A vaca ainda estava deitada no canto do curral, o olhar dela refletindo o cansaço de quem travava uma batalha silenciosa contra a dor. Eu tinha acabado de jogar um pouco de feno ao lado dela, tentando incentivá-la a comer, quando ouvi os passos de Márcio se aproximando. O som das botas dele no chão de terra ecoava no meu peito como um tambor. Eu sabia que ele viria, sempre vinha, mas isso não tornava a situação mais fácil.
— Como ela está? — perguntou ele, com aquela voz firme, mas tingida de preocupação.
Não levantei o rosto. Continuei ajoelhada ao lado da vaca, passando a mão pelo pelo dela, como se pudesse acalmá-la ou transferir um pouco da minha força para ela. Respondi sem olhar para ele:
— Igual. Não melhorou muito desde ontem.
Eu podia sentir o peso do olhar dele sobre mim, mas me recusei a retribuí-lo. Havia algo na maneira como ele me encarava, sempre tentando quebrar essa barreira invisível que eu erguera entre nós. Não era só sobre a vaca. Não podia ser.
— Precisamos ajustar a medicação dela. Vou checar o que mais podemos fazer.
A declaração dele era profissional, direta, mas eu sabia que ele também estava tentando encontrar uma brecha para me entender. Respirei fundo, ainda com os olhos fixos no animal.
— Não precisa ficar vindo aqui todo dia, Marcio. Eu consigo lidar com isso.
Ele deu um passo para frente, a prancheta dele pendendo na mão como se fosse apenas um detalhe.
— Você sabe que meu trabalho não é só com os animais, Raila.
Vi um lampejo de algo no rosto dele — talvez dor, talvez frustração — antes de ele desviar o olhar para o curral.
— A vaca é só uma parte disso. Você é a outra.
Essas palavras pairaram no ar entre nós, pesadas como uma tempestade prestes a desabar. Eu me levantei devagar, limpando as mãos na calça jeans, tentando ganhar tempo para mascarar minha reação.
— Talvez seja melhor você se concentrar no que importa, então. Eu estou bem.
Ele deu outro passo, dessa vez apoiando a prancheta no curral, como se precisasse de ambas as mãos livres para gesticular.
— Você sempre diz isso. Que está bem. Mas não parece. E eu não vou fingir que não vejo.
O som da voz dele carregava tanto peso que eu quase recuei. Quase. Mas não podia. Meu coração já tinha colecionado cicatrizes demais para eu me deixar ceder agora.
— Não é sobre você, Marcio. Nunca foi.
— Então me explica. Me dá uma razão pra eu parar de tentar entender porque você age dessa maneira.
Eu ri, mas foi um som amargo, sem alegria.
— Você quer uma razão? Olha ao seu redor. Tudo aqui é um lembrete de que nada é permanente. Nem pessoas, nem coisas. Tudo quebra, tudo se vai. Então é melhor deixar assim.
Ele ficou em silêncio por um momento, processando minhas palavras. Então balançou a cabeça, como se discordasse de cada uma delas.
— Isso é só medo falando, Raila. Você acha que está se protegendo, mas está só se machucando mais guardando tudo que te deixa triste para si mesma.
— E o que você sabe sobre isso? — rebati, com mais veemência do que pretendia. — O que você sabe sobre perder tudo o que importa?
Ele deu um passo para trás, como se minhas palavras tivessem lhe acertado como um golpe. Por um momento, achei que ele fosse desistir. Que fosse virar as costas e ir embora como eu queria. Mas ele não foi.
— Eu sei mais do que você pensa, Raila. E é exatamente por isso que eu não vou desistir de entender você.
Essas palavras me atingiram de um jeito que eu não estava pronta. Meu coração pulou no peito, enquanto minha mente corria, tentando encontrar uma resposta que mantivesse minha postura fria e distante. Mas não consegui dizer nada. Apenas o encarei, torcendo para que ele não visse as rachaduras na minha armadura.
