3

ANA MARIA

A minha rotina matinal era sempre a mesma. Só que agora tínhamos companhia.

Miguel estava acordado, antes mesmo de eu levantar, estava na cozinha passando o café. Quando eu entrei no quarto da Malú, para pegar roupas para colocar na mochila, a cama estava bem arrumada e os cobertores dobrados.

Fui até a cozinha e ele me deu um “bom dia” tímido, me olhou por poucos segundos e foi sentar na mesa. Sempre muito silencioso quando era eu e ele.

— Bom dia, tio. Eu dormi na parte que a girafa se apaixona pela hipopótama. Eles foram felizes para sempre? — Ela foi como um foguete para cima dele.

— Calma, mocinha, acabou de acordar e já está assim? 

— Só quero saber, mamãe.

— Eles são amigos e permaneceram assim.

— Puxa! Então não teve felizes para sempre? 

— Teve porque eles continuaram juntos.

— Ahhh.

Assim que ouvi a buzina, coloquei ela no transporte. 

Em seguida, me troquei e fui para o meu trabalho. Talvez a minha confiança no Miguel tenha aumentado, porque dessa vez eu deixei a chave do portão com ele.

Cheguei no meu trabalho mais do que alegre. O salário pode ser pouco, mas a animação é garantida por causa da equipe maravilhosa que trabalho e dos meus chefes que quase não aparecem.

Pouco depois do meu horário de almoço, Rodrigo apareceu. Ele veio com uma sacola enorme de roupas e eu o abracei. Esse homem é o irmão mais velho que eu não tive e eu me sinto grata pelo carinho que ele tem por mim e por minha filha.

Lá para o final do meu expediente deu um problema no caixa. Eu fiquei mal, porque o salário já não é essas coisas e se descontar algo, me apertaria e muito, ainda mais agora que tem mais uma boca para comer.

Graças a Deus foi apenas uma nota que o Tales emitiu errado para o cliente e não teve falta. O problema é que eu perdi meia hora aqui, tentando achar o erro. Saí correndo da loja e fui para casa. 

O transporte já devia ter passado, mas eu estava com esperança, acreditando que eles estariam lá. 

Dobrei a rua e não vi ninguém no meu portão. 

O desespero queria me pegar, pois já estava escurecendo. Cheguei no portão toda esbaforida, sufocada pela minha própria respiração.

— Miguel! Miguel!!! — Eu batia desesperada. — Miguel!!! Miguel!!

Ele abriu o portão com cara de assustado, meus gritos podem ter causado isso, mas ele não estava mais assustado que eu, por cometer essa falha com minha pequena. Eu entrei feito um furacão. A porta estava destrancada, porém, fechada.

— A Malú. 

— Está lá dentro. Ela chegou com o transporte e ficaram um tempo aí no portão, eu pensei que você fosse chegar, como não chegou, eu abri e ela me viu, a moça falou que precisava deixar outra criança que também atrasou, então ela ficou comigo. A Malú disse que você não gosta que entre em casa da rua sem tomar banho. Eu fiquei aqui fora para ela tomar banho, porque ela disse que sabe se virar.

Eu ouvia ele me contar o que aconteceu. Meu nervosismo foi se acalmando, quando percebi que ele estava me olhando, enquanto me falava o que aconteceu. 

— Obrigada. Aconteceu um problema no trabalho e eu me atrasei. E obrigada por respeitar minha filha.

Apenas deu um aceno com a cabeça e voltou a sentar no degrau que tem antes da área de serviço. 

E eu fui procurar minha pequena.

— Meu amor. 

— Estou aqui, mamãe. 

Ela estava tentando prender o cabelo, já toda vestida e banhada. 

Puxei ela e dei um abraço. 

— Está tudo bem, meu amor?

— Tudo, o tio que me pegou hoje. Ele está lá fora, esperando eu tomar banho. 

— Certo, mamãe vai tomar banho e já volto, ok?

— Tá, vou lá esperar, com o tio. — Ela saiu correndo e foi aí, que eu lembrei das sacolas.

— Miguel, entra... preciso te mostrar umas coisas.

Ele entrou e sentou no sofá. Na minha sala era só uma pequena estante e o sofá. Não tenho televisão e agradeço. Fui criada sem e crio a minha filha da mesma maneira, a curiosidade dela vem de livros e de genes, porque eu lembro que era dessa mesma maneira. 

— Essas roupas eu consegui para você. Tem esses calçados também. 

— Já disse que não precisa se incomodar, Ana. 

