O papel na minha mão parecia mais pesado que o mundo inteiro. Meus olhos percorriam cada linha daquele documento como se estivessem presos, como se não conseguissem desviar. Era um contrato... um maldito contrato que levou embora o que eu tinha de mais valioso. Perdi tudo. Algo chamou minha atenção dessa vez. Meus dedos tremiam enquanto eu olhava a assinatura. Era parecida demais com a minha, mas não era minha. O coração disparou como se tentasse fugir do peito. Não conseguia acreditar.
Larguei o papel sobre a mesa e corri para a cozinha, onde minha tia lavava louça, alheia ao meu desespero. Entrei apressada, quase tropeçando em mim mesma.
— Tia, olha isso! — estendi o documento para ela, que enxugou as mãos no avental e pegou o papel, franzindo a testa. — Olha essa assinatura. Parece a minha, não parece?
Ela olhou com atenção, ajustando os óculos que sempre escorregavam pelo nariz.
— Parece, Raila... mas você tem certeza de que não assinou isso? Às vezes, na correria, a gente faz coisa sem perceber.
— Claro que não assinei! — retruquei, minha voz saindo mais alta do que eu pretendia. — Eu sei o que assino, tia. Miguel falsificou isso! E agora... agora eu tô na rua por causa disso.
Minha tia largou o papel sobre a bancada e olhou para mim, visivelmente abalada. Ela sempre foi uma mulher forte, mas dessa vez parecia ter levado um soco no estômago.
— Meu Deus... — ela murmurou, passando a mão pela testa. — Raila, isso é grave. Muito grave.
— Eu sei! E o que eu vou fazer agora? — as palavras saíam como um grito sufocado. — Eu não tenho dinheiro pra advogado, muito menos pra um investigador! Tô de mãos atadas, tia. Eles ganharam. Acabou pra mim.
Ela balançou a cabeça devagar, como se tentasse processar o que eu dizia.
— Queria poder te ajudar, mas... — suspirou, olhando para as mãos como se procurasse uma resposta ali. — Você sabe como estão as coisas aqui no sítio. É ração pra bicho, conta de luz, conserto de cerca... eu não consigo nem guardar dinheiro, imagina tirar pra ajudar.
Eu senti um nó na garganta, mas me forcei a engolir. Não era culpa dela, eu sabia disso. Ela já fazia muito por mim, mais do que qualquer outra pessoa faria.
— Eu entendo, tia. De verdade. Não quero te colocar em mais problema do que você já tem.
Ela se aproximou, segurou minhas mãos com força e me olhou nos olhos.
— Escuta, Raila. Você é forte. Eu sei que parece o fim, mas você vai dar um jeito. Sempre dá. Essa gente que faz esse tipo de coisa, eles sempre deixam rastro. E você vai encontrar.
Fiquei quieta, tentando absorver aquelas palavras. Elas eram bonitas, mas soavam vazias no meio de tanta desesperança. Como eu iria encontrar algo sem recurso nenhum? Sem ninguém pra me ajudar?
— Eu não sei, tia... — murmurei, olhando para o chão. — É fácil falar, difícil é fazer.
Ela segurou meu queixo e me fez encará-la. Seus olhos estavam firmes, determinados, como se ela quisesse me transferir toda a força que tinha.
— Você não está sozinha. Pode não ser com dinheiro, mas estou aqui pra te apoiar no que for. E você vai sair dessa, Raila. Vai.
Eu queria acreditar nela. Queria mesmo. Mas tudo parecia um labirinto escuro e sem saída. Ela voltou a mexer na louça, como se aquele momento tivesse acabado para ela, mas eu sabia que estava longe de acabar pra mim. Peguei o documento da bancada e voltei para o quarto. Precisava pensar, precisava encontrar uma solução.
Na cama, os olhos grudaram de novo naquela assinatura. Como Miguel teve coragem de destruir a minha vida assim, sem remorso nenhum? Cada curva daquela falsificação me fazia sentir raiva, dor, impotência. Mas, ao mesmo tempo, algo dentro de mim começou a mudar. Era como uma faísca, pequena, mas suficiente para acender uma chama.