Ele suspirou, passando a mão pelos cabelos, como se precisasse descarregar a tensão.
— Eu vou voltar amanhã, Raila. E no dia seguinte, e no outro. Até você entender que não precisa enfrentar tudo sozinha.
Antes que eu pudesse protestar, ele pegou a prancheta e foi embora, deixando-me ali, sozinha com a vaca e com o peso das palavras dele. O som das botas dele se afastando foi como um eco no meu silêncio interno.
Olhei para o animal mais uma vez.
— Você ao menos entende por que ele não desiste? — murmurei, sabendo que a resposta não viria. Contudo, no fundo, eu sabia que também não tinha essa resposta. E esse talvez fosse o maior problema de todos.
Mais tarde, enquanto lavava as mãos na pia da cozinha, minha tia Marta entrou. O cheiro de café fresco invadiu o espaço, e ela se aproximou com duas xícaras.
— Vi o Marcio saindo mais cedo parecendo chateado. Ele parece preocupado com você, minha filha. — Sua voz era suave, mas cheia daquele tom que só as pessoas que nos conhecem profundamente conseguem usar.
— Ele não passa de um intrometido. — respondi, tentando soar indiferente. Peguei a xícara que ela me oferecia e me sentei à mesa.
Minha tia sentou-se na minha frente, observando-me com aqueles olhos analíticos que sempre pareciam enxergar o que eu queria esconder.
— E você? Como está de verdade?
Suspirei, mexendo no café sem realmente beber.
— Estou levando. Não tem muito o que fazer, né?
Ela ficou em silêncio por um momento, como se ponderasse as próximas palavras.
— Seus avós ligaram ontem. — a frase foi dita com cuidado, mas mesmo assim me atingiu como um soco.
— Ligaram? — minha voz saiu baixa, quase um sussurro. Levantei o olhar para ela, esperando algo mais.
— Sim. Queriam saber como eu estava, como as coisas por aqui estavam indo. — ela fez uma pausa, como se não quisesse continuar. Mas terminou: — Não perguntaram de você.
Aquelas palavras quebraram algo dentro de mim. Tentei engolir a dor, mas foi impossível. As lágrimas vieram antes que eu pudesse contê-las. Minha tia se levantou imediatamente, contornando a mesa para me abraçar.
— Oh, minha menina. — ela sussurrou, me envolvendo com seus braços fortes e acolhedores. — Não fica assim. Isso não tem nada a ver com você. São eles que não sabem o que estão perdendo.
Afundei o rosto no ombro dela, deixando que o calor do seu carinho aliviasse a dor que parecia me consumir.
— Por que eles não se importam? — murmurei, entre soluços.
— Eles ainda estão magoados porque você perdeu a empresa que eles construíram, Raila. Nem todo mundo sabe amar como deveria acima dos bens materiais. Mas você é amada, e isso é o que importa.
Aquelas palavras, ditas com tanta ternura, eram um pequeno consolo. Permaneci ali, nos braços da minha tia, sentindo que pela primeira vez em muito tempo eu podia simplesmente deixar a dor sair, sem reservas.
