Raila Salim
Quando abri os olhos, o cheiro de café fresco e pão assado já dominava o ar. Minha tia Marta não dava trégua, sempre madrugando para preparar o desjejum mais farto. Antes mesmo de me levantar, ouvi sua voz firme e inconfundível atravessando a casa:
— Raila! Levanta logo, menina. O café tá na mesa!
Soltei um suspiro. Era sempre assim, ela mais animada do que o necessário para aquela hora. Espreguicei-me e fui até a cozinha. Lá estava ela, com o avental manchado de farinha e os cabelos presos em um coque que parecia estar à prova de tempestades. A mesa estava posta com frutas, pães, manteiga e um bolo de fubá. Ela se virou e me encarou com aquele olhar típico dela, uma mistura de carinho e determinação.
— Senta logo. Comida esfriando não tem graça.
Me sentei sem reclamar, afinal, Marta tinha um talento especial para fazer com que até as coisas simples parecessem um banquete. Peguei um pedaço de pão, passei manteiga e mordi enquanto ela me observava com uma expressão que eu conhecia bem. Ela estava prestes a puxar algum assunto que, com certeza, eu não queria discutir.
— Raila, posso te perguntar uma coisa?
— Pode. — respondi, de boca cheia.
— Por que você trata o Marcio daquele jeito?
Engasguei com o pão. Marcio. O veterinário. O assunto que eu queria evitar mais do que tudo. Limpei a garganta e tentei disfarçar.
— Como assim, daquele jeito? Eu trato ele normal.
Ela soltou uma risada curta, quase sarcástica, e cruzou os braços.
— Normal? Menina, você mal olha na cara dele. Quando olha, parece que tá querendo matar o rapaz com os olhos. Isso não é normal.
— Eu só... não fui com a cara dele, tá bom? — respondi, desviando o olhar.
Ela balançou a cabeça, desaprovando minha resposta, e se apoiou no balcão, encarando-me de cima.
— Não foi com a cara dele? Raila, o Marcio é um dos melhores rapazes que já apareceu por aqui. Sempre ajudando todo mundo, nunca reclama de nada. E você me vem com essa? Isso não faz sentido.
— Eu não consigo — admiti, sentindo o peso de suas palavras. — Ele... tem algo nele que me incomoda. Não sei explicar.
Minha tia deu um suspiro longo, como se tentasse reunir paciência para lidar comigo. Depois, sentou-se à mesa, bem na minha frente, e me olhou nos olhos.
— Sabe, às vezes a gente cria barreiras que nem deveriam existir. Talvez você esteja enxergando coisas onde não tem. Já pensou nisso?
— Não é isso, tia. Eu só... — hesitei, tentando encontrar as palavras certas. — Ele parece ser todo certinho, sabe? Parece que tá sempre julgando as pessoas, mesmo sem dizer nada.
— Julgando? Raila, você tá se ouvindo? Ele tá sempre na dele, quieto, fazendo o trabalho dele. Se tem alguém julgando alguém aqui, acho que é você.
Aquilo me atingiu como um soco. Talvez ela tivesse razão. Talvez eu fosse o problema. Mas admitir isso? Nem pensar.
— Só não gosto dele, tia. Não é crime, né?
Ela suspirou novamente, mas dessa vez parecia mais resignada.
— Olha, não tô dizendo que você tem que ser melhor amiga dele. Só acho que, às vezes, vale a pena dar uma chance pras pessoas. Você pode se surpreender.
Ficamos em silêncio por alguns minutos. Eu terminei meu café, mas minha cabeça estava a mil. Por que, afinal, o Marcio me incomodava tanto? Talvez fosse aquele jeito impecável dele, sempre educado, sempre disposto. Como se fosse impossível que alguém fosse tão perfeito assim.
Minha tia, como sempre, parecia ler meus pensamentos.
— Sabe, Raila, a vida é muito curta pra gente gastar energia com implicância. Não quero te ver guardando mágoas ou antipatia à toa. Promete que vai tentar ser mais cordial com ele? Só um pouquinho.
— Tá bom, tá bom. — respondi, derrotada. — Vou tentar.
Ela sorriu, satisfeita, e começou a recolher os pratos da mesa. Mas, no fundo, eu sabia que aquilo era mais fácil falar do que fazer. Tentar ser cordial com Marcio? Só de imaginar, já me dava vontade de sair correndo.
Eu tinha meus problemas e tudo que menos precisava era de um amigo como ele. Meu ex-noivo foi cota suficiente para me ferrar. Mesmo sabendo que não devemos comparar ninguém, eu não conseguia mais confiar em homens.
Saí da mesa mais com um peso no coração.
Peguei meu casaco e saí para o lado de fora. O ar fresco da manhã me envolveu, trazendo um pouco de alívio para os pensamentos que tumultuavam minha mente. O sítio da minha tia era um lugar especial. O verde das árvores, o cheiro de terra úmida e o som dos pássaros sempre traziam uma sensação de paz. Contudo, hoje, nem toda essa tranquilidade parecia suficiente.
