Raila Salim
A vida me deu uma rasteira exatamente no momento em que passei a confiar cegamente no meu noivo. Num dia, estávamos comemorando meu aniversário juntos; no outro, eu estava sendo despejada da minha própria casa e, de brinde, tinha perdido também a empresa que meus avós lutaram tanto para construir.
Como tudo isso aconteceu? Nem eu mesma sei. Provavelmente foi em uma daquelas noites de bebedeira, porque não me lembro de ter assinado nada. No entanto, lá estava o documento oficial, com minha assinatura, transferindo tudo para Miguel, o homem que deveria me amar e cuidar de mim. Agora ele era dono de tudo e ainda me colocou para fora de casa.
— Desgraçado! Por que você fez isso comigo? — questionei, batendo em seu peito enquanto sentia o coração se despedaçar.
— Você é burra, Raila. Sempre foi! Quero que saia da minha casa. Não temos mais nada um com o outro. Nunca pensei em me casar com você!
As palavras saíram como punhaladas certeiras, frias e cortantes. Como eu explicaria aos meus avós que havia perdido a empresa que eles confiaram em mim? Fui tomada por um vazio cruel e me tornei alvo de chacotas dos vizinhos, que sussurravam pelas esquinas.
Horas depois, lá estava eu na porta da casa dos meus pais, buscando abrigo. Porém, a recepção foi pior do que eu temia.
— Você não é mais minha filha! Não acredito que deixou aquele homem colocar as mãos em tudo. Te avisamos tanto sobre a ambição dele, mas você nunca nos escutou! — disse meu pai, sua voz carregada de decepção.
— O que vou fazer? Não tenho para onde ir! — implorei, sentindo o desespero tomar conta de mim.
— Desculpe, minha filha, mas seu pai tem razão. Você não pode ficar conosco. — minha mãe encerrou o assunto com um olhar triste, mas firme.
Sem alternativas, fui pedir ajuda à minha tia, irmã da minha mãe. Apesar de as duas não se darem bem, minha tia sempre me tratou com respeito. Ela me acolheu sem hesitar, e isso foi como um fio de esperança em meio ao caos.
Peguei um ônibus pela primeira vez na vida e fui rumo ao interior. Estava tão anestesiada que não sabia se chorava ou se me jogava da próxima ponte. Quando cheguei à casa da minha tia, minha recepção foi... peculiar. Logo na entrada, meu salto alto atolou na bosta de galinha.
— Ótimo. Agora só falta um desses bois me confundir com uma vaca e querer montar em mim. — Resmunguei, segurando as lágrimas que teimavam em cair.
Segui em direção à porta, e minha tia logo apareceu, braços abertos. Ela me abraçou apertado, e naquele instante, desabei.
— Querida, você não é a primeira, nem será a última mulher enganada por um homem. — disse ela, enquanto afagava meus cabelos.
— Eu sei, tia... eu sei.
Acomodada em um dos quartos da casa, senti um vazio esmagador. Não fazia ideia do que seria de mim dali em diante. No dia seguinte, fui acordada pelo canto estridente de um galo. Antes que pudesse fechar os olhos novamente, minha tia bateu na porta.
— Raila, o café está pronto. Quero te mostrar a beleza do sítio. Você nunca veio me visitar antes!
Enquanto ela estava animada logo cedo, eu só queria desaparecer.
— Vou dormir mais um pouco. — respondi, enterrando o rosto no travesseiro.
— Dormir? Você vai perder uma manhã linda, menina!
— Nada é mais bonito pra mim... — murmurei, dramática.
Minha tia, rindo da minha teimosia, saiu do quarto. Fiquei ali, alimentando pensamentos amargos sobre o relacionamento perfeito que acreditei ter. As lembranças me sufocavam, e imaginar a reação dos meus avós ao saberem da empresa me fazia querer me enterrar ainda mais.
Eles deviam me odiar, certo? Eu, no lugar deles, me odiaria. Após mais meia hora de tortura mental, levantei e fui até o banheiro. Ri da minha própria cara desgraçada no espelho, inchada de tanto chorar. Lavei o rosto, respirei fundo e, finalmente, saí do quarto.
