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Capítulo 7 Café da manhã

Raila Salim

Quando abri os olhos, o cheiro de café fresco e pão assado já dominava o ar. Minha tia Marta não dava trégua, sempre madrugando para preparar o desjejum mais farto. Antes mesmo de me levantar, ouvi sua voz firme e inconfundível atravessando a casa:

— Raila! Levanta logo, menina. O café tá na mesa!

Soltei um suspiro. Era sempre assim, ela mais animada do que o necessário para aquela hora. Espreguicei-me e fui até a cozinha. Lá estava ela, com o avental manchado de farinha e os cabelos presos em um coque que parecia estar à prova de tempestades. A mesa estava posta com frutas, pães, manteiga e um bolo de fubá. Ela se virou e me encarou com aquele olhar típico dela, uma mistura de carinho e determinação.

— Senta logo. Comida esfriando não tem graça.

Me sentei sem reclamar, afinal, Marta tinha um talento especial para fazer com que até as coisas simples parecessem um banquete. Peguei um pedaço de pão, passei manteiga e mordi enquanto ela me observava com uma expressão que eu conhecia bem. Ela estava prestes a puxar algum assunto que, com certeza, eu não queria discutir.

— Raila, posso te perguntar uma coisa?

— Pode. — respondi, de boca cheia.

— Por que você trata o Marcio daquele jeito?

Engasguei com o pão. Marcio. O veterinário. O assunto que eu queria evitar mais do que tudo. Limpei a garganta e tentei disfarçar.

— Como assim, daquele jeito? Eu trato ele normal.

Ela soltou uma risada curta, quase sarcástica, e cruzou os braços.

— Normal? Menina, você mal olha na cara dele. Quando olha, parece que tá querendo matar o rapaz com os olhos. Isso não é normal.

— Eu só... não fui com a cara dele, tá bom? — respondi, desviando o olhar.

Ela balançou a cabeça, desaprovando minha resposta, e se apoiou no balcão, encarando-me de cima.

— Não foi com a cara dele? Raila, o Marcio é um dos melhores rapazes que já apareceu por aqui. Sempre ajudando todo mundo, nunca reclama de nada. E você me vem com essa? Isso não faz sentido.

— Eu não consigo — admiti, sentindo o peso de suas palavras. — Ele... tem algo nele que me incomoda. Não sei explicar.

Minha tia deu um suspiro longo, como se tentasse reunir paciência para lidar comigo. Depois, sentou-se à mesa, bem na minha frente, e me olhou nos olhos.

— Sabe, às vezes a gente cria barreiras que nem deveriam existir. Talvez você esteja enxergando coisas onde não tem. Já pensou nisso?

— Não é isso, tia. Eu só... — hesitei, tentando encontrar as palavras certas. — Ele parece ser todo certinho, sabe? Parece que tá sempre julgando as pessoas, mesmo sem dizer nada.

— Julgando? Raila, você tá se ouvindo? Ele tá sempre na dele, quieto, fazendo o trabalho dele. Se tem alguém julgando alguém aqui, acho que é você.

Aquilo me atingiu como um soco. Talvez ela tivesse razão. Talvez eu fosse o problema. Mas admitir isso? Nem pensar.

— Só não gosto dele, tia. Não é crime, né?

Ela suspirou novamente, mas dessa vez parecia mais resignada.

— Olha, não tô dizendo que você tem que ser melhor amiga dele. Só acho que, às vezes, vale a pena dar uma chance pras pessoas. Você pode se surpreender.

Ficamos em silêncio por alguns minutos. Eu terminei meu café, mas minha cabeça estava a mil. Por que, afinal, o Marcio me incomodava tanto? Talvez fosse aquele jeito impecável dele, sempre educado, sempre disposto. Como se fosse impossível que alguém fosse tão perfeito assim.

Minha tia, como sempre, parecia ler meus pensamentos.

— Sabe, Raila, a vida é muito curta pra gente gastar energia com implicância. Não quero te ver guardando mágoas ou antipatia à toa. Promete que vai tentar ser mais cordial com ele? Só um pouquinho.

— Tá bom, tá bom. — respondi, derrotada. — Vou tentar.

Ela sorriu, satisfeita, e começou a recolher os pratos da mesa. Mas, no fundo, eu sabia que aquilo era mais fácil falar do que fazer. Tentar ser cordial com Marcio? Só de imaginar, já me dava vontade de sair correndo.

Eu tinha meus problemas e tudo que menos precisava era de um amigo como ele. Meu ex-noivo foi cota suficiente para me ferrar. Mesmo sabendo que não devemos comparar ninguém, eu não conseguia mais confiar em homens. 

Saí da mesa mais com um peso no coração.

Peguei meu casaco e saí para o lado de fora. O ar fresco da manhã me envolveu, trazendo um pouco de alívio para os pensamentos que tumultuavam minha mente. O sítio da minha tia era um lugar especial. O verde das árvores, o cheiro de terra úmida e o som dos pássaros sempre traziam uma sensação de paz. Contudo, hoje, nem toda essa tranquilidade parecia suficiente.

Encostei-me ao velho cercado de madeira e olhei para o horizonte. As montanhas ao longe, com seus picos cobertos pela neblina matinal, pareciam distantes e inatingíveis. Assim como os sonhos que um dia tive. Passei os dedos pelo topo áspero da cerca, sentindo cada lasca de madeira, enquanto meus pensamentos voltavam ao que eu havia perdido.

— Tudo culpa dele... — murmurei, deixando as palavras escaparem como um desabafo amargo.

Meu ex-noivo. A lembrança dele era como um espinho cravado em minha alma. Ele havia destruído tudo. Meus planos, minha confiança, minha capacidade de acreditar nas pessoas. Com suas mentiras, ele havia tirado de mim não só o futuro que sonhei, mas também a pessoa que eu costumava ser.

— Não vou deixar isso assim. — declarei, com os punhos cerrados. — Ele vai pagar por tudo que fez.

As palavras saíram da minha boca com uma força que até me surpreendeu. Não era só raiva. Era determinação. Uma promessa para mim mesma de que eu não seria mais a vítima. Que, de alguma forma, eu recuperaria o que me foi tirado.

Olhei para o céu, onde o sol começava a romper as nuvens. A luz dourada parecia um lembrete de que, mesmo nos dias mais sombrios, a esperança ainda podia surgir. Respirei fundo, tentando absorver um pouco daquela energia. A paisagem ao meu redor, com toda sua beleza serena, parecia me dizer que a vida continuava. Que eu também deveria continuar.

— Justiça. É isso que eu quero. — murmurei, mais para mim mesma do que para qualquer outro. — E eu vou conseguir.

Com essa promessa gravada em meu coração, voltei para dentro, pronta para encarar o que viesse pela frente. O que quer que fosse, eu estava decidida a não me deixar abater novamente.

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