diretamente para ele. — Você consegue fazer sozinho, não?— Claro que consigo, mas ajuda nunca é demais.Revirei os olhos, preferindo não responder. Marcio continuou com seu trabalho, concentrado, enquanto tia Marta surgiu na varanda com aquele olhar de quem estava planejando alguma coisa.— Vocês dois fazem uma ótima equipe. Deviam conversar mais, sabe? Raila, você precisa se abrir mais para as pessoas.— Já falei que não preciso de amigos, tia. Principalmente de um como ele.Marcio levantou os olh