Cicatriz

Rio de Janeiro, Brasil. Agora. 

Meu corpo ainda estava imóvel, mas minha mente começava a se encher de um barulho irritante. Eu gritava para que parasse, mas a cada minuto a música se tornava mais alta e mais irritante até que de fato meu corpo começou a despertar. Meus olhos ainda estavam fechados enquanto eu tateei pela cabeceira procurando o causador do barulho e finalmente o localizei tocando para desligar o alarme. Eu costumava amar essa música, Light On dos Backstreet Boys. Entretanto, depois de 5 anos com ela como despertador, eu queria me matar toda vez que tocava, pois eu sabia que precisava levantar.

Olhei para o relógio desejando adicionar mais 10 minutos, porém eu sabia que não poderia mais enrolar. Decidida, levantei depressa antes que meu sono ganhasse e caminhei até o banheiro. A porta estava fechada e ao lado de fora pude ouvir o som da água do chuveiro caindo. Lia provavelmente estava tomando banho, o que significava que eu, com toda certeza, chegaria atrasada no trabalho.

— Lia, você está acabando? Eu preciso me arrumar.

— Estou sim, Belle, só um minutinho.

Nunca era só um minutinho, por isso estávamos sempre atrasadas.

Lia é minha melhor amiga. Nós nos conhecemos quando eu tinha 10 anos e desde então nunca fiquei mais de uma semana sem falar com ela. Ela é a pessoa que mais me conhece nesse mundo e a pessoa que eu mais conheço também, e embora eu quisesse matá-la às vezes, eu não sobreviveria um mês sem essa garota. Obviamente ela nunca me ouvirá dizer disso.

Nós decidimos sair da casa dos nossos pais há um ano, quando finalmente nos formamos, na esperança de nos sentirmos mais responsáveis. Nós não nos sentimos mais responsáveis. Contudo, tudo ficou muito mais divertido desde então. 

Caminhei até a cozinha, peguei umas fatias de pão e coloquei na torradeira, enquanto despejava um pouco de suco de laranja em um copo para mim. Assim que os pães ficaram prontos, Lia surgiu na cozinha indo direto pegar uma fatia.

— Nossa, que fome! – Disse Lia com a boca cheia. – Então, o que você vai fazer hoje?

— O mesmo de sempre. Aturar aquela mulher chata falando mal das minhas fotos, tentar ser uma boa pessoa e não poder xingá-la. - Respondi de mal humor. Desde que começa a trabalhar com Sabrina, pensar em ir ao trabalho me irritava. 

— Não estou dizendo de agora. O que você vai fazer hoje à noite?

— Não sei. Assistir um filme? Dormir?

— Ah não, para de ser chata. Você tem 23 anos, tem que aproveitar antes que fique mais velha e precise desperdiçar seu tempo limpando fraldas de criança.

— Deus me livre trocar fralda de criança. Ainda bem que de mim isso não vai acontecer. 

— E quando eu tiver filhos? – Perguntou Lia animada.

— Vai ficar cagado.

— Como assim? Não vai tomar conta dos seus futuros afilhados direito não?

— Claro que vou... – Sorri – até ele cagar, aí eu devolvo para você.

— Vou escolher outra pessoa pra ser a madrinha. – Provocou Lia.

—Mas e aí quem vai ensiná-lo a xingar os mais velhos mau educados?

— Você nem ousa, hein.– Respondeu Lia enquanto eu sorria mais bem humorada agora. – Merda, olha a hora, preciso ir. É por isso que sempre chegamos atrasadoa. Você fala demais!

— Você fala demais, bebê.

Segui direto para o banheiro, tirando as roupas pelo caminho, e me taquei no chuveiro de imediato. A água estava queimando, eu tinha me esquecido de mudar para o frio antes de entrar. Lia gosta da água queimando sua pele enquanto eu acho que ele é doida, mas como sempre estava atrasada, nunca lembrava desse detalhe.

Continuei tomando banho quente mesmo porque fiquei com medo de trocar a temperatura e me dar um choque térmico ou algo tipo. Sentir aquela água na minha pele incomodava, mas tentei relaxar enquanto ensaboava meu corpo. Eu estava me saindo bem, até que algo perto do meu peito chamou minha atenção.

Sai do banho, fui em direção ao espelho visualizar melhor o que era aquilo em minha pele. Parecia uma cicatriz um pouco abaixo do meu seio esquerdo, mas eu não me recordo de ter me machucado. Era uma cicatriz pequena que parecia ser de um machucado de dias, embora ontem ela não estivesse ali. Perdi-me naquele instante enquanto observa a marca em meu corpo. Ela parecia tão pequena e inofensiva e ao mesmo tempo instigava de forma atrativa minha curiosidade.

O som do meu alarme de "você precisa sair agora" me despertou dos meus pensamentos e rapidamente peguei minhas roupas saindo em direção ao meu quarto. Acabei de me arrumar e saí correndo para o ponto de ônibus, mas ao mesmo tempo não conseguia parar de pensar na marca que havia encontrado em meu corpo. Era apenas uma marquinha, eu sei, mas por alguma razão, ao tocá-la, senti algo estranho, como se aquilo fosse muito mais importante do que aparentava.

