Raila SalimEu estava encostada na cerca, observando o movimento ao redor do sítio. O som dos pássaros e o vento suave não conseguiam aliviar o incômodo que crescia dentro de mim. Marcio estava ali novamente, como sempre que minha tia Marta inventava uma desculpa para chamá-lo. Ele tinha aquele jeito calmo demais que me irritava, como se nada no mundo pudesse aborrecê-lo.— Pode me ajudar com isso aqui? — ele perguntou, apontando para algo que segurava nas mãos.Eu peguei sem sequer olhar diretamente para ele. — Você consegue fazer sozinho, não?— Claro que consigo, mas ajuda nunca é demais.Revirei os olhos, preferindo não responder. Marcio continuou com seu trabalho, concentrado, enquanto tia Marta surgiu na varanda com aquele olhar de quem estava planejando alguma coisa.— Vocês dois fazem uma ótima equipe. Deviam conversar mais, sabe? Raila, você precisa se abrir mais para as pessoas.— Já falei que não preciso de amigos, tia. Principalmente de um como ele.Marcio levantou os olh
Marcio MelloA sala do consultório estava com o ar parado, carregado de uma mistura de desinfetante e o cheiro agridoce de animais. Na mesa de atendimento, um porco se debatia levemente, talvez desconfiado do que estava por vir. O dono, um homem de feições cansadas e um boné surrado, tagarelava sem parar. Eu, entretanto, mal conseguia acompanhar suas palavras. Minha mente estava em outro lugar.Raila. Ela era como uma sombra persistente, ocupando cada canto da minha cabeça. Hostil, cortante e, ao mesmo tempo, magnética. Eu já tinha aceitado o fato de que pensar nela era inevitável, mesmo que isso me deixasse com a sensação de estar perdendo o controle.— Doutor, o senhor acha que é grave? — a voz do homem me puxou de volta.— Pode ser só uma infecção no casco. Vou precisar examinar melhor.Peguei minhas ferramentas e me aproximei do porco, tentando focar no trabalho. Contudo, as imagens dela insistiam em invadir. Lembrei-me da última vez que nos cruzamos ao acaso. Foi no mercado, e el
Raila SalimEra um daqueles dias que o sol brilhava sem piedade, aquecendo o ar com uma intensidade quase sufocante. Minha tia Marta, sempre prática, apareceu no meu quarto logo cedo.— Vamos para a cidade hoje. Preciso repor o estoque do sítio. — anunciou, com aquele tom que não admitia recusas.Levantei-me com certa relutância, mas a perspectiva de sair da rotina do sítio me animou. Depois de um café reforçado, partimos na velha caminhonete que parecia se segurar mais pela teimosia da minha tia do que pela mecânica.No caminho, o vento quente entrava pelas janelas abertas, bagunçando meu cabelo e trazendo o cheiro doce das árvores de manga que margeavam a estrada. Minha tia dirigia com firmeza, os olhos fixos à frente, enquanto eu tentava encontrar formas curiosas nas nuvens espalhadas pelo céu.— Preciso comprar sementes, fertilizantes e algumas ferramentas novas. Você pode me ajudar a carregar as coisas. — ela disse, quebrando o silêncio.— Claro, tia. E, se sobrar um tempinho, po
Marcio MelloO sol ainda estava baixo, mas já fazia o suficiente para aquecer o curral enquanto eu cuidava da vaca outra vez. O cheiro de terra misturado ao da ração fresca preenchia o ar, e a vaca mastigava calmamente, alheia a qualquer preocupação do mundo. Eu, por outro lado, sentia uma inquietação que não sabia explicar direito. Talvez fosse a presença de Raila, sentada ali perto, observando tudo em silêncio.— Raila. — comecei, tentando soar casual enquanto ajeitava o balde. — Nunca te perguntei, mas de onde você veio? Tudo que sei de você é que é sobrinha da dona Marta e nada mais.Ela levantou o olhar, e por um instante achei que tivesse me ouvido errado. Seus olhos, sempre tão misteriosos, pareceram endurecer, como se eu tivesse tocado em algo que não devia. Mas ela logo disfarçou, ajeitando o lenço que usava na cabeça.— Ah, isso não é muito interessante, não. — a voz dela saiu baixa, quase um sussurro.— Como assim não é interessante? Todo mundo tem uma história. Aposto que