Se eu não tivesse dinheiro para advogado ou investigador, então teria que ser as duas coisas ao mesmo tempo.
Deitada na cama, fiquei encarando o teto, com a mente a mil. As palavras da minha tia ainda ressoavam, tentando me convencer de que eu era forte o suficiente para resolver tudo. No fundo, eu sabia que precisava de ajuda, e só havia mais uma pessoa a quem recorrer: minha mãe. O coração já apertava só de pensar no que ela poderia dizer, mas peguei o celular mesmo assim. Não tinha escolha.
Disquei o número, esperando com ansiedade enquanto o toque ecoava no viva-voz. Do outro lado, ela atendeu com aquele tom impaciente de sempre.
— O que foi, Raila? — começou, já cortando qualquer tentativa de introdução.
Respirei fundo, tentando manter a calma.
— Preciso de ajuda. Por favor, não continue me virando as costas assim...
Houve uma pausa curta, mas carregada de julgamento.
— O que foi dessa vez? Já tá enrolada de novo?
Engoli em seco, ignorando o nó que começava a se formar na garganta.
— Mãe, analisei o documento que tirou tudo de mim e descobri que a assinatura foi falsificada.
Do outro lado da linha, ela soltou um riso sarcástico.
— Você tá brincando comigo, né? O Miguel te pegou de jeito mesmo, afinal de contas, você estava cega de amor por ele.
Minha respiração ficou presa por um instante. Era como se ela já soubesse, como se estivesse esperando por esse momento para me culpar.
— Eu sei que não enxerguei quem ele era verdadeiramente. — admiti, minha voz quase sumindo.
O que veio a seguir foi como um tapa no rosto.
— Burra! É isso que você é, Raila! Sempre te falei que aquele homem não prestava, mas você achava que sabia de tudo. Foi lá, se enfiou nessa história com ele, e agora tá aí, chorando. O que você quer que eu faça? Passe a mão na sua cabeça?
Minha garganta fechou, mas me forcei a falar.
— Mãe, eu tô precisando de ajuda, não de sermão! Não tenho dinheiro para advogado, pra nada... Achei que você pudesse...
Ela me interrompeu, a voz cada vez mais dura.
— Pensa bem, garota. Você se meteu nisso sozinha, agora se vira sozinha. Sempre te avisei sobre confiar em gente como o Miguel, mas você nunca ouviu. Agora tá aí, pagando o preço. Quer que eu me mate de trabalhar pra resolver seus problemas também? Esquece!
As lágrimas começaram a rolar pelo meu rosto, mas tentei disfarçar, mesmo que ela não pudesse me ver.
— Eu só precisava de um pouco de apoio, mãe... só isso.
— Apoio? — ela riu de novo, amarga. — Meu apoio você perdeu quando começou a tomar decisões idiotas sem pensar nas consequências. Agora é com você, Raila. Aprende a se virar.
A ligação foi encerrada antes que eu pudesse responder. Fiquei olhando para o celular na minha mão, sentindo um vazio esmagador no peito. Minha mãe tinha feito exatamente o que eu temia: jogado tudo na minha cara, como se eu fosse uma completa inútil.
Deixei o celular cair na cama e cobri o rosto com as mãos. Meu corpo tremia, mas não era só de tristeza. A raiva começou a crescer, misturada com a frustração. Ninguém acreditava em mim. Ninguém parecia se importar.
"Se vira", ela disse. Essas palavras ecoavam na minha mente como um mantra cruel. Talvez fosse isso que eu tivesse que fazer, afinal. Me virar sozinha. Mas por onde começar?
