Capítulo I: O ouro no mundo

As vozes nasciam da imensidão acima. A multidão se agitava, a expectativa aumentava à medida que seus passos progrediam no corredor escuro. Embora o percurso tivesse se tornado familiar, sentia-se perdido, como se o caminho único pudesse se ramificar em vários e levá-lo a um calabouço frio onde se encolheria pela eternidade. Lembrou-se da primeira vez em que seus pés pisaram naquele lugar. De como o ímpeto de voltar e desistir era grande, cada batimento era um “não vá”. Não se sentia um lutador da Arena, mas um garoto perdido na vastidão de um mundo onde as sombras reinavam.

Naquela noite, sua primeira em Cinstrice, ele enfrentou um adversário experiente, bem maior do que esperava. Todos diziam seu nome e o incentivavam a acabar logo com o novato magrelo. Via a si mesmo como pequeno e incapaz, apesar de sempre tentar parecer o contrário. Seus pés se moviam como se dominados por uma entidade desconhecida, era um espectador no seu próprio corpo, distante e ao mesmo tempo presente. O calor emanava do Lustre de Ferro, o suor frio escorria por sua face, mas nunca se esqueceria de um batimento forte no seu peito: “vá!”.

Desviou da investida veloz do oponente e atacou com força. Pela primeira vez na noite, descobriu-se digno de estar na Arena. Conseguiu ser forte quando não acreditou; quando acreditou, venceu a luta em questão de segundos. Aquele mero desconhecido tinha então o nome na boca de cada pessoa ali.

Andando pelo corredor novamente, algo havia mudado. Era sua quinta noite, todos o conheciam, porém a confiança depositada nele não existia mais. Vencera sua segunda luta contra um adversário melhor que o primeiro, mas a terceira não seria como as anteriores. Recebeu um convite do campeão da Arena, Abnor, para enfrentá-lo. Ignorando completamente as palavras de Endrick, aceitou. Como esperado, teve sua primeira derrota sob o Lustre de Ferro.

A segunda veio como um pedido de revanche, a partir de então ninguém mais acreditou nele. Seu nome virou piada. As pessoas estavam ali, naquela terceira noite contra o mesmo oponente, para assisti-lo perder. Enfrentaria Abnor outra vez e não daria esse gosto a ninguém. Seus passos pararam ao escutar seu nome, um rosto pálido surgiu à frente e desapareceu rapidamente, como se o vento o levasse. Estava desatento, mas pensou ter visto a imagem de Johen. Balançou a cabeça e seu nome foi dito novamente ao dar apenas um passo.

— Nico! — Era uma voz que vinha da multidão, cujos assentos ficavam sobre o corredor.

Ele se esforçou para escutar.

— ... contra o mesmo? — Era a voz mole e desajeitada de um bêbado — Você acredita que pode dar um resultado diferente?

— O quê? — Surgiu a voz de quem falara primeiro.

— Você acha mesmo que Nico pode se sair melhor?

— Só se for melhor como tapete beijando o chão!

Os dois caíram na gargalhada.

Isso bastou. Nico olhou para cima, para as tábuas de madeira do teto do corredor. Aqueles dois, quem quer que fossem, estavam no lugar ideal. Nico se preparou, mirou e saltou, desferindo um soco estrondoso no teto. Um barulho de metal contra madeira se destacou em meio aos gritos de susto e impropérios, alguém deixara a caneca de cerveja cair. Nico apenas conteve o riso e seguiu seu caminho, indiferente à cerveja que escorria pelas frestas do teto.

Chegando ao fim do corredor, deu de frente com o portão que levava ao Cerco, onde ocorriam os duelos. As tochas se apagaram, a escuridão se tornou completa e da plateia só restaram murmúrios. Ouviu-se o barulho de metal que indicava a elevação dos portões, abrindo passagem para os lutadores. Nico avançou três passos e sabia que Abnor fizera o mesmo do outro lado do Cerco. Ao acender do Lustre de Ferro, a luta estaria iniciada.