Raila Salim Eu ainda estava me sentindo desconfortável com a forma como fugi da conversa com o Marcio no dia anterior. Ele tinha me perguntado algo tão simples, mas a resposta era complexa demais para caber em palavras naquele momento. Hoje, porém, decidi que não poderia continuar me escondendo. Se ele tinha mostrado interesse em entender minha dor, eu precisava pelo menos tentar explicar.O encontrei no curral, onde ele estava examinando novamente a branquinha, a vaca que havia mostrado sinais de algum problema dias atrás e retornado recentemente. O cheiro de terra misturado ao do gado era forte, mas já fazia parte do cotidiano. Marcio estava agachado, concentrado, com a mão firme no flanco do animal. Quando me viu, levantou o olhar e abriu um sorriso discreto.— Bom dia, Raila.— Bom dia, Marcio. — minha voz saiu baixa, quase hesitante. — Podemos conversar?Ele pareceu surpreso, mas assentiu de imediato, levantando-se e limpando as mãos na calça jeans. Ele indicou um banquinho de m
Marcio MelloEu tava em casa, tranquilo, comendo meu milho-cozido, quando algo aconteceu. Não sei o que deu, mas acho que fui engolir o milho com pressa. Acontece, né? Uma hora você tá ali, saboreando o milho, e na outra... engasga. O grão de milho entrou reto na minha garganta, bem no meio, e eu comecei a sufocar. Minha garganta travou e comecei a tossir sem parar. Era um pânico total. Eu não conseguia respirar, e só conseguia pensar: "Meu Deus, como é que eu vou morrer com um grão de milho preso na garganta?"Fui direto para o hospital, sem saber se ia sobreviver ou não. Cheguei lá, entrei pela porta como um herói, mas com a cara de quem já tava se preparando para a tragédia. As enfermeiras estavam no balcão, conversando, quando me viram, e imediatamente começaram a rir de mim. A situação era tão absurda que nem eu conseguia acreditar.— Eu... eu me engasguei. — falei, tentando puxar o ar.Uma das enfermeiras olhou para mim com uma cara de quem tava tentando entender o que tava acon
Raila SalimO cheiro da terra molhada ainda estava forte no ar depois da chuva. O sol reaparecia entre as nuvens, iluminando os campos verdes do sítio. Eu observava Marcio com curiosidade enquanto ele cuidava da vaca da minha tia. Desde que ele começou a vir aqui, a rotina mudou. Ele tinha um jeito tranquilo e uma habilidade natural para lidar com os animais.— Ela vai ficar bem? — perguntei, tentando disfarçar a preocupação.Ele ergueu os olhos para mim, sorrindo de leve, e respondeu com a voz tranquila: — Vai sim. Foi só uma infecção leve, nada que esse remédio aqui não resolva.Fiquei em silêncio, observando com atenção. Era curioso como o Marcio parecia em casa ali, no meio da simplicidade do sítio. Diferente de mim, que sempre me senti como uma visitante nesse tipo de lugar.— Você às vezes parece bem deslocada, já percebi isso. — ele quebrou o silêncio, guardando o que sobrou do material que usou.— Realmente, ainda estou em processo de adaptação.— A vida aqui é mais devagar,
Eu corri pelo gramado, sentindo o vento fresco bater no rosto. A tarde estava linda, e o cheiro de terra molhada ainda pairava no ar depois da chuva da noite passada. Tudo parecia perfeito, até que meus pés tropeçaram numa raiz que insistia em sair da terra. Antes que eu pudesse me segurar, estava no chão.— Ai! — gemi, sentindo a dor latejar no meu joelho.Olhei para baixo e vi que ele estava esfolado, com pequenos pontos de sangue aparecendo. A dor era incômoda, mas mais do que isso, senti a vergonha de ter caído como uma criança desajeitada. Coisas estranhas tinham que acontecer comigo por quê?— Raila! — gritou tia Marta, correndo em minha direção com uma expressão preocupada. — Você está bem?— Tô... mais ou menos. — respondi, tentando rir para disfarçar. Foi muito constrangedor, ainda mais sabendo que minha tia viu tudo.Ela se ajoelhou ao meu lado, analisando o machucado com cuidado.— Vamos para a cozinha. Preciso limpar isso antes que infeccione.Não tive escolha a não ser se