Encostei-me ao velho cercado de madeira e olhei para o horizonte. As montanhas ao longe, com seus picos cobertos pela neblina matinal, pareciam distantes e inatingíveis. Assim como os sonhos que um dia tive. Passei os dedos pelo topo áspero da cerca, sentindo cada lasca de madeira, enquanto meus pensamentos voltavam ao que eu havia perdido.
— Tudo culpa dele... — murmurei, deixando as palavras escaparem como um desabafo amargo.
Meu ex-noivo. A lembrança dele era como um espinho cravado em minha alma. Ele havia destruído tudo. Meus planos, minha confiança, minha capacidade de acreditar nas pessoas. Com suas mentiras, ele havia tirado de mim não só o futuro que sonhei, mas também a pessoa que eu costumava ser.
— Não vou deixar isso assim. — declarei, com os punhos cerrados. — Ele vai pagar por tudo que fez.
As palavras saíram da minha boca com uma força que até me surpreendeu. Não era só raiva. Era determinação. Uma promessa para mim mesma de que eu não seria mais a vítima. Que, de alguma forma, eu recuperaria o que me foi tirado.
Olhei para o céu, onde o sol começava a romper as nuvens. A luz dourada parecia um lembrete de que, mesmo nos dias mais sombrios, a esperança ainda podia surgir. Respirei fundo, tentando absorver um pouco daquela energia. A paisagem ao meu redor, com toda sua beleza serena, parecia me dizer que a vida continuava. Que eu também deveria continuar.
— Justiça. É isso que eu quero. — murmurei, mais para mim mesma do que para qualquer outro. — E eu vou conseguir.
Com essa promessa gravada em meu coração, voltei para dentro, pronta para encarar o que viesse pela frente. O que quer que fosse, eu estava decidida a não me deixar abater novamente.
A vaca ainda estava deitada no canto do curral, o olhar dela refletindo o cansaço de quem travava uma batalha silenciosa contra a dor. Eu tinha acabado de jogar um pouco de feno ao lado dela, tentando incentivá-la a comer, quando ouvi os passos de Márcio se aproximando. O som das botas dele no chão de terra ecoava no meu peito como um tambor. Eu sabia que ele viria, sempre vinha, mas isso não tornava a situação mais fácil.— Como ela está? — perguntou ele, com aquela voz firme, mas tingida de preocupação.Não levantei o rosto. Continuei ajoelhada ao lado da vaca, passando a mão pelo pelo dela, como se pudesse acalmá-la ou transferir um pouco da minha força para ela. Respondi sem olhar para ele:— Igual. Não melhorou muito desde ontem.Eu podia sentir o peso do olhar dele sobre mim, mas me recusei a retribuí-lo. Havia algo na maneira como ele me encarava, sempre tentando quebrar essa barreira invisível que eu erguera entre nós. Não era só sobre a vaca. Não podia ser.— Precisamos ajust
Marcio MelloA noite estava fria, e o vento zunia pelas frestas da janela da sala. Eu tinha acabado de me jogar no sofá, ainda com a camisa polo amarrotada do trabalho. O cheiro de desinfetante e pelos de cachorro parecia ter impregnado em mim. Meu corpo estava exausto, mas minha mente ainda repassava a cirurgia difícil que eu fizera mais cedo. A anestesia demorou mais do que o esperado para fazer efeito, e a situação do animal era delicada. Só queria um pouco de silêncio.— Você não vai sair hoje? — perguntou meu irmão mais velho, encostado na porta da sala com aquela postura relaxada que sempre me irritou. Ele era o oposto de mim. Enquanto eu me matava no trabalho, ele parecia sempre encontrar tempo para viver a vida, como ele mesmo dizia.Levantei os olhos, tentando disfarçar o incômodo. — Não. Tô cansado.Ele deu uma risadinha curta e balançou a cabeça, como se já esperasse essa resposta. Veio caminhando até o meio da sala, parando na frente da TV desligada.— Você tá sempre cans
Raila SalimEu estava encostada na cerca, observando o movimento ao redor do sítio. O som dos pássaros e o vento suave não conseguiam aliviar o incômodo que crescia dentro de mim. Marcio estava ali novamente, como sempre que minha tia Marta inventava uma desculpa para chamá-lo. Ele tinha aquele jeito calmo demais que me irritava, como se nada no mundo pudesse aborrecê-lo.— Pode me ajudar com isso aqui? — ele perguntou, apontando para algo que segurava nas mãos.Eu peguei sem sequer olhar diretamente para ele. — Você consegue fazer sozinho, não?— Claro que consigo, mas ajuda nunca é demais.Revirei os olhos, preferindo não responder. Marcio continuou com seu trabalho, concentrado, enquanto tia Marta surgiu na varanda com aquele olhar de quem estava planejando alguma coisa.— Vocês dois fazem uma ótima equipe. Deviam conversar mais, sabe? Raila, você precisa se abrir mais para as pessoas.— Já falei que não preciso de amigos, tia. Principalmente de um como ele.Marcio levantou os olh