— Sintam-se parte da Arena de Cinstrice! — Uma voz forte ecoou por toda parte, o Lorde da Noite, o anunciador das lutas. — Esta noite, assim como todas as outras, sintam-se a voz e as entranhas da Arena do Lustre de Ferro!

Fizeram-se aplausos e vivas por um momento, então ele retomou a falar.

— Teremos aqui um novo duelo que todos querem ver, e eu já aviso, vocês que vieram de longe e vocês, doidos o suficiente para morar em Cinstrice, será belíssimo! Teremos Nico de Ellefen!

Archotes se acenderam próximos a ele. Uivos baixos e risos chegaram aos seus ouvidos entre os aplausos.

— E o nosso atual grande campeão, invicto histórico, Abnor!

Os aplausos foram constantes e com entusiasmo. Quando viu a face convencida do seu rival, Nico desejou quebrá-la mais ainda.

— Agora chega! Escutem, pois logo calarei minha voz. Não fechem os olhos ou a boca, não se esqueçam de que seus pulmões precisam de ar e aproveitem a Grande Noite! Rarterien!

O Lustre de Ferro se acendeu em chamas vermelhas e douradas, incendiando a voz da plateia com vigor renovado. Nico cobriu os olhos devido a claridade repentina, mas logo voltou a encarar seu oponente, que bateu duas vezes os punhos nos peitos e os ergueu para a torcida, gritando para atiçar seus fãs. Abnor era maior e mais velho, não tão rápido, no entanto, bem forte. Tinham estilos de luta parecidos, mas Abnor era acostumado a vencer rapidamente, isso significava que talvez se cansasse rápido se a luta permanecesse muito. Era tentador, mas Endrick dissera que seria perigoso testar a ideia.

O olhar de ambos se encontrou e eles levantaram guarda. Abnor avançou com maior velocidade, suas pernas longas e fortes faziam seus passos parecerem três dos de Nico, e Nico não era mais que dez centímetros menor que ele, o mais novo apenas se aproximava com cautela. Abnor desferiu o primeiro golpe, um soco de esquerda. Nico abaixou, acertou dois socos no estômago do adversário e girou rapidamente, sem desfrutar de tempo para se livrar da dor por bater em algo tão rígido. Agora, um estava na posição inicial do outro.

Nico sentia a vibração no seu peito aumentar e seus sentidos se aguçarem a cada expiração. Firmou os pés e se preparou para receber mais uma investida. Abnor avançou e dois socos passaram pelo canto da sua visão, enquanto ele esquivava para a direita e acertava um golpe na lateral do corpo de Abnor, uma careta surgindo no seu rosto. Abnor tentou acertar seu cotovelo na cabeça de Nico, porém o mais novo conseguiu abaixar e acertar as costelas do oponente mais uma vez.

Exibindo uma nova careta, Abnor se permitiu cair sobre um joelho, apertando a lateral do tronco com a mão. Nico aproveitou a chance, acertou duas de direita e uma de esquerda na cara do adversário, terminando a sequência com uma joelhada no queixo. Abnor foi jogado ao chão e a voz irrequieta da plateia ganhou um tom lacônico. Nico partiu para cima do oponente, que girou rapidamente sobre o solo de terra batida e se ergueu com facilidade. Uma explosão de luz tomou sua visão, Abnor acertou uma sequência de socos no rosto de Nico e o expulsou para trás com um chute no abdômen.

O rapaz desabou apoiando as mãos no chão, uma tosse seca não permitindo que se levantasse. Ele a afastou controlando a respiração e se colocou de pé para encarar Abnor. O rosto ainda confiante, nada abalado em sua expressão. A luz do Lustre de Ferro refletia em seu suor, seu olhar avaliava o oponente com preocupação, esperando que se recuperasse, e Nico o odiou por isso. Algo quente tocou seu pé, pensou se tratar de uma gota do seu próprio suor, mas era o sangue que escorria do seu nariz. Notou que sequer estava vermelho onde acertara Abnor.