Marcio MelloA noite estava fria, e o vento zunia pelas frestas da janela da sala. Eu tinha acabado de me jogar no sofá, ainda com a camisa polo amarrotada do trabalho. O cheiro de desinfetante e pelos de cachorro parecia ter impregnado em mim. Meu corpo estava exausto, mas minha mente ainda repassava a cirurgia difícil que eu fizera mais cedo. A anestesia demorou mais do que o esperado para fazer efeito, e a situação do animal era delicada. Só queria um pouco de silêncio.— Você não vai sair hoje? — perguntou meu irmão mais velho, encostado na porta da sala com aquela postura relaxada que sempre me irritou. Ele era o oposto de mim. Enquanto eu me matava no trabalho, ele parecia sempre encontrar tempo para viver a vida, como ele mesmo dizia.Levantei os olhos, tentando disfarçar o incômodo. — Não. Tô cansado.Ele deu uma risadinha curta e balançou a cabeça, como se já esperasse essa resposta. Veio caminhando até o meio da sala, parando na frente da TV desligada.— Você tá sempre cans
Raila SalimEu estava encostada na cerca, observando o movimento ao redor do sítio. O som dos pássaros e o vento suave não conseguiam aliviar o incômodo que crescia dentro de mim. Marcio estava ali novamente, como sempre que minha tia Marta inventava uma desculpa para chamá-lo. Ele tinha aquele jeito calmo demais que me irritava, como se nada no mundo pudesse aborrecê-lo.— Pode me ajudar com isso aqui? — ele perguntou, apontando para algo que segurava nas mãos.Eu peguei sem sequer olhar diretamente para ele. — Você consegue fazer sozinho, não?— Claro que consigo, mas ajuda nunca é demais.Revirei os olhos, preferindo não responder. Marcio continuou com seu trabalho, concentrado, enquanto tia Marta surgiu na varanda com aquele olhar de quem estava planejando alguma coisa.— Vocês dois fazem uma ótima equipe. Deviam conversar mais, sabe? Raila, você precisa se abrir mais para as pessoas.— Já falei que não preciso de amigos, tia. Principalmente de um como ele.Marcio levantou os olh
Marcio MelloA sala do consultório estava com o ar parado, carregado de uma mistura de desinfetante e o cheiro agridoce de animais. Na mesa de atendimento, um porco se debatia levemente, talvez desconfiado do que estava por vir. O dono, um homem de feições cansadas e um boné surrado, tagarelava sem parar. Eu, entretanto, mal conseguia acompanhar suas palavras. Minha mente estava em outro lugar.Raila. Ela era como uma sombra persistente, ocupando cada canto da minha cabeça. Hostil, cortante e, ao mesmo tempo, magnética. Eu já tinha aceitado o fato de que pensar nela era inevitável, mesmo que isso me deixasse com a sensação de estar perdendo o controle.— Doutor, o senhor acha que é grave? — a voz do homem me puxou de volta.— Pode ser só uma infecção no casco. Vou precisar examinar melhor.Peguei minhas ferramentas e me aproximei do porco, tentando focar no trabalho. Contudo, as imagens dela insistiam em invadir. Lembrei-me da última vez que nos cruzamos ao acaso. Foi no mercado, e el
Raila SalimEra um daqueles dias que o sol brilhava sem piedade, aquecendo o ar com uma intensidade quase sufocante. Minha tia Marta, sempre prática, apareceu no meu quarto logo cedo.— Vamos para a cidade hoje. Preciso repor o estoque do sítio. — anunciou, com aquele tom que não admitia recusas.Levantei-me com certa relutância, mas a perspectiva de sair da rotina do sítio me animou. Depois de um café reforçado, partimos na velha caminhonete que parecia se segurar mais pela teimosia da minha tia do que pela mecânica.No caminho, o vento quente entrava pelas janelas abertas, bagunçando meu cabelo e trazendo o cheiro doce das árvores de manga que margeavam a estrada. Minha tia dirigia com firmeza, os olhos fixos à frente, enquanto eu tentava encontrar formas curiosas nas nuvens espalhadas pelo céu.— Preciso comprar sementes, fertilizantes e algumas ferramentas novas. Você pode me ajudar a carregar as coisas. — ela disse, quebrando o silêncio.— Claro, tia. E, se sobrar um tempinho, po