Marcio MelloA sala do consultório estava com o ar parado, carregado de uma mistura de desinfetante e o cheiro agridoce de animais. Na mesa de atendimento, um porco se debatia levemente, talvez desconfiado do que estava por vir. O dono, um homem de feições cansadas e um boné surrado, tagarelava sem parar. Eu, entretanto, mal conseguia acompanhar suas palavras. Minha mente estava em outro lugar.Raila. Ela era como uma sombra persistente, ocupando cada canto da minha cabeça. Hostil, cortante e, ao mesmo tempo, magnética. Eu já tinha aceitado o fato de que pensar nela era inevitável, mesmo que isso me deixasse com a sensação de estar perdendo o controle.— Doutor, o senhor acha que é grave? — a voz do homem me puxou de volta.— Pode ser só uma infecção no casco. Vou precisar examinar melhor.Peguei minhas ferramentas e me aproximei do porco, tentando focar no trabalho. Contudo, as imagens dela insistiam em invadir. Lembrei-me da última vez que nos cruzamos ao acaso. Foi no mercado, e el
Raila SalimEra um daqueles dias que o sol brilhava sem piedade, aquecendo o ar com uma intensidade quase sufocante. Minha tia Marta, sempre prática, apareceu no meu quarto logo cedo.— Vamos para a cidade hoje. Preciso repor o estoque do sítio. — anunciou, com aquele tom que não admitia recusas.Levantei-me com certa relutância, mas a perspectiva de sair da rotina do sítio me animou. Depois de um café reforçado, partimos na velha caminhonete que parecia se segurar mais pela teimosia da minha tia do que pela mecânica.No caminho, o vento quente entrava pelas janelas abertas, bagunçando meu cabelo e trazendo o cheiro doce das árvores de manga que margeavam a estrada. Minha tia dirigia com firmeza, os olhos fixos à frente, enquanto eu tentava encontrar formas curiosas nas nuvens espalhadas pelo céu.— Preciso comprar sementes, fertilizantes e algumas ferramentas novas. Você pode me ajudar a carregar as coisas. — ela disse, quebrando o silêncio.— Claro, tia. E, se sobrar um tempinho, po
Marcio MelloO sol ainda estava baixo, mas já fazia o suficiente para aquecer o curral enquanto eu cuidava da vaca outra vez. O cheiro de terra misturado ao da ração fresca preenchia o ar, e a vaca mastigava calmamente, alheia a qualquer preocupação do mundo. Eu, por outro lado, sentia uma inquietação que não sabia explicar direito. Talvez fosse a presença de Raila, sentada ali perto, observando tudo em silêncio.— Raila. — comecei, tentando soar casual enquanto ajeitava o balde. — Nunca te perguntei, mas de onde você veio? Tudo que sei de você é que é sobrinha da dona Marta e nada mais.Ela levantou o olhar, e por um instante achei que tivesse me ouvido errado. Seus olhos, sempre tão misteriosos, pareceram endurecer, como se eu tivesse tocado em algo que não devia. Mas ela logo disfarçou, ajeitando o lenço que usava na cabeça.— Ah, isso não é muito interessante, não. — a voz dela saiu baixa, quase um sussurro.— Como assim não é interessante? Todo mundo tem uma história. Aposto que
Raila Salim Eu ainda estava me sentindo desconfortável com a forma como fugi da conversa com o Marcio no dia anterior. Ele tinha me perguntado algo tão simples, mas a resposta era complexa demais para caber em palavras naquele momento. Hoje, porém, decidi que não poderia continuar me escondendo. Se ele tinha mostrado interesse em entender minha dor, eu precisava pelo menos tentar explicar.O encontrei no curral, onde ele estava examinando novamente a branquinha, a vaca que havia mostrado sinais de algum problema dias atrás e retornado recentemente. O cheiro de terra misturado ao do gado era forte, mas já fazia parte do cotidiano. Marcio estava agachado, concentrado, com a mão firme no flanco do animal. Quando me viu, levantou o olhar e abriu um sorriso discreto.— Bom dia, Raila.— Bom dia, Marcio. — minha voz saiu baixa, quase hesitante. — Podemos conversar?Ele pareceu surpreso, mas assentiu de imediato, levantando-se e limpando as mãos na calça jeans. Ele indicou um banquinho de m
Marcio MelloEu tava em casa, tranquilo, comendo meu milho-cozido, quando algo aconteceu. Não sei o que deu, mas acho que fui engolir o milho com pressa. Acontece, né? Uma hora você tá ali, saboreando o milho, e na outra... engasga. O grão de milho entrou reto na minha garganta, bem no meio, e eu comecei a sufocar. Minha garganta travou e comecei a tossir sem parar. Era um pânico total. Eu não conseguia respirar, e só conseguia pensar: "Meu Deus, como é que eu vou morrer com um grão de milho preso na garganta?"Fui direto para o hospital, sem saber se ia sobreviver ou não. Cheguei lá, entrei pela porta como um herói, mas com a cara de quem já tava se preparando para a tragédia. As enfermeiras estavam no balcão, conversando, quando me viram, e imediatamente começaram a rir de mim. A situação era tão absurda que nem eu conseguia acreditar.— Eu... eu me engasguei. — falei, tentando puxar o ar.Uma das enfermeiras olhou para mim com uma cara de quem tava tentando entender o que tava acon