Nico enxugou o sangramento e ergueu os punhos cerrados. Abnor fez o mesmo e disse:

— Podemos começar agora.

Ambos avançaram ao mesmo tempo, Nico saltou e acertou um golpe com a perna esquerda no peito de Abnor e, girando rapidamente antes de cair no chão, desferiu um chute com a direita no rosto do adversário, fazendo Abnor recuar. Gostava de usar essas manobras, mas Endrick sempre dava broncas quando o fazia, quase conseguia escutar a voz irritada do amigo da plateia, falando para usar os punhos e parar de pular.

Nico se levantou e preparou um novo golpe, mas Abnor agarrou seu punho e o puxou para uma cabeçada. Abnor acertou uma sequência no abdômen de Nico, que se afastou e tentou bloquear um soco de esquerda com o cotovelo, no entanto, falhou. Ele foi jogado ao chão e Abnor tentou chutá-lo nas costelas, porém Nico agiu mais rápido e acertou a panturrilha do oponente, obrigando-o a se ajoelhar.

Nico se ergueu, distanciando-se para poder respirar. Sua visão estava turva e seu corpo, pesado. Abnor andava em sua direção, não parecia disposto a dar outro intervalo para ele se recuperar. Sua expressão era de raiva, algo que demorava a surgir nas noites anteriores. Nico sorriu e a luta recomeçou.

Mais dois minutos se passaram e o pouco do equilíbrio que existia no início se perdeu. Infelizmente, não foi a favor de Nico, que começava a cambalear no Cerco. Marcas de sangue jaziam sobre o chão e, àquela altura, Nico não era o dono de todas elas. Mesmo assim, estava perdendo, as pessoas já consideravam a luta ganha para Abnor, mas a teimosia não permitia aos tolos desistirem, nem aos bravos, costumava pensar.

Nico investiu com um golpe de direita, Abnor desviou e acertou um soco no seu rosto sem que o garoto pudesse esquivar. Aproveitando-se da tontura do adversário, Abnor o puxou pelo braço e desferiu vários golpes com a mão livre, a plateia exclamando de excitação a cada barulho que as pancadas faziam. Nico acertou um soco na cara de Abnor, fazendo o oponente soltá-lo, porém o mais velho agiu rápido e o agarrou por trás.

O abraço apertado roubou seu ar. Nico tentou se libertar até sentir o mundo girar e seu peso desaparecer. Uma pancada fez sua cabeça estalar, seu crânio poderia ter se partido se o ferimento correspondesse à dor. Largado no chão, ele tossia, o Lustre de Ferro era um sol diante dos seus olhos, porém não o fazia se sentir forte ou aquecido. As vozes da multidão pareciam distantes. Olhou para onde estavam e um rosto se destacou, a face pálida e inconfundível de Johen.

— Parece que você aprecia perder — os lábios dele se moveram em cada palavra, mas foi a voz de Abnor que soou.

Um último golpe o apagou.

***

A tranquilidade sempre se fazia no caminho. Chegava com delicadeza, despercebida. As ondas agitadas do mar de pensamentos se transformavam na calma correnteza de um rio. Por um breve instante ou um longo período. Às vezes, como diziam, era a calmaria antes da tempestade. Em qualquer caso, Endrick geralmente fazia o mesmo, aquilo que precisou viajar longe para aprender a apreciar. Ele relaxava, pois nunca sabia quando ou se haveria outro momento desses.

A noite o acompanhava até poucos minutos atrás. Ela se foi sem despedida, deixando seu frio e trazendo uma névoa fina. Não era um novo dia, o sol ainda não tocara sua face, porém havia a leve claridade da madrugada anunciando que ele estava próximo. O alívio de deixar Cinstrice estava explícito, algo que não era raro. Não existia uma boa alma viva que quisesse permanecer em uma Nider por mais tempo que sua sorte brilhasse.