Os pneus da camionete da minha tia rangeram contra o cascalho da estradinha principal. Aquele motor roncava alto, como se quisesse anunciar minha chegada. Eu não estava exatamente planejando virar o centro das atenções, mas, ao atravessar a entrada da pequena cidade, percebi que estava prestes a acontecer exatamente isso.— Ah, lá vem confusão. — murmurei para mim mesma, segurando firme o volante.O lugar parecia saído de um filme antigo. Casas simples com fachadas coloridas, janelas decoradas com cortinas de crochê. Crianças correndo pela calçada, senhores sentados em cadeiras de balanço nas varandas. Todos pararam o que estavam fazendo assim que a camionete passou. A curiosidade deles me acertava como flechas.— Quem será essa? — ouvi uma senhora comentar, enquanto apontava na minha direção. Ao lado dela, um senhor ajeitava os óculos, como se quisesse me decifrar.Minha vontade era encolher no banco e desaparecer. Aquilo não era bem o que eu tinha em mente quando decidi dar uma volt
Acordei com o mugido da vaca soando mais alto e agudo do que o habitual. Ainda meio zonza de sono, me vesti rápido e corri para o curral. A cena me deixou aflita: Branquinha, uma das vacas da tia, estava deitada no chão, respirando com dificuldade. Tia Marta já estava lá, ajoelhada ao lado dela, com o rosto marcado pela preocupação.— Raila, ela piorou desde ontem. — disse tia Marta, a voz embargada. — Nem comeu o pouco que coloquei para ela.— A gente precisa fazer alguma coisa, tia. — respondi, tentando conter o nervosismo. — Tem certeza que ela não teve nenhuma melhora?— Nenhuma, menina. Estou achando que nós não vamos dar conta sozinhas.Olhei para Branquinha, tentando pensar em algo que pudesse ajudar. Peguei um balde de água fresca e tentei oferecer, mas ela sequer abriu os olhos. O sentimento de impotência começava a me consumir.— Talvez ela esteja desidratada, tia. Vamos tentar levantar? — sugeri, embora, no fundo, eu soubesse que não seria tão simples.Tia Marta assentiu, e
Marcio MelloCheguei ao sítio já no fim da tarde, depois de horas tentando resolver a confusão com meu carro. A estrada de terra parecia um teste de resistência, mas enfim estava ali, diante do casarão simples e cercado por um ar tão puro que me fez esquecer do cansaço por um instante. No entanto, a sensação de tranquilidade foi logo interrompida. Uma jovem que nunca vi antes ali aguardava na varanda, os braços cruzados e o olhar afiado como lâmina.— Finalmente resolveu aparecer? — disse ela, a voz carregada de ironia.Parei por um instante, ajeitando o chapéu enquanto tentava recuperar o fôlego. Não queria começar mal, mas o jeito ríspido dela me pegou de surpresa.— Tive uns contratempos na estrada. Meu carro quebrou. — expliquei, tentando soar mais calmo do que me sentia. — Vim o mais rápido que pude.Ela bufou, balançando a cabeça como se minha justificativa fosse uma desculpa esfarrapada.— A vaca tá mal desde ontem. Não sei se dá pra salvar. Mas claro, você tinha mais o que faz
Raila SalimQuando abri os olhos, o cheiro de café fresco e pão assado já dominava o ar. Minha tia Marta não dava trégua, sempre madrugando para preparar o desjejum mais farto. Antes mesmo de me levantar, ouvi sua voz firme e inconfundível atravessando a casa:— Raila! Levanta logo, menina. O café tá na mesa!Soltei um suspiro. Era sempre assim, ela mais animada do que o necessário para aquela hora. Espreguicei-me e fui até a cozinha. Lá estava ela, com o avental manchado de farinha e os cabelos presos em um coque que parecia estar à prova de tempestades. A mesa estava posta com frutas, pães, manteiga e um bolo de fubá. Ela se virou e me encarou com aquele olhar típico dela, uma mistura de carinho e determinação.— Senta logo. Comida esfriando não tem graça.Me sentei sem reclamar, afinal, Marta tinha um talento especial para fazer com que até as coisas simples parecessem um banquete. Peguei um pedaço de pão, passei manteiga e mordi enquanto ela me observava com uma expressão que eu c