Estava exausta depois de um dia inteiro de trabalho. Minha chefe era tão irritante! Sempre implica com minhas fotos e não me deixa ter liberdade para tirar foto de nada que eu ache relevante. Eu me sentia presa, frustrada e incapaz de realizar a função que sempre sonhei. Um espírito livre que estava sendo preso, uma pessoa que estava sendo moldada de uma forma que me fizesse fugir da minha própria natureza. Ou talvez fosse só drama, não sei. Mas isso me frustrava. A única coisa que queria, além de que a cabeça dela explodisse, era chegar ao apartamento e relaxar.

Passei pela porta do prédio, dei boa noite ao porteiro e segui em direção ao elevador. Ele estava vazio felizmente. Estava cansada demais para ser simpático e não acho que estou em um dia bom para conversar. Eu costumava ter um humor melhor, mas desde que conheci a Sabrina, a maior parte do tempo queria socar a cara de alguém. Apertei o botão do sétimo andar, encostei minha cabeça na parte de trás do elevador, respirei fundo e fechei os olhos massageando com as mãos a lateral da minha cabeça. Ea estava latejando e eu precisava de um analgésico. Enquanto isso, a porta fechava lentamente e eu começava a subir.

Tudo o que eu queria era tomar um bom banho e dormir. Lia devia estar se arrumando para sair com a Isa, uma garota que ela namora há quase dois anos. Ela é uma pessoa legal. Ela a conheceu na faculdade, durante um trote que os veteranos estavam fazendo com os calouros. Isa era uma dessas calouras e logo Lia se apaixonou por ela, só que ela ficava muito tímida e acabou prolongando esse período inicial, chegava a ser vergonhoso. Depois, quando finalmente ela tomou coragem e chamou a garota para sair, tudo aconteceu muito rápido, e quando percebemos, Isa estava passando os fins de semana no nosso apartamento.

O elevador sacudiu um pouco me distraindo dos meus pensamentos. Ao olhar para cima, percebi que as luzes estavam fracas e piscavam um pouco.

— Ah só me faltava ficar presa aqui. – Desejei irritada.

O elevador sacudiu novamente e eu já estava começando a ficar assustada quando a porta no terceiro andar abriu e uma senhora vestindo casacos de lã, carregando umas sacolas nas mãos, entrou.

— Boa noite! – Cumprimentou-me.

— Boa noite, senhora Lee.

Engoli em seco enquanto as portas se fechavam novamente. A realidade é que a senhora Lee me dava medo, e conquanto eu quisesse companhia caso o elevador parasse, ela não era a melhor opção. Ela era apenas uma senhora, eu sei, não me julgue, mas não é qualquer uma, é a mulher maluca do prédio. Todos comentam sobre ela e tentam evitá-la a maior parte do tempo. Era desconfortável encontrá-la. A forma como se veste sempre com casaco de lã mesmo quando a temperatura está alta, as mesmas sacolas que carrega o tempo todo e o pior, o modo como ela nos observa intensamente sem nem disfarçar, era mais evasivo do que qualquer coisa que eu já sentira. Seus cabelos grisalhos, sempre presos para trás, enaltecia sua pele e seus grandes olhos puxados. Ela deve ter sido uma linda jovem e ainda agora, Lee era uma senhora muito bonita. Não sei quando ela chegou ao Brasil, mas soube que veio com seus pais da Coreia do Sul.

Nós nunca conversamos mais do que mera troca de formalidade. Por essa razão, estar ali sozinha com ela naquele espaço pequeno me incomodava um pouco, ainda mais quando eu podia sentir seus olhos em mim.

5º andar...

6º andar...

Só mais um...

7º andar, finalmente.

Adiantei-me para a porta e já estava no corredor quando senti suas mãos frias tocando a minha pele. Saltei com seu toque repentino e olhei para a mulher. Geralmente seu rosto é sério, mas naquele momento surpreendentemente, ela estava sorrindo. Um sorriso que não combinava com seu rosto sombrio e, desse modo, contribua para que eu achasse aquela cena mais bizarra ainda. Eu sempre achei que se ela sorrisse com mais frequência, se transformaria em uma pessoa aparentemente menos amarga. No entanto, naquele momento, eu me arrependia de ter desejado isso.

— Procure-me mais tarde. Eu posso te ajudar com sua cicatriz.

Ela soltou minhas mãos e a porta do elevador fechou.

Como ela podia saber da cicatriz? Eu não havia contando a ninguém, nem menos a Lia. Ela é maluca, deve estar falando qualquer coisa. Eu precisava respirar fundo por um segundo e me acalmar. Com certeza o pensamento de ficar presa do elevador tinha me deixado assustada e eu estava projetando isso em qualquer absurdo. Mas e se não estiver? O que ela sabe sobre meu corpo que eu não sei? Nada. Ela é só uma pobre senhora maluca.

Uma pobre senhora maluca que, por sinal, acabou de me deixar bem assustada.

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