— E eu já disse que não é incomodo. Depois que tomar banho, pode colocar uma roupa limpa. Se quiser, pode ir agora e eu adianto a janta.

— Eu já fiz. Pensei que você fosse chegar cansada e quis ajudar.

— Você fez? Você sabe cozinhar?

— Acho que sim, espero que goste. 

— Você faz bolo, tio? De chocolate? 

— Você sabe que doces, só no final de semana, mocinha. 

— Não custa tentar, né. 

— Vai pegar seus brinquedos, o tio vai banhar, depois ele brinca com você. 

— Obrigado. — Miguel me agradeceu.

Ele pegou a sacola da minha mão e me deu um abraço. A sua reação foi tão inesperada para mim, que eu levei um tempo para assimilar, mas retribui com o máximo que eu podia.

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Depois de todos de banho tomado, nos sentamos para apreciar o frango à parmegiana com um arroz branquinho e soltinho, nem o meu é desse jeito.

Uau! Seja lá o que ele fosse no passado, ele arrasava na cozinha. 

Não contive elogios e ele sorria em agradecimento.

Um sorriso lindo. Não deveria criar sentimentos por ele, afinal, estava perdido e poderia ser casado, já ter uma família. 

Eu me peguei o encarando por minutos, enquanto Malú nos contava sobre seu dia na escola e das coisas que aprendeu. 

Ele percebeu e me encarou também. Sorriu. 

Eu sorri. Um sorriso que eu não dava há muito tempo.

Até ouvir alguém bater no portão.

— Tio, Digo. — Ela pulou em seus braços assim que o viu passar na porta. 

Eu me espantei quando abri o portão e vi Rodrigo e Kátia aqui na minha casa. Não que eles não viessem, mas dia de semana era muito difícil deles aparecerem. A não ser que algo muito urgente acontecesse.

— Preciso falar porque estamos aqui? — Minha amiga me perguntou assim que dei passagem para os dois entrarem.

Não, não precisa. Rodrigo me pareceu muito calmo hoje quando me entregou a sacola, sem nenhum sermão ou coisa parecida. 

Ele deu uma encarada para ela, que nem ligou. 

Amo esses dois. 

Estavam com duas caixas de pizza. 

A minha princesa bolotinha vai amar. 

— Só tio Digo? Eu não sou mais a queridinha da Princesa Maria Luiza Primeiro? 

— Você é... tia Katy, a mais linda.

Entende por que eu amo esses dois?

A um ditado que diz: “quem trata bem meus filhos minha boca adoça”. 

É sobre esses dois. Confio de olhos fechados para cuidar do meu tesouro.

Rodrigo entrou e logo de cara viu Miguel, que ainda permanecia sentado, mas agora de cabeça abaixada. 

— Miguel, venha conhecer meus amigos.

— Se quiser, eu espero lá fora.

— Não! Que absurdo é esse. Venha. 

Ele levantou tímido e olhou pro Rodrigo. 

— Miguel! — falou apertando sua mão. 

— Rodrigo!

— Eu sou Kátia, é um prazer te conhecer. 

Ela, como sempre mais entusiasmada, foi abraçar ele, mesmo com Malú no colo. Essa também não perdeu tempo e o abraçou.

— Seja bem-vindo, Miguel. Pro que precisar... conte comigo. — Rodrigo fez um som com a garganta. — E com o meu namorido também. Ele só tem cara de bravo.

— Eu sou calmo, é só não mexer com quem eu amo. — Ele falou bem sério, encarando o Miguel. 

Não preciso dizer que o clima ficou um tanto quanto pesado.

— Vocês trouxeram pizza, mas estávamos jantando. Miguel cozinhou hoje. Querem se sentar? 

Rodrigo, ainda muito sério, puxou uma cadeira e colocou Malu em seu colo. 

— Uau, você manda muito na cozinha. Já trabalhou com isso? — Ela elogiou a comida que estava realmente divina.

— Não sei.

— Como assim, não sabe?

— Eu, bem... eu sofri uma perda de memória. Não sei de onde vim, não sei quem sou e não sei o que fui. Só sei que me chamo Miguel. 

— Mas você não tentou ir à polícia, um hospital, sei lá, pode ter alguém te procurando, sua família, sua esposa?

Quando ela perguntou isso, ele olhou para mim e pareceu meio desconfortável. 

— Bom, eu fui a um hospital e depois de me prestarem atendimento, me mandaram para a rua de novo. Eu cruzei com uns policiais e pedi ajuda, disse que estava sem memória e eles me escorraçaram, dizendo que a minha falta de memória era por causa das drogas que eu usei.