Marcio MelloO sol ainda estava baixo, mas já fazia o suficiente para aquecer o curral enquanto eu cuidava da vaca outra vez. O cheiro de terra misturado ao da ração fresca preenchia o ar, e a vaca mastigava calmamente, alheia a qualquer preocupação do mundo. Eu, por outro lado, sentia uma inquietação que não sabia explicar direito. Talvez fosse a presença de Raila, sentada ali perto, observando tudo em silêncio.— Raila. — comecei, tentando soar casual enquanto ajeitava o balde. — Nunca te perguntei, mas de onde você veio? Tudo que sei de você é que é sobrinha da dona Marta e nada mais.Ela levantou o olhar, e por um instante achei que tivesse me ouvido errado. Seus olhos, sempre tão misteriosos, pareceram endurecer, como se eu tivesse tocado em algo que não devia. Mas ela logo disfarçou, ajeitando o lenço que usava na cabeça.— Ah, isso não é muito interessante, não. — a voz dela saiu baixa, quase um sussurro.— Como assim não é interessante? Todo mundo tem uma história. Aposto que
Raila Salim Eu ainda estava me sentindo desconfortável com a forma como fugi da conversa com o Marcio no dia anterior. Ele tinha me perguntado algo tão simples, mas a resposta era complexa demais para caber em palavras naquele momento. Hoje, porém, decidi que não poderia continuar me escondendo. Se ele tinha mostrado interesse em entender minha dor, eu precisava pelo menos tentar explicar.O encontrei no curral, onde ele estava examinando novamente a branquinha, a vaca que havia mostrado sinais de algum problema dias atrás e retornado recentemente. O cheiro de terra misturado ao do gado era forte, mas já fazia parte do cotidiano. Marcio estava agachado, concentrado, com a mão firme no flanco do animal. Quando me viu, levantou o olhar e abriu um sorriso discreto.— Bom dia, Raila.— Bom dia, Marcio. — minha voz saiu baixa, quase hesitante. — Podemos conversar?Ele pareceu surpreso, mas assentiu de imediato, levantando-se e limpando as mãos na calça jeans. Ele indicou um banquinho de m
Marcio MelloEu tava em casa, tranquilo, comendo meu milho-cozido, quando algo aconteceu. Não sei o que deu, mas acho que fui engolir o milho com pressa. Acontece, né? Uma hora você tá ali, saboreando o milho, e na outra... engasga. O grão de milho entrou reto na minha garganta, bem no meio, e eu comecei a sufocar. Minha garganta travou e comecei a tossir sem parar. Era um pânico total. Eu não conseguia respirar, e só conseguia pensar: "Meu Deus, como é que eu vou morrer com um grão de milho preso na garganta?"Fui direto para o hospital, sem saber se ia sobreviver ou não. Cheguei lá, entrei pela porta como um herói, mas com a cara de quem já tava se preparando para a tragédia. As enfermeiras estavam no balcão, conversando, quando me viram, e imediatamente começaram a rir de mim. A situação era tão absurda que nem eu conseguia acreditar.— Eu... eu me engasguei. — falei, tentando puxar o ar.Uma das enfermeiras olhou para mim com uma cara de quem tava tentando entender o que tava acon
Raila SalimO cheiro da terra molhada ainda estava forte no ar depois da chuva. O sol reaparecia entre as nuvens, iluminando os campos verdes do sítio. Eu observava Marcio com curiosidade enquanto ele cuidava da vaca da minha tia. Desde que ele começou a vir aqui, a rotina mudou. Ele tinha um jeito tranquilo e uma habilidade natural para lidar com os animais.— Ela vai ficar bem? — perguntei, tentando disfarçar a preocupação.Ele ergueu os olhos para mim, sorrindo de leve, e respondeu com a voz tranquila: — Vai sim. Foi só uma infecção leve, nada que esse remédio aqui não resolva.Fiquei em silêncio, observando com atenção. Era curioso como o Marcio parecia em casa ali, no meio da simplicidade do sítio. Diferente de mim, que sempre me senti como uma visitante nesse tipo de lugar.— Você às vezes parece bem deslocada, já percebi isso. — ele quebrou o silêncio, guardando o que sobrou do material que usou.— Realmente, ainda estou em processo de adaptação.— A vida aqui é mais devagar,