Acordei com o mugido da vaca soando mais alto e agudo do que o habitual. Ainda meio zonza de sono, me vesti rápido e corri para o curral. A cena me deixou aflita: Branquinha, uma das vacas da tia, estava deitada no chão, respirando com dificuldade. Tia Marta já estava lá, ajoelhada ao lado dela, com o rosto marcado pela preocupação.
— Raila, ela piorou desde ontem. — disse tia Marta, a voz embargada. — Nem comeu o pouco que coloquei para ela.
— A gente precisa fazer alguma coisa, tia. — respondi, tentando conter o nervosismo. — Tem certeza que ela não teve nenhuma melhora?
— Nenhuma, menina. Estou achando que nós não vamos dar conta sozinhas.
Olhei para Branquinha, tentando pensar em algo que pudesse ajudar. Peguei um balde de água fresca e tentei oferecer, mas ela sequer abriu os olhos. O sentimento de impotência começava a me consumir.
— Talvez ela esteja desidratada, tia. Vamos tentar levantar? — sugeri, embora, no fundo, eu soubesse que não seria tão simples.
Tia Marta assentiu, e juntas fizemos o possível para erguer Branquinha. Com muito esforço, conseguimos que ela ficasse meio sentada, mas suas patas estavam fracas demais para sustentá-la. Foi doloroso assistir.
— Raila, isso não vai adiantar. — disse minha tia, limpando o suor da testa. — Acho que é melhor chamar o veterinário.
— Concordo. Ela precisa de ajuda profissional. — respondi, aliviada por ela ter tomado a decisão.
Tia Marta levantou, sacudindo a poeira da saia, e caminhou em direção à casa. Acompanhei-a, tentando segurar a ansiedade que me invadia. Enquanto ela procurava o número do veterinário no caderninho de anotações, sentei-me à mesa e comecei a tamborilar os dedos na madeira.
— Achei o número. — disse ela, com um tom de esperança. Digitou rápido no telefone e aguardou, com os olhos fixos em mim. Depois de alguns segundos, sorriu aliviada. — Ele atendeu. Disse que vai vir ainda hoje.
— Graças a Deus, tia. Agora branquinha vai ter o que precisa.
Voltamos ao curral para cuidar dela enquanto o veterinário não chegava. Resolvi limpar o espaço em volta, ajeitar o feno e manter água por perto. Tudo para deixá-la mais confortável. Era difícil vê-la tão vulnerável. Apesar disso, com a esperança renovada, sentia que estávamos no caminho certo para salvá-la.
Quando o tempo passou e a tensão parecia se acumular novamente, percebi que tia Marta estava mais quieta do que o costume. Quando olhei para ela, notei seus olhos cheios de lágrimas, uma das mãos apertando o lenço que trazia no bolso.
— Tia, não fica assim. — disse, aproximando-me e colocando uma mão em seu ombro. — O veterinário vai ajudar. Branquinha é forte, ela vai sair dessa.
Ela fungou, tentando conter o choro, mas as lágrimas escorriam livremente.
— Eu sei, menina, mas me parte o coração vê-la assim. A gente cuida delas com tanto amor... é como se fossem da família.
— E ela é, tia. Por isso mesmo, não vamos desistir. Vamos fazer tudo o que for preciso para ela melhorar.
Tia Marta me abraçou, ainda soluçando, e fiquei ali segurando-a, tentando passar uma força que eu mesma buscava dentro de mim. Branquinha mugiu baixinho, como se tentasse participar daquele momento, e isso pareceu trazer um pouco de calma para minha tia.
— Obrigada, Raila. Você tem sido um anjo aqui comigo.
— Estamos juntas, tia. Sempre.
Com isso, voltamos a cuidar do espaço em silêncio, esperando que a chegada do veterinário trouxesse as respostas e o alívio que tanto precisávamos.
Depois de um tempo, enquanto limpávamos os cantos do curral, resolvi puxar assunto para aliviar um pouco o clima.
— Tia, deve ser lindo aqui no inverno, né? — comentei, olhando para o horizonte. — Imagino como o campo deve ficar todo coberto de geada, com aquele ar fresquinho.
Tia Marta suspirou, parecendo se perder em memórias.
— É mesmo uma beleza, menina. O friozinho da manhã, a névoa subindo devagarinho... Parece até que o tempo para.
— Deve ser mágico ver o sol nascendo, iluminando tudo branquinho. — continuei, tentando imaginar. — Deve dar uma paz...
— E dá, Raila. Dá vontade de ficar só olhando, esquecendo dos problemas. A terra parece até mais fértil no inverno, sabia? O cheiro da terra úmida é diferente, é forte, mas bom.
— Acho que é por isso que gosto tanto daqui. Tem uma beleza que a gente não encontra na cidade.
Tia Marta sorriu, voltando ao trabalho. Nossa conversa trouxe um momento de leveza, enquanto esperávamos pelo veterinário, confiando que Branquinha teria a ajuda que tanto precisava.
Comecei ficar irritada pela demora do tal veterinário.