A vaca ainda estava deitada no canto do curral, o olhar dela refletindo o cansaço de quem travava uma batalha silenciosa contra a dor. Eu tinha acabado de jogar um pouco de feno ao lado dela, tentando incentivá-la a comer, quando ouvi os passos de Márcio se aproximando. O som das botas dele no chão de terra ecoava no meu peito como um tambor. Eu sabia que ele viria, sempre vinha, mas isso não tornava a situação mais fácil.— Como ela está? — perguntou ele, com aquela voz firme, mas tingida de preocupação.Não levantei o rosto. Continuei ajoelhada ao lado da vaca, passando a mão pelo pelo dela, como se pudesse acalmá-la ou transferir um pouco da minha força para ela. Respondi sem olhar para ele:— Igual. Não melhorou muito desde ontem.Eu podia sentir o peso do olhar dele sobre mim, mas me recusei a retribuí-lo. Havia algo na maneira como ele me encarava, sempre tentando quebrar essa barreira invisível que eu erguera entre nós. Não era só sobre a vaca. Não podia ser.— Precisamos ajust
Marcio MelloA noite estava fria, e o vento zunia pelas frestas da janela da sala. Eu tinha acabado de me jogar no sofá, ainda com a camisa polo amarrotada do trabalho. O cheiro de desinfetante e pelos de cachorro parecia ter impregnado em mim. Meu corpo estava exausto, mas minha mente ainda repassava a cirurgia difícil que eu fizera mais cedo. A anestesia demorou mais do que o esperado para fazer efeito, e a situação do animal era delicada. Só queria um pouco de silêncio.— Você não vai sair hoje? — perguntou meu irmão mais velho, encostado na porta da sala com aquela postura relaxada que sempre me irritou. Ele era o oposto de mim. Enquanto eu me matava no trabalho, ele parecia sempre encontrar tempo para viver a vida, como ele mesmo dizia.Levantei os olhos, tentando disfarçar o incômodo. — Não. Tô cansado.Ele deu uma risadinha curta e balançou a cabeça, como se já esperasse essa resposta. Veio caminhando até o meio da sala, parando na frente da TV desligada.— Você tá sempre cans
Raila SalimEu estava encostada na cerca, observando o movimento ao redor do sítio. O som dos pássaros e o vento suave não conseguiam aliviar o incômodo que crescia dentro de mim. Marcio estava ali novamente, como sempre que minha tia Marta inventava uma desculpa para chamá-lo. Ele tinha aquele jeito calmo demais que me irritava, como se nada no mundo pudesse aborrecê-lo.— Pode me ajudar com isso aqui? — ele perguntou, apontando para algo que segurava nas mãos.Eu peguei sem sequer olhar diretamente para ele. — Você consegue fazer sozinho, não?— Claro que consigo, mas ajuda nunca é demais.Revirei os olhos, preferindo não responder. Marcio continuou com seu trabalho, concentrado, enquanto tia Marta surgiu na varanda com aquele olhar de quem estava planejando alguma coisa.— Vocês dois fazem uma ótima equipe. Deviam conversar mais, sabe? Raila, você precisa se abrir mais para as pessoas.— Já falei que não preciso de amigos, tia. Principalmente de um como ele.Marcio levantou os olh
Marcio MelloA sala do consultório estava com o ar parado, carregado de uma mistura de desinfetante e o cheiro agridoce de animais. Na mesa de atendimento, um porco se debatia levemente, talvez desconfiado do que estava por vir. O dono, um homem de feições cansadas e um boné surrado, tagarelava sem parar. Eu, entretanto, mal conseguia acompanhar suas palavras. Minha mente estava em outro lugar.Raila. Ela era como uma sombra persistente, ocupando cada canto da minha cabeça. Hostil, cortante e, ao mesmo tempo, magnética. Eu já tinha aceitado o fato de que pensar nela era inevitável, mesmo que isso me deixasse com a sensação de estar perdendo o controle.— Doutor, o senhor acha que é grave? — a voz do homem me puxou de volta.— Pode ser só uma infecção no casco. Vou precisar examinar melhor.Peguei minhas ferramentas e me aproximei do porco, tentando focar no trabalho. Contudo, as imagens dela insistiam em invadir. Lembrei-me da última vez que nos cruzamos ao acaso. Foi no mercado, e el