Era hora de encarar minha nova realidade, por mais cruel que fosse.
Quando saí do quarto, o cheiro de café fresco invadiu minhas narinas. O aroma era quase um convite para esquecer meus problemas, pelo menos por alguns minutos. Minha tia estava na cozinha, cantarolando uma música antiga enquanto mexia um tacho de doce. Era estranho ver alguém tão tranquila quando o meu mundo estava desmoronando.
— Finalmente decidiu aparecer! — brincou ela, com um sorriso largo. — Senta aí. Fiz pão de queijo pra você.
Me sentei meio desajeitada, ainda com a cabeça pesada e o coração apertado. Peguei um pão de queijo, mas minha fome era mais emocional do que física. Minha tia se sentou na minha frente, olhando-me com aquele misto de preocupação e determinação.
— Raila, sei que tá difícil agora, mas o mundo não acabou. — sua voz era firme, mas doce. — Aqui você vai recomeçar. Vou te ensinar que a vida no campo tem suas vantagens. Talvez, quem sabe, encontre algo que realmente te faça feliz.
Suspirei. Não sabia se aquilo era possível. Estava presa num buraco emocional tão profundo que qualquer luz parecia distante.
— Tia, eu perdi tudo... Tudo! Nem sei por onde começar.
— Começa por aqui. — Ela apontou para fora da janela, onde o sol brilhava sobre o pasto verdejante. — A terra é boa, a vida é simples. Dá trabalho, mas também dá paz. Vai me ajudar hoje a cuidar das galinhas. Prometo que isso tira qualquer tristeza.
— Cuidar de galinhas? Tá brincando, né? — respondi, descrente.
— Vai por mim, menina. Melhor terapia que você vai ter na vida. — ela riu, levantando-se e puxando uma cesta de ovos.
Sem alternativa e sem ânimo para argumentar, segui minha tia para o quintal. O calor do sol na pele e o cheiro da terra fresca começaram, aos poucos, a trazer uma sensação estranha... quase reconfortante. O terreno era extenso, cheio de árvores, galinhas espalhadas e alguns porcos que me observavam como se eu fosse um espetáculo.
— Primeiro, você pega os ovos. — ela me mostrou como fazer, enquanto as galinhas ciscavam ao redor. — Não precisa ter medo, só chega devagar.
Me aproximei de um ninho e estendi a mão, mas a galinha me encarou com um olhar mortal. Parecia mais feroz que Miguel no dia anterior em que me expulsou de casa. Hesitei.
— Isso, menina! Não é a galinha que manda em você. Vai logo! — incentivou minha tia, rindo.
Respirei fundo e peguei o ovo, mas, no processo, a galinha deu uma bicada na minha mão. Gritei, largando o ovo no chão.
— Essa aí tem personalidade, hein? — brincou minha tia, gargalhando.
Fiz uma careta, mas acabei rindo junto. Era a primeira vez que eu ria desde que tudo aconteceu. Não sabia se era pelo absurdo da situação ou pelo fato de estar viva, de alguma forma.
Depois de um tempo, já estava mais confiante e até comecei a conversar com as galinhas, como se fossem amigas que não me julgavam. Aquele pequeno momento me fez perceber algo: talvez, no meio do caos, ainda houvesse espaço para recomeçar.
Quando terminamos, minha tia colocou a mão no meu ombro.
— Tá vendo? Sobreviveu. Se consegue lidar com uma galinha-brava, consegue com qualquer coisa. Amanhã, te ensino a plantar alface.
Revirei os olhos, mas dessa vez sem tanto peso no coração.
— Plantar alface? Tia, você tá tentando me transformar em fazendeira, é isso?
— Quem sabe? — respondeu ela, com um sorriso maroto. — Às vezes, a gente só precisa de uma mudança pra descobrir o que realmente importa.
E assim, no meio de galinhas e ovos quebrados, comecei a entender que talvez o interior não fosse o fim do mundo..., talvez fosse um começo.