Guiava a carroça sem pressa de volta ao vilarejo de Ellefen. O sacolejar não incomodava, tornava-se parte da tranquilidade. O rapaz dormia atrás após sua última noite. Não tinha sido uma das melhores de fato, dormia feito pedra na mesma posição de quando o colocaram lá, encolhido no espaço apertado. Sim, Endrick teve que pagar para que o carregassem novamente. Esperava ter sido a última vez. Sentia-se responsável pelo jovem, afinal, ele o era desde a morte de Johen. Apesar do seu potencial, não podia permitir que ele se arriscasse sempre na Arena, mas se tinha algo em que Nico mais se assemelhava ao velho Johen era a teimosia.

Nico havia se tornado um rapaz forte e saudável. Não tão inteligente, verdade, porém Endrick sabia que seria assim na primeira vez em que o encontrou na cidade de Cadisce, oito anos atrás, quando o garoto tinha onze anos. O velho Johen dissera que encontrou o garoto perdido e confuso próximo à ponte do rio Arnes dois anos antes, tirou-o das ruas quando soube que ninguém o faria. Nico via o gesto como bondade, no entanto, descobriu que tal coisa não existia naquele homem. Não mais.

Endrick notou ele acordar, como se seus pensamentos o chamassem. Aproveitou para começar provocando:

— Foi uma bela surra. Quase fiquei com inveja.

Nico esfregou os olhos.

— Era o que eu precisava ouvir.

— Eu imaginei que sim.

— Que dia é hoje? — Perguntou, passando as mãos pelo cabelo e resmungando de dor.

Endrick olhou de soslaio.

— Eu digo quando chegar.

— Entendi — olhou ao redor, mirando o horizonte. — Já estou ansioso.

— Não precisa, logo logo ele chega.

Nico bocejou no instante em que dizia algo.

— O que você bodejou aí? — Endrick franziu o cenho.

— O que você quis dizer com isso?

— Isso o quê, doido?

Nico se sentou do lado dele, fazendo caretas conforme sentia seus machucados.

— De quase ter ficado com inveja.

Endrick deu de ombros.

— Só me fez lembrar…

— E eu não sou doido.

Endrick revirou os olhos.

— Me fez lembrar uma noite minha.

— Sério?

— Sim, você quase apanhou como eu.

— Uma coisa realmente invejável — Nico tentou se espreguiçar, mas parou com um guincho de dor no meio do caminho.

— Concordo — Endrick arrastou um suspiro.

— Você não vai me contar? — Lançou o que esperou ser um olhar de incentivo e não um pedido de golpe de misericórdia.

— Já que insiste — deu de ombros.

— Bom, já estou sentado.

— No meu tempo na Arena, existia uma boa premiação para quem vencesse suas cinco primeiras lutas.

— Sim, isso eu sei.

— Eu estava na última. Carregava a certeza da vitória, mas enfrentaria um lutador jamais visto. Menor, porém mais velho. Via em seus olhos algo diferente do que tinha visto em outros. Aquele homem tinha alcançado um grande propósito.

— Lutar na Arena?

— Não, acho que não, talvez. Entre os mistérios que vi, uma certeza: não sairia de lá derrotado. Estava certo de que ele via o mesmo em mim.

— Qual era mesmo o nome dele? — Perguntou Nico.

— Sei lá! Me esqueci. Só lembro que diziam que ele vinha do Oeste. Mas enfim, aconteceu que aquele homem foi uma grande surpresa, maravilhosa surpresa. A minha vantagem no início não decidiria o final. Ele só estava me desvendando, descobrindo meus movimentos, os meus golpes.

— Qualquer um pode fazer isso. Ou pelo menos tentar.

Endrick assentