Marcio Mello
Cheguei ao sítio já no fim da tarde, depois de horas tentando resolver a confusão com meu carro. A estrada de terra parecia um teste de resistência, mas enfim estava ali, diante do casarão simples e cercado por um ar tão puro que me fez esquecer do cansaço por um instante. No entanto, a sensação de tranquilidade foi logo interrompida. Uma jovem que nunca vi antes ali aguardava na varanda, os braços cruzados e o olhar afiado como lâmina.
— Finalmente resolveu aparecer? — disse ela, a voz carregada de ironia.
Parei por um instante, ajeitando o chapéu enquanto tentava recuperar o fôlego. Não queria começar mal, mas o jeito ríspido dela me pegou de surpresa.
— Tive uns contratempos na estrada. Meu carro quebrou. — expliquei, tentando soar mais calmo do que me sentia. — Vim o mais rápido que pude.
Ela bufou, balançando a cabeça como se minha justificativa fosse uma desculpa esfarrapada.
— A vaca tá mal desde ontem. Não sei se dá pra salvar. Mas claro, você tinha mais o que fazer, né?
Aquilo me atingiu em cheio. Não conhecia ela, porém, já tinha percebido que ela não era do tipo que deixava escapar uma chance de alfinetar. Mesmo assim, não podia revidar. Meu trabalho era ajudar, não criar conflito.
— Vamos ver como ela está. — falei, cortando o assunto e caminhando em direção ao curral.
O silêncio entre nós era quase ensurdecedor enquanto atravessávamos o terreiro. O cheiro da terra misturado ao do capim seco preenchia o ar, mas havia algo mais pesado ali: a tensão entre nós. Ela parecia avaliar cada passo meu, como se esperasse que eu tropeçasse.
Quando chegamos ao curral, a vaca estava deitada, respirando com dificuldade. Minha experiência dizia que não seria fácil, mas ainda havia esperança. Ajoelhei ao lado do animal, sentindo os olhos da moça malcriada queimando nas minhas costas.
— Ela começou assim de repente? — perguntei, sem me virar.
— Não. — respondeu seca. — Já tava meio apática uns dias atrás, minha tia disse, mas ninguém achou que era sério.
— Tá. Pode pegar água limpa pra mim? Preciso hidratar ela enquanto preparo o remédio.
— Água? Você quer que eu vire sua assistente agora?
Suspirei, levantando o olhar para ela.
— Não estou aqui pra discutir. Quero ajudar a vaca, só isso. Se puder colaborar, ótimo. Se não, vou dar um jeito sozinho.
Ela hesitou por um momento, como se minha firmeza a tivesse desarmado. Então virou nos calcanhares e foi buscar o que pedi. Aproveitei aquele instante de trégua para examinar o animal mais de perto. Estava desidratada e com sinais claros de infecção. Precisaria de soro e antibióticos, além de um pouco de sorte.
Quando ela voltou com o balde d'água, eu já estava preparando os materiais na maleta. Não agradeci na hora, apenas fiz meu trabalho. Às vezes, o silêncio dizia mais do que qualquer palavra.
— Vai dar conta? — ela perguntou, agora com um tom que soava mais preocupado do que hostil.
— Vou fazer o possível. Ela tá mal, mas não tá perdida ainda.
Enquanto trabalhava, senti o olhar dela suavizando. Talvez fosse a dedicação que eu demonstrava, ou talvez apenas o alívio de ver alguém finalmente cuidando do problema. Não sei ao certo, mas algo mudou.
— Por que demorou tanto? — perguntou depois de um tempo, a voz mais baixa.
Olhei para ela por um instante, percebendo que a rigidez inicial parecia ter se desfeito.
— Foi o carro mesmo. E também, talvez eu tenha subestimado o quanto esse lugar era longe. Não quis deixar ninguém esperando, acredite.
Ela assentiu, parecendo considerar minha resposta. Pela primeira vez, notei algo além da impaciência nos olhos dela: um traço de cansaço, talvez até preocupação.
Depois de horas entre aplicar o soro, ajustar a posição da vaca e acompanhar os primeiros sinais de melhora, finalmente senti que estava no caminho certo. A moça, por sua vez, ficou por perto o tempo todo, ora observando em silêncio, ora fazendo perguntas sobre o que eu estava fazendo.
— Você parece entender bem disso. — disse ela, quebrando o silêncio pela primeira vez em um tom quase amigável.
Sorri de leve, ainda concentrado no trabalho.
— Faz parte do que eu faço. E, pra ser honesto, gosto de cuidar dos animais.
— Dá pra perceber.
Aquela frase, embora simples, parecia um pedido de desculpas disfarçado. Não respondi, apenas continuei ali, focado na vaca que, aos poucos, começava a reagir.
Quando a noite caiu, ela trouxe uma lanterna e a colocou ao meu lado, sem dizer nada. O gesto, apesar de pequeno, me pareceu significativo.
— Obrigado. — murmurei, olhando para ela.
— De nada. — respondeu, e pela primeira vez me deu um sorriso quase imperceptível, mas que fez todo o peso do dia valer a pena.
Talvez ela tivesse razão em estar irritada comigo no início. Afinal, a vida no campo não perdoa atrasos, e a responsabilidade é enorme. Porém, naquela noite, enquanto observávamos juntos a vaca descansar finalmente de forma mais tranquila, senti que um passo importante havia sido dado.
A senhora Marta apareceu quando tudo estava estabilizado e então finalmente me apresentou de forma simpática sua sobrinha que tinha passado aquele tempo todo me ajudando e pediu desculpas por não estar no sítio antes.
— Sem problemas, sua sobrinha ajudou em tudo. — respondi.
— Raila é uma boa menina, fico feliz que foi prestativa.
— Tia, fiz tudo que pude, embora ele não merecesse pela demora. — soltou Raila me olhando com aquele olhar afiado.
Acabei gargalhando, não pensei que ela voltaria a ser hostil pro meu lado.
— Tive contratempo com o carro, senhora Marta.
— Essas coisas acontecem, rapaz, não se preocupe. E me desculpe pela minha sobrinha.
— Ela foi de grande ajuda.
Raila cruzou os braços e me olhou torto com minha resposta. Qual era a dela?
— Dr. Marcio, minha branquinha vai ficar bem? — perguntou dona Marta.
— Espero que sim. Ela está em boas mãos agora.
Minha resposta causou na sobrinha de Marta um momento de riso. Ela estava me provocando, não estava? Cerrei os olhos. Eu precisava ser profissional, portanto, contive minha língua e continuei a observar a vaca. Se Raila queria confusão, não conseguiu, pelo menos, daquela vez.
Raila SalimQuando abri os olhos, o cheiro de café fresco e pão assado já dominava o ar. Minha tia Marta não dava trégua, sempre madrugando para preparar o desjejum mais farto. Antes mesmo de me levantar, ouvi sua voz firme e inconfundível atravessando a casa:— Raila! Levanta logo, menina. O café tá na mesa!Soltei um suspiro. Era sempre assim, ela mais animada do que o necessário para aquela hora. Espreguicei-me e fui até a cozinha. Lá estava ela, com o avental manchado de farinha e os cabelos presos em um coque que parecia estar à prova de tempestades. A mesa estava posta com frutas, pães, manteiga e um bolo de fubá. Ela se virou e me encarou com aquele olhar típico dela, uma mistura de carinho e determinação.— Senta logo. Comida esfriando não tem graça.Me sentei sem reclamar, afinal, Marta tinha um talento especial para fazer com que até as coisas simples parecessem um banquete. Peguei um pedaço de pão, passei manteiga e mordi enquanto ela me observava com uma expressão que eu c
A vaca ainda estava deitada no canto do curral, o olhar dela refletindo o cansaço de quem travava uma batalha silenciosa contra a dor. Eu tinha acabado de jogar um pouco de feno ao lado dela, tentando incentivá-la a comer, quando ouvi os passos de Márcio se aproximando. O som das botas dele no chão de terra ecoava no meu peito como um tambor. Eu sabia que ele viria, sempre vinha, mas isso não tornava a situação mais fácil.— Como ela está? — perguntou ele, com aquela voz firme, mas tingida de preocupação.Não levantei o rosto. Continuei ajoelhada ao lado da vaca, passando a mão pelo pelo dela, como se pudesse acalmá-la ou transferir um pouco da minha força para ela. Respondi sem olhar para ele:— Igual. Não melhorou muito desde ontem.Eu podia sentir o peso do olhar dele sobre mim, mas me recusei a retribuí-lo. Havia algo na maneira como ele me encarava, sempre tentando quebrar essa barreira invisível que eu erguera entre nós. Não era só sobre a vaca. Não podia ser.— Precisamos ajust
Marcio MelloA noite estava fria, e o vento zunia pelas frestas da janela da sala. Eu tinha acabado de me jogar no sofá, ainda com a camisa polo amarrotada do trabalho. O cheiro de desinfetante e pelos de cachorro parecia ter impregnado em mim. Meu corpo estava exausto, mas minha mente ainda repassava a cirurgia difícil que eu fizera mais cedo. A anestesia demorou mais do que o esperado para fazer efeito, e a situação do animal era delicada. Só queria um pouco de silêncio.— Você não vai sair hoje? — perguntou meu irmão mais velho, encostado na porta da sala com aquela postura relaxada que sempre me irritou. Ele era o oposto de mim. Enquanto eu me matava no trabalho, ele parecia sempre encontrar tempo para viver a vida, como ele mesmo dizia.Levantei os olhos, tentando disfarçar o incômodo. — Não. Tô cansado.Ele deu uma risadinha curta e balançou a cabeça, como se já esperasse essa resposta. Veio caminhando até o meio da sala, parando na frente da TV desligada.— Você tá sempre cans
Raila SalimEu estava encostada na cerca, observando o movimento ao redor do sítio. O som dos pássaros e o vento suave não conseguiam aliviar o incômodo que crescia dentro de mim. Marcio estava ali novamente, como sempre que minha tia Marta inventava uma desculpa para chamá-lo. Ele tinha aquele jeito calmo demais que me irritava, como se nada no mundo pudesse aborrecê-lo.— Pode me ajudar com isso aqui? — ele perguntou, apontando para algo que segurava nas mãos.Eu peguei sem sequer olhar diretamente para ele. — Você consegue fazer sozinho, não?— Claro que consigo, mas ajuda nunca é demais.Revirei os olhos, preferindo não responder. Marcio continuou com seu trabalho, concentrado, enquanto tia Marta surgiu na varanda com aquele olhar de quem estava planejando alguma coisa.— Vocês dois fazem uma ótima equipe. Deviam conversar mais, sabe? Raila, você precisa se abrir mais para as pessoas.— Já falei que não preciso de amigos, tia. Principalmente de um como ele.Marcio levantou os olh
Marcio MelloA sala do consultório estava com o ar parado, carregado de uma mistura de desinfetante e o cheiro agridoce de animais. Na mesa de atendimento, um porco se debatia levemente, talvez desconfiado do que estava por vir. O dono, um homem de feições cansadas e um boné surrado, tagarelava sem parar. Eu, entretanto, mal conseguia acompanhar suas palavras. Minha mente estava em outro lugar.Raila. Ela era como uma sombra persistente, ocupando cada canto da minha cabeça. Hostil, cortante e, ao mesmo tempo, magnética. Eu já tinha aceitado o fato de que pensar nela era inevitável, mesmo que isso me deixasse com a sensação de estar perdendo o controle.— Doutor, o senhor acha que é grave? — a voz do homem me puxou de volta.— Pode ser só uma infecção no casco. Vou precisar examinar melhor.Peguei minhas ferramentas e me aproximei do porco, tentando focar no trabalho. Contudo, as imagens dela insistiam em invadir. Lembrei-me da última vez que nos cruzamos ao acaso. Foi no mercado, e el
Raila SalimEra um daqueles dias que o sol brilhava sem piedade, aquecendo o ar com uma intensidade quase sufocante. Minha tia Marta, sempre prática, apareceu no meu quarto logo cedo.— Vamos para a cidade hoje. Preciso repor o estoque do sítio. — anunciou, com aquele tom que não admitia recusas.Levantei-me com certa relutância, mas a perspectiva de sair da rotina do sítio me animou. Depois de um café reforçado, partimos na velha caminhonete que parecia se segurar mais pela teimosia da minha tia do que pela mecânica.No caminho, o vento quente entrava pelas janelas abertas, bagunçando meu cabelo e trazendo o cheiro doce das árvores de manga que margeavam a estrada. Minha tia dirigia com firmeza, os olhos fixos à frente, enquanto eu tentava encontrar formas curiosas nas nuvens espalhadas pelo céu.— Preciso comprar sementes, fertilizantes e algumas ferramentas novas. Você pode me ajudar a carregar as coisas. — ela disse, quebrando o silêncio.— Claro, tia. E, se sobrar um tempinho, po
Marcio MelloO sol ainda estava baixo, mas já fazia o suficiente para aquecer o curral enquanto eu cuidava da vaca outra vez. O cheiro de terra misturado ao da ração fresca preenchia o ar, e a vaca mastigava calmamente, alheia a qualquer preocupação do mundo. Eu, por outro lado, sentia uma inquietação que não sabia explicar direito. Talvez fosse a presença de Raila, sentada ali perto, observando tudo em silêncio.— Raila. — comecei, tentando soar casual enquanto ajeitava o balde. — Nunca te perguntei, mas de onde você veio? Tudo que sei de você é que é sobrinha da dona Marta e nada mais.Ela levantou o olhar, e por um instante achei que tivesse me ouvido errado. Seus olhos, sempre tão misteriosos, pareceram endurecer, como se eu tivesse tocado em algo que não devia. Mas ela logo disfarçou, ajeitando o lenço que usava na cabeça.— Ah, isso não é muito interessante, não. — a voz dela saiu baixa, quase um sussurro.— Como assim não é interessante? Todo mundo tem uma história. Aposto que
Raila Salim Eu ainda estava me sentindo desconfortável com a forma como fugi da conversa com o Marcio no dia anterior. Ele tinha me perguntado algo tão simples, mas a resposta era complexa demais para caber em palavras naquele momento. Hoje, porém, decidi que não poderia continuar me escondendo. Se ele tinha mostrado interesse em entender minha dor, eu precisava pelo menos tentar explicar.O encontrei no curral, onde ele estava examinando novamente a branquinha, a vaca que havia mostrado sinais de algum problema dias atrás e retornado recentemente. O cheiro de terra misturado ao do gado era forte, mas já fazia parte do cotidiano. Marcio estava agachado, concentrado, com a mão firme no flanco do animal. Quando me viu, levantou o olhar e abriu um sorriso discreto.— Bom dia, Raila.— Bom dia, Marcio. — minha voz saiu baixa, quase hesitante. — Podemos conversar?Ele pareceu surpreso, mas assentiu de imediato, levantando-se e limpando as mãos na calça jeans. Ele indicou um banquinho de m