O ar do campo era diferente. Não tinha aquele cheiro misturado de asfalto quente e café fresco que eu conhecia tão bem na cidade. Aqui, era terra úmida, grama recém-cortada e um toque amargo de folhas secas. Cada respiração parecia pesar no meu peito, mas eu sabia que não era por causa do ar. Era a dor. Aquele tipo de dor que não dá trégua, que corrói devagar, como uma corrente de água fria que nunca para de passar.Minha tia, Marta, me observava da varanda do sítio. Ela tinha aquele olhar compreensivo, mas não dizia muito. Nunca foi de forçar conversas, e eu agradecia por isso. Estava cansada de palavras, de conselhos, de gente dizendo que tudo ia ficar bem. Não ia. Não naquele momento.— Você comeu alguma coisa hoje, Raila? — ela perguntou, sem me olhar diretamente.Balancei a cabeça, negando. Meu estômago parecia um nó há semanas. Não importava o que eu tentasse engolir, nada ficava.— Precisa se cuidar, menina. A vida não para só porque a gente quer. — a voz dela era firme, mas ti
O papel na minha mão parecia mais pesado que o mundo inteiro. Meus olhos percorriam cada linha daquele documento como se estivessem presos, como se não conseguissem desviar. Era um contrato... um maldito contrato que levou embora o que eu tinha de mais valioso. Perdi tudo. Algo chamou minha atenção dessa vez. Meus dedos tremiam enquanto eu olhava a assinatura. Era parecida demais com a minha, mas não era minha. O coração disparou como se tentasse fugir do peito. Não conseguia acreditar.Larguei o papel sobre a mesa e corri para a cozinha, onde minha tia lavava louça, alheia ao meu desespero. Entrei apressada, quase tropeçando em mim mesma.— Tia, olha isso! — estendi o documento para ela, que enxugou as mãos no avental e pegou o papel, franzindo a testa. — Olha essa assinatura. Parece a minha, não parece?Ela olhou com atenção, ajustando os óculos que sempre escorregavam pelo nariz.— Parece, Raila... mas você tem certeza de que não assinou isso? Às vezes, na correria, a gente faz coi
Os pneus da camionete da minha tia rangeram contra o cascalho da estradinha principal. Aquele motor roncava alto, como se quisesse anunciar minha chegada. Eu não estava exatamente planejando virar o centro das atenções, mas, ao atravessar a entrada da pequena cidade, percebi que estava prestes a acontecer exatamente isso.— Ah, lá vem confusão. — murmurei para mim mesma, segurando firme o volante.O lugar parecia saído de um filme antigo. Casas simples com fachadas coloridas, janelas decoradas com cortinas de crochê. Crianças correndo pela calçada, senhores sentados em cadeiras de balanço nas varandas. Todos pararam o que estavam fazendo assim que a camionete passou. A curiosidade deles me acertava como flechas.— Quem será essa? — ouvi uma senhora comentar, enquanto apontava na minha direção. Ao lado dela, um senhor ajeitava os óculos, como se quisesse me decifrar.Minha vontade era encolher no banco e desaparecer. Aquilo não era bem o que eu tinha em mente quando decidi dar uma volt
Acordei com o mugido da vaca soando mais alto e agudo do que o habitual. Ainda meio zonza de sono, me vesti rápido e corri para o curral. A cena me deixou aflita: Branquinha, uma das vacas da tia, estava deitada no chão, respirando com dificuldade. Tia Marta já estava lá, ajoelhada ao lado dela, com o rosto marcado pela preocupação.— Raila, ela piorou desde ontem. — disse tia Marta, a voz embargada. — Nem comeu o pouco que coloquei para ela.— A gente precisa fazer alguma coisa, tia. — respondi, tentando conter o nervosismo. — Tem certeza que ela não teve nenhuma melhora?— Nenhuma, menina. Estou achando que nós não vamos dar conta sozinhas.Olhei para Branquinha, tentando pensar em algo que pudesse ajudar. Peguei um balde de água fresca e tentei oferecer, mas ela sequer abriu os olhos. O sentimento de impotência começava a me consumir.— Talvez ela esteja desidratada, tia. Vamos tentar levantar? — sugeri, embora, no fundo, eu soubesse que não seria tão simples.Tia Marta assentiu, e
Marcio MelloCheguei ao sítio já no fim da tarde, depois de horas tentando resolver a confusão com meu carro. A estrada de terra parecia um teste de resistência, mas enfim estava ali, diante do casarão simples e cercado por um ar tão puro que me fez esquecer do cansaço por um instante. No entanto, a sensação de tranquilidade foi logo interrompida. Uma jovem que nunca vi antes ali aguardava na varanda, os braços cruzados e o olhar afiado como lâmina.— Finalmente resolveu aparecer? — disse ela, a voz carregada de ironia.Parei por um instante, ajeitando o chapéu enquanto tentava recuperar o fôlego. Não queria começar mal, mas o jeito ríspido dela me pegou de surpresa.— Tive uns contratempos na estrada. Meu carro quebrou. — expliquei, tentando soar mais calmo do que me sentia. — Vim o mais rápido que pude.Ela bufou, balançando a cabeça como se minha justificativa fosse uma desculpa esfarrapada.— A vaca tá mal desde ontem. Não sei se dá pra salvar. Mas claro, você tinha mais o que faz
Raila SalimQuando abri os olhos, o cheiro de café fresco e pão assado já dominava o ar. Minha tia Marta não dava trégua, sempre madrugando para preparar o desjejum mais farto. Antes mesmo de me levantar, ouvi sua voz firme e inconfundível atravessando a casa:— Raila! Levanta logo, menina. O café tá na mesa!Soltei um suspiro. Era sempre assim, ela mais animada do que o necessário para aquela hora. Espreguicei-me e fui até a cozinha. Lá estava ela, com o avental manchado de farinha e os cabelos presos em um coque que parecia estar à prova de tempestades. A mesa estava posta com frutas, pães, manteiga e um bolo de fubá. Ela se virou e me encarou com aquele olhar típico dela, uma mistura de carinho e determinação.— Senta logo. Comida esfriando não tem graça.Me sentei sem reclamar, afinal, Marta tinha um talento especial para fazer com que até as coisas simples parecessem um banquete. Peguei um pedaço de pão, passei manteiga e mordi enquanto ela me observava com uma expressão que eu c
A vaca ainda estava deitada no canto do curral, o olhar dela refletindo o cansaço de quem travava uma batalha silenciosa contra a dor. Eu tinha acabado de jogar um pouco de feno ao lado dela, tentando incentivá-la a comer, quando ouvi os passos de Márcio se aproximando. O som das botas dele no chão de terra ecoava no meu peito como um tambor. Eu sabia que ele viria, sempre vinha, mas isso não tornava a situação mais fácil.— Como ela está? — perguntou ele, com aquela voz firme, mas tingida de preocupação.Não levantei o rosto. Continuei ajoelhada ao lado da vaca, passando a mão pelo pelo dela, como se pudesse acalmá-la ou transferir um pouco da minha força para ela. Respondi sem olhar para ele:— Igual. Não melhorou muito desde ontem.Eu podia sentir o peso do olhar dele sobre mim, mas me recusei a retribuí-lo. Havia algo na maneira como ele me encarava, sempre tentando quebrar essa barreira invisível que eu erguera entre nós. Não era só sobre a vaca. Não podia ser.— Precisamos ajust
Marcio MelloA noite estava fria, e o vento zunia pelas frestas da janela da sala. Eu tinha acabado de me jogar no sofá, ainda com a camisa polo amarrotada do trabalho. O cheiro de desinfetante e pelos de cachorro parecia ter impregnado em mim. Meu corpo estava exausto, mas minha mente ainda repassava a cirurgia difícil que eu fizera mais cedo. A anestesia demorou mais do que o esperado para fazer efeito, e a situação do animal era delicada. Só queria um pouco de silêncio.— Você não vai sair hoje? — perguntou meu irmão mais velho, encostado na porta da sala com aquela postura relaxada que sempre me irritou. Ele era o oposto de mim. Enquanto eu me matava no trabalho, ele parecia sempre encontrar tempo para viver a vida, como ele mesmo dizia.Levantei os olhos, tentando disfarçar o incômodo. — Não. Tô cansado.Ele deu uma risadinha curta e balançou a cabeça, como se já esperasse essa resposta. Veio caminhando até o meio da sala, parando na frente da TV desligada.— Você tá sempre cans