— Canalhas, sistema de merda, este país. Está aí... algo que precisa ser reformulado. Eu te garanto que se você fosse rico, muito cheio da grana, eles lamberiam suas bolas.

— Nega! — atentou Rodrigo.

— Desculpa, princesa.

— Por que eles lamberiam suas bolas, tio?

— Kátia? — Rodrigo a olhou.

— Eu fico indignada, amor, desculpa. Princesa, esquece o que a tia falou. Não repete isso, senão a coroa da princesa perde um diamante e vai ficar sem brilho. 

— Então você perdeu um diamante?

— Perdi meu amor. 

— É só não repetir mais. 

— Então você está sozinho por aí? — questionou Rodrigo. — Sabe fazer alguma coisa, tem algum documento?

— Eu estou sozinho. Eu agradeço e muito a ajuda da Ana, mas já está na hora de eu caçar meu rumo. Não posso abusar da boa vontade dela.

— Você nem ousa, Miguel! Senão quiser me ver brava, você para com essa história de voltar para a rua. Se quiser, te ajudo a procurar sua família, mas para a rua você não vai. 

Disse séria, olhando para ele, que sentiu cada palavra que falei, pois me olhava com aqueles olhos que cada dia mais ficavam um verde vivo, límpido.

— Também acho. não tem cara de pessoa que vive na rua. Precisa é encontrar sua família. Mas... ó, presta atenção viu. Né porque a Ana é boazinha, que eu também sou. Cobrança está aí, vacila quem quer. 

— Eu... Eu respeito muito a Ana e a princesa Malú, tenho eterna gratidão a elas, pelo que estão fazendo por mim. 

— Acho bom, preciso nem falar nada, faço das palavras da minha mulher as minhas.

Depois desse clima tenso, a conversa foi ficando mais leve.

Rodrigo percebeu o porquê que eu ajudei o Miguel. Ele era uma boa pessoa. Chegaram até a trocar algumas palavras. 

Fico feliz por isso. 

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Enfim, é sexta-feira e mais uma semana concluída. Salário caiu na conta e graças a Deus os débitos foram todos quitados. 

No final do dia, Tales queria me arrastar para um Chopp, eu neguei, disse que ficaria para uma próxima, talvez na próxima sexta, já que minha pequena não estaria em casa. 

Dessa vez consegui chegar antes do transporte e pedi mil desculpas pelo atraso do dia anterior. 

— Mãe, hoje o tio pode continuar a história? 

— Se ele quiser, pode sim.

Assim que entramos a casa estava em silêncio. Como sempre, desde que Miguel chegou aqui, a casa estava limpa e pelo visto, a janta estava pronta. 

— Miguel? 

Nenhuma resposta. Coloquei Malu para o banho, pois já sabia onde poderia encontrá-lo.

Fui até a área de serviço e lá estava ele. De bermuda moletom e sem camisa, o corpo todo suado. Fazendo suspensão numa barra que não estava ali. Ou estava e eu nunca notei.

Os músculos se moviam, mostrando que um dia já teve definição. 

Eu acompanhava os movimentos com os olhos, mas com o corpo totalmente tenso. 

Apesar de suas cicatrizes, seu corpo era muito agradável aos olhos e nesses poucos dias aqui, já notei que ele estava mais saudável. 

— Olá, eu não ouvi vocês chegarem.

— Estávamos numa conversa muito séria sobre quem de nós dois vai contar a história hoje. 

Ele sorriu para mim, o sorriso lindo que ele dá, sempre que o assunto é Malú. O sorriso que aquece o coração de uma mãe, quando sabe que seu filho é amado. 

— Eu posso fazer isso. 

— Não, quero abusar. Você deve estar cansado do seu...

Meus pensamentos eram gelatina, nada sólidos. Nada coerentes. Eu não conseguia não dar umas olhadinhas para onde o short pendia no quadril.

Ana Maria Garcia, pela misericórdia santa, quão pecadora você está sendo por cobiçar um homem que precisa de ajuda? 

— Eu fiz alguns aparelhos com suas coisas, para passar o tempo. Não tinha nada para fazer. Eu aproveitei também e consertei as duas gavetas do armário da Malú que estavam quebradas. 

— Oh, sim... obrigada. Eu vou tomar banho.

— Claro. 

Durante a janta foi meio desconfortável, eu permaneci em silêncio, enquanto Malu não parava um segundo, inclusive pediu para o tio deixar ser maquiado. Os dois foram para o sofá da sala e eu observava tudo, enquanto limpava a cozinha. Minha filha gostava desse estranho e acho que eu também.

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