— Tia tem certeza que esse veterinário vem? Ele ta demorando muito!
— Ele vem, sim, ele é um bom rapaz, deve ter acontecido algum contratempo. — comentou ela.
Entortei a boca ainda impaciente.
— A senhora tem um bom coração.
Ela realmente tinha um bom coração, eu no lugar dela teria telefonado para ele e falado um monte. A vaquinha precisava de atendimento com urgência e esse talzinho estava demorando muito e isso era tão frustrante.
— Estou percebendo que você do nada mudou a expressão. Não se preocupe, querida. — disse ela, tocando minha mão.
— Difícil não me preocupar tia. Olha o jeito que a Branquinha estar.
Esse veterinário tinha sorte porque precisávamos dele porque caso contrario ele sairia do sítio da minha tia assim que colocasse os pes.
— Eu sei que vê-la assim não nos faz bem. Raila, as coisas aqui são difíceis, não é como na cidade grande.
— Não devia defender esse veterinário tia só por ser uma cidade do interior não significa que ele tem que demorar assim, a senhora vai pagar ele, não é de graça, isso é falta de profissionalismo!
— Raila, temos sorte de ter esse veterinário, ele é um bom rapaz, se formou e ficou na cidade e cuida de todos os animais daqui. Ele é apenas um homem e não dois, querida. Muitos animais ficam doentes por aqui e é apenas ele para cuidar...
— Não adianta tia falar nada, não vou mudar minha opinião.
— Teimosa em menina.
— Sim, sou!
O cara era um enrolado e talvez nem fosse tão bom veterinário assim...
Marcio MelloCheguei ao sítio já no fim da tarde, depois de horas tentando resolver a confusão com meu carro. A estrada de terra parecia um teste de resistência, mas enfim estava ali, diante do casarão simples e cercado por um ar tão puro que me fez esquecer do cansaço por um instante. No entanto, a sensação de tranquilidade foi logo interrompida. Uma jovem que nunca vi antes ali aguardava na varanda, os braços cruzados e o olhar afiado como lâmina.— Finalmente resolveu aparecer? — disse ela, a voz carregada de ironia.Parei por um instante, ajeitando o chapéu enquanto tentava recuperar o fôlego. Não queria começar mal, mas o jeito ríspido dela me pegou de surpresa.— Tive uns contratempos na estrada. Meu carro quebrou. — expliquei, tentando soar mais calmo do que me sentia. — Vim o mais rápido que pude.Ela bufou, balançando a cabeça como se minha justificativa fosse uma desculpa esfarrapada.— A vaca tá mal desde ontem. Não sei se dá pra salvar. Mas claro, você tinha mais o que faz
Raila SalimQuando abri os olhos, o cheiro de café fresco e pão assado já dominava o ar. Minha tia Marta não dava trégua, sempre madrugando para preparar o desjejum mais farto. Antes mesmo de me levantar, ouvi sua voz firme e inconfundível atravessando a casa:— Raila! Levanta logo, menina. O café tá na mesa!Soltei um suspiro. Era sempre assim, ela mais animada do que o necessário para aquela hora. Espreguicei-me e fui até a cozinha. Lá estava ela, com o avental manchado de farinha e os cabelos presos em um coque que parecia estar à prova de tempestades. A mesa estava posta com frutas, pães, manteiga e um bolo de fubá. Ela se virou e me encarou com aquele olhar típico dela, uma mistura de carinho e determinação.— Senta logo. Comida esfriando não tem graça.Me sentei sem reclamar, afinal, Marta tinha um talento especial para fazer com que até as coisas simples parecessem um banquete. Peguei um pedaço de pão, passei manteiga e mordi enquanto ela me observava com uma expressão que eu c
A vaca ainda estava deitada no canto do curral, o olhar dela refletindo o cansaço de quem travava uma batalha silenciosa contra a dor. Eu tinha acabado de jogar um pouco de feno ao lado dela, tentando incentivá-la a comer, quando ouvi os passos de Márcio se aproximando. O som das botas dele no chão de terra ecoava no meu peito como um tambor. Eu sabia que ele viria, sempre vinha, mas isso não tornava a situação mais fácil.— Como ela está? — perguntou ele, com aquela voz firme, mas tingida de preocupação.Não levantei o rosto. Continuei ajoelhada ao lado da vaca, passando a mão pelo pelo dela, como se pudesse acalmá-la ou transferir um pouco da minha força para ela. Respondi sem olhar para ele:— Igual. Não melhorou muito desde ontem.Eu podia sentir o peso do olhar dele sobre mim, mas me recusei a retribuí-lo. Havia algo na maneira como ele me encarava, sempre tentando quebrar essa barreira invisível que eu erguera entre nós. Não era só sobre a vaca. Não podia ser.— Precisamos ajust
Marcio MelloA noite estava fria, e o vento zunia pelas frestas da janela da sala. Eu tinha acabado de me jogar no sofá, ainda com a camisa polo amarrotada do trabalho. O cheiro de desinfetante e pelos de cachorro parecia ter impregnado em mim. Meu corpo estava exausto, mas minha mente ainda repassava a cirurgia difícil que eu fizera mais cedo. A anestesia demorou mais do que o esperado para fazer efeito, e a situação do animal era delicada. Só queria um pouco de silêncio.— Você não vai sair hoje? — perguntou meu irmão mais velho, encostado na porta da sala com aquela postura relaxada que sempre me irritou. Ele era o oposto de mim. Enquanto eu me matava no trabalho, ele parecia sempre encontrar tempo para viver a vida, como ele mesmo dizia.Levantei os olhos, tentando disfarçar o incômodo. — Não. Tô cansado.Ele deu uma risadinha curta e balançou a cabeça, como se já esperasse essa resposta. Veio caminhando até o meio da sala, parando na frente da TV desligada.— Você tá sempre cans
Raila SalimEu estava encostada na cerca, observando o movimento ao redor do sítio. O som dos pássaros e o vento suave não conseguiam aliviar o incômodo que crescia dentro de mim. Marcio estava ali novamente, como sempre que minha tia Marta inventava uma desculpa para chamá-lo. Ele tinha aquele jeito calmo demais que me irritava, como se nada no mundo pudesse aborrecê-lo.— Pode me ajudar com isso aqui? — ele perguntou, apontando para algo que segurava nas mãos.Eu peguei sem sequer olhar diretamente para ele. — Você consegue fazer sozinho, não?— Claro que consigo, mas ajuda nunca é demais.Revirei os olhos, preferindo não responder. Marcio continuou com seu trabalho, concentrado, enquanto tia Marta surgiu na varanda com aquele olhar de quem estava planejando alguma coisa.— Vocês dois fazem uma ótima equipe. Deviam conversar mais, sabe? Raila, você precisa se abrir mais para as pessoas.— Já falei que não preciso de amigos, tia. Principalmente de um como ele.Marcio levantou os olh
Marcio MelloA sala do consultório estava com o ar parado, carregado de uma mistura de desinfetante e o cheiro agridoce de animais. Na mesa de atendimento, um porco se debatia levemente, talvez desconfiado do que estava por vir. O dono, um homem de feições cansadas e um boné surrado, tagarelava sem parar. Eu, entretanto, mal conseguia acompanhar suas palavras. Minha mente estava em outro lugar.Raila. Ela era como uma sombra persistente, ocupando cada canto da minha cabeça. Hostil, cortante e, ao mesmo tempo, magnética. Eu já tinha aceitado o fato de que pensar nela era inevitável, mesmo que isso me deixasse com a sensação de estar perdendo o controle.— Doutor, o senhor acha que é grave? — a voz do homem me puxou de volta.— Pode ser só uma infecção no casco. Vou precisar examinar melhor.Peguei minhas ferramentas e me aproximei do porco, tentando focar no trabalho. Contudo, as imagens dela insistiam em invadir. Lembrei-me da última vez que nos cruzamos ao acaso. Foi no mercado, e el
Raila SalimEra um daqueles dias que o sol brilhava sem piedade, aquecendo o ar com uma intensidade quase sufocante. Minha tia Marta, sempre prática, apareceu no meu quarto logo cedo.— Vamos para a cidade hoje. Preciso repor o estoque do sítio. — anunciou, com aquele tom que não admitia recusas.Levantei-me com certa relutância, mas a perspectiva de sair da rotina do sítio me animou. Depois de um café reforçado, partimos na velha caminhonete que parecia se segurar mais pela teimosia da minha tia do que pela mecânica.No caminho, o vento quente entrava pelas janelas abertas, bagunçando meu cabelo e trazendo o cheiro doce das árvores de manga que margeavam a estrada. Minha tia dirigia com firmeza, os olhos fixos à frente, enquanto eu tentava encontrar formas curiosas nas nuvens espalhadas pelo céu.— Preciso comprar sementes, fertilizantes e algumas ferramentas novas. Você pode me ajudar a carregar as coisas. — ela disse, quebrando o silêncio.— Claro, tia. E, se sobrar um tempinho, po
Marcio MelloO sol ainda estava baixo, mas já fazia o suficiente para aquecer o curral enquanto eu cuidava da vaca outra vez. O cheiro de terra misturado ao da ração fresca preenchia o ar, e a vaca mastigava calmamente, alheia a qualquer preocupação do mundo. Eu, por outro lado, sentia uma inquietação que não sabia explicar direito. Talvez fosse a presença de Raila, sentada ali perto, observando tudo em silêncio.— Raila. — comecei, tentando soar casual enquanto ajeitava o balde. — Nunca te perguntei, mas de onde você veio? Tudo que sei de você é que é sobrinha da dona Marta e nada mais.Ela levantou o olhar, e por um instante achei que tivesse me ouvido errado. Seus olhos, sempre tão misteriosos, pareceram endurecer, como se eu tivesse tocado em algo que não devia. Mas ela logo disfarçou, ajeitando o lenço que usava na cabeça.— Ah, isso não é muito interessante, não. — a voz dela saiu baixa, quase um sussurro.— Como assim não é interessante? Todo mundo tem uma história. Aposto que