Os pneus da camionete da minha tia rangeram contra o cascalho da estradinha principal. Aquele motor roncava alto, como se quisesse anunciar minha chegada. Eu não estava exatamente planejando virar o centro das atenções, mas, ao atravessar a entrada da pequena cidade, percebi que estava prestes a acontecer exatamente isso.
— Ah, lá vem confusão. — murmurei para mim mesma, segurando firme o volante.
O lugar parecia saído de um filme antigo. Casas simples com fachadas coloridas, janelas decoradas com cortinas de crochê. Crianças correndo pela calçada, senhores sentados em cadeiras de balanço nas varandas. Todos pararam o que estavam fazendo assim que a camionete passou. A curiosidade deles me acertava como flechas.
— Quem será essa? — ouvi uma senhora comentar, enquanto apontava na minha direção. Ao lado dela, um senhor ajeitava os óculos, como se quisesse me decifrar.
Minha vontade era encolher no banco e desaparecer. Aquilo não era bem o que eu tinha em mente quando decidi dar uma volta para espairecer. Sentia os olhos deles queimando minha pele, cada olhar mais inquisitivo do que o anterior.
— Não é todo dia que aparece gente de fora aqui. — disse um homem que estava encostado no poste da pracinha.
Passei pelo mercadinho local, e o grupo de mulheres que conversava na porta parou no meio da conversa. Uma delas até largou a sacola de compras no chão, tamanho o espanto.
— Olha só isso. — exclamou uma das mulheres. — Quem ela pensa que é para dirigir uma camionete dessas?
Engoli em seco. As mãos escorregaram levemente no volante por conta do suor. Eu não sabia se devia continuar ou dar meia-volta. Porém, recuar agora seria como confirmar as suposições que eles faziam sobre mim.
— Respira, Raila. Eles não podem fazer nada além de olhar. — falei em voz baixa, tentando me convencer.
Ao passar pela igreja, avistei um grupo de jovens sentados na escadaria. Eles cochicharam entre si assim que me viram. Um deles apontou diretamente para a camionete.
— Olha essa caminhonete! Aposto que é de algum fazendeiro importante. Mas quem é ela?
O peso do julgamento era quase físico. Eu me senti como uma estranha em um palco improvisado, sem ensaio, sem aviso prévio. Estacionei perto da praça, tentando aparentar calma, mas por dentro meu coração estava a mil.
Desci do carro, e o silêncio foi quase ensurdecedor. Todos os olhares convergiram para mim. Caminhei até uma barraquinha de sucos, onde uma mulher de meia-idade me recebeu com um sorriso que parecia forçado.
— Você deve ser nova por aqui. Não me lembro de já ter visto você. — comentou ela, enquanto limpava o balcão com um pano.
— Estou visitando minha tia. A camionete é dela. — respondi, tentando soar casual. Meu tom de voz saiu mais baixo do que eu esperava.
— Ah, entendi. Bem, bem-vinda à nossa cidade. É... tranquila, sabe?
— Estou percebendo. — retruquei, com um sorriso sem graça. Peguei o copo de suco e me virei para a pracinha.
Não importava para onde eu olhasse, as pessoas continuavam a me encarar. Sussurros se espalhavam pelo ar como folhas ao vento. Uma mistura de curiosidade e desconfiança parecia pairar sobre eles. Era como se eu carregasse algo extraordinário, quando, na verdade, só queria ser invisível naquele momento.
— Você viu os brincos dela? — ouvi uma voz feminina comentar. — E aquele cabelo? Muito diferente das moças daqui.
— Diferente demais, eu diria. — respondeu outra.
Voltei para a camionete, decidida a sair dali o mais rápido possível. Assim que liguei o motor, uma criança se aproximou, apontando para o veículo com os olhos brilhando.
— Moça, sua camionete é igual a dos filmes! — disse ele, com um sorriso inocente.
Eu sorri de volta, sentindo um pouco do peso se dissipar.
— Obrigada. Cuide bem de sua cidade, é um lugar especial. — respondi, antes de acelerar e seguir em frente.
Enquanto deixava a cidadezinha para trás, sentia uma mistura de alívio e reflexão. Aquela experiência havia me mostrado o quanto ser diferente pode atrair olhares e julgamentos, mas também que a curiosidade das pessoas, em sua essência, não era maldosa. Talvez fosse apenas o jeito delas de entender algo novo, algo que fugia do habitual.
— Quem sabe um dia eu volte, mas da próxima vez, talvez a camionete fique em casa. — falei para mim mesma, enquanto os campos abertos do interior voltavam a se estender diante dos meus olhos.
Cheguei ao sítio da minha tia já no fim da tarde. O sol começava a se esconder atrás das colinas, pintando o céu de laranja e rosa. Estacionei a camionete perto da varanda e desci, sentindo o cheiro fresco da terra misturado ao de flores do jardim. Minha tia apareceu na porta, enxugando as mãos no avental, com um sorriso no rosto.
— Como foi o passeio na cidade, Raila? — perguntou ela, descendo os degraus com passos tranquilos.
— Intenso. Acho que virei a atração principal do dia. — respondi, soltando uma risada nervosa.
Ela arqueou as sobrancelhas, curiosa.
— O que aconteceu?
— Todo mundo ficou me encarando como se eu tivesse chegado de outro planeta. Acho que a camionete chamou muita atenção. — expliquei, cruzando os braços. — Algumas pessoas foram até simpáticas, mas dava para sentir o peso da curiosidade e dos comentários.
Minha tia suspirou, balançando a cabeça.
— Esse lugar é assim mesmo. Eles não estão acostumados com novidades. Mas não se preocupe, com o tempo eles vão se acostumar.
— Espero que sim. Só queria dar uma volta tranquila, mas parecia que eu estava em um desfile — brinquei, embora ainda sentisse um pouco do desconforto.
— Bom, agora você já sabe como são as coisas por aqui. Da próxima vez, vamos juntas. — sugeriu ela, dando um tapinha no meu ombro.
Sorri, sentindo o alívio de estar em casa. O sítio parecia um refúgio perfeito depois do dia que tive. Enquanto ela me chamava para entrar, prometi a mim mesma que, da próxima vez, eu encararia aquelas reações com mais leveza. Afinal, era apenas uma cidadezinha aprendendo a lidar com algo novo.
A tristeza acabou batendo de repente por saber que estar ali no sítio da minha tia não era um passeio e sim porque fiquei sem opções. Eu era uma sobrinha horrível, não era? Acreditava que sim!
Acordei com o mugido da vaca soando mais alto e agudo do que o habitual. Ainda meio zonza de sono, me vesti rápido e corri para o curral. A cena me deixou aflita: Branquinha, uma das vacas da tia, estava deitada no chão, respirando com dificuldade. Tia Marta já estava lá, ajoelhada ao lado dela, com o rosto marcado pela preocupação.— Raila, ela piorou desde ontem. — disse tia Marta, a voz embargada. — Nem comeu o pouco que coloquei para ela.— A gente precisa fazer alguma coisa, tia. — respondi, tentando conter o nervosismo. — Tem certeza que ela não teve nenhuma melhora?— Nenhuma, menina. Estou achando que nós não vamos dar conta sozinhas.Olhei para Branquinha, tentando pensar em algo que pudesse ajudar. Peguei um balde de água fresca e tentei oferecer, mas ela sequer abriu os olhos. O sentimento de impotência começava a me consumir.— Talvez ela esteja desidratada, tia. Vamos tentar levantar? — sugeri, embora, no fundo, eu soubesse que não seria tão simples.Tia Marta assentiu, e
Marcio MelloCheguei ao sítio já no fim da tarde, depois de horas tentando resolver a confusão com meu carro. A estrada de terra parecia um teste de resistência, mas enfim estava ali, diante do casarão simples e cercado por um ar tão puro que me fez esquecer do cansaço por um instante. No entanto, a sensação de tranquilidade foi logo interrompida. Uma jovem que nunca vi antes ali aguardava na varanda, os braços cruzados e o olhar afiado como lâmina.— Finalmente resolveu aparecer? — disse ela, a voz carregada de ironia.Parei por um instante, ajeitando o chapéu enquanto tentava recuperar o fôlego. Não queria começar mal, mas o jeito ríspido dela me pegou de surpresa.— Tive uns contratempos na estrada. Meu carro quebrou. — expliquei, tentando soar mais calmo do que me sentia. — Vim o mais rápido que pude.Ela bufou, balançando a cabeça como se minha justificativa fosse uma desculpa esfarrapada.— A vaca tá mal desde ontem. Não sei se dá pra salvar. Mas claro, você tinha mais o que faz
Raila SalimQuando abri os olhos, o cheiro de café fresco e pão assado já dominava o ar. Minha tia Marta não dava trégua, sempre madrugando para preparar o desjejum mais farto. Antes mesmo de me levantar, ouvi sua voz firme e inconfundível atravessando a casa:— Raila! Levanta logo, menina. O café tá na mesa!Soltei um suspiro. Era sempre assim, ela mais animada do que o necessário para aquela hora. Espreguicei-me e fui até a cozinha. Lá estava ela, com o avental manchado de farinha e os cabelos presos em um coque que parecia estar à prova de tempestades. A mesa estava posta com frutas, pães, manteiga e um bolo de fubá. Ela se virou e me encarou com aquele olhar típico dela, uma mistura de carinho e determinação.— Senta logo. Comida esfriando não tem graça.Me sentei sem reclamar, afinal, Marta tinha um talento especial para fazer com que até as coisas simples parecessem um banquete. Peguei um pedaço de pão, passei manteiga e mordi enquanto ela me observava com uma expressão que eu c
A vaca ainda estava deitada no canto do curral, o olhar dela refletindo o cansaço de quem travava uma batalha silenciosa contra a dor. Eu tinha acabado de jogar um pouco de feno ao lado dela, tentando incentivá-la a comer, quando ouvi os passos de Márcio se aproximando. O som das botas dele no chão de terra ecoava no meu peito como um tambor. Eu sabia que ele viria, sempre vinha, mas isso não tornava a situação mais fácil.— Como ela está? — perguntou ele, com aquela voz firme, mas tingida de preocupação.Não levantei o rosto. Continuei ajoelhada ao lado da vaca, passando a mão pelo pelo dela, como se pudesse acalmá-la ou transferir um pouco da minha força para ela. Respondi sem olhar para ele:— Igual. Não melhorou muito desde ontem.Eu podia sentir o peso do olhar dele sobre mim, mas me recusei a retribuí-lo. Havia algo na maneira como ele me encarava, sempre tentando quebrar essa barreira invisível que eu erguera entre nós. Não era só sobre a vaca. Não podia ser.— Precisamos ajust
Marcio MelloA noite estava fria, e o vento zunia pelas frestas da janela da sala. Eu tinha acabado de me jogar no sofá, ainda com a camisa polo amarrotada do trabalho. O cheiro de desinfetante e pelos de cachorro parecia ter impregnado em mim. Meu corpo estava exausto, mas minha mente ainda repassava a cirurgia difícil que eu fizera mais cedo. A anestesia demorou mais do que o esperado para fazer efeito, e a situação do animal era delicada. Só queria um pouco de silêncio.— Você não vai sair hoje? — perguntou meu irmão mais velho, encostado na porta da sala com aquela postura relaxada que sempre me irritou. Ele era o oposto de mim. Enquanto eu me matava no trabalho, ele parecia sempre encontrar tempo para viver a vida, como ele mesmo dizia.Levantei os olhos, tentando disfarçar o incômodo. — Não. Tô cansado.Ele deu uma risadinha curta e balançou a cabeça, como se já esperasse essa resposta. Veio caminhando até o meio da sala, parando na frente da TV desligada.— Você tá sempre cans
Raila SalimEu estava encostada na cerca, observando o movimento ao redor do sítio. O som dos pássaros e o vento suave não conseguiam aliviar o incômodo que crescia dentro de mim. Marcio estava ali novamente, como sempre que minha tia Marta inventava uma desculpa para chamá-lo. Ele tinha aquele jeito calmo demais que me irritava, como se nada no mundo pudesse aborrecê-lo.— Pode me ajudar com isso aqui? — ele perguntou, apontando para algo que segurava nas mãos.Eu peguei sem sequer olhar diretamente para ele. — Você consegue fazer sozinho, não?— Claro que consigo, mas ajuda nunca é demais.Revirei os olhos, preferindo não responder. Marcio continuou com seu trabalho, concentrado, enquanto tia Marta surgiu na varanda com aquele olhar de quem estava planejando alguma coisa.— Vocês dois fazem uma ótima equipe. Deviam conversar mais, sabe? Raila, você precisa se abrir mais para as pessoas.— Já falei que não preciso de amigos, tia. Principalmente de um como ele.Marcio levantou os olh
Marcio MelloA sala do consultório estava com o ar parado, carregado de uma mistura de desinfetante e o cheiro agridoce de animais. Na mesa de atendimento, um porco se debatia levemente, talvez desconfiado do que estava por vir. O dono, um homem de feições cansadas e um boné surrado, tagarelava sem parar. Eu, entretanto, mal conseguia acompanhar suas palavras. Minha mente estava em outro lugar.Raila. Ela era como uma sombra persistente, ocupando cada canto da minha cabeça. Hostil, cortante e, ao mesmo tempo, magnética. Eu já tinha aceitado o fato de que pensar nela era inevitável, mesmo que isso me deixasse com a sensação de estar perdendo o controle.— Doutor, o senhor acha que é grave? — a voz do homem me puxou de volta.— Pode ser só uma infecção no casco. Vou precisar examinar melhor.Peguei minhas ferramentas e me aproximei do porco, tentando focar no trabalho. Contudo, as imagens dela insistiam em invadir. Lembrei-me da última vez que nos cruzamos ao acaso. Foi no mercado, e el
Raila SalimEra um daqueles dias que o sol brilhava sem piedade, aquecendo o ar com uma intensidade quase sufocante. Minha tia Marta, sempre prática, apareceu no meu quarto logo cedo.— Vamos para a cidade hoje. Preciso repor o estoque do sítio. — anunciou, com aquele tom que não admitia recusas.Levantei-me com certa relutância, mas a perspectiva de sair da rotina do sítio me animou. Depois de um café reforçado, partimos na velha caminhonete que parecia se segurar mais pela teimosia da minha tia do que pela mecânica.No caminho, o vento quente entrava pelas janelas abertas, bagunçando meu cabelo e trazendo o cheiro doce das árvores de manga que margeavam a estrada. Minha tia dirigia com firmeza, os olhos fixos à frente, enquanto eu tentava encontrar formas curiosas nas nuvens espalhadas pelo céu.— Preciso comprar sementes, fertilizantes e algumas ferramentas novas. Você pode me ajudar a carregar as coisas. — ela disse, quebrando o silêncio.— Claro, tia. E, se sobrar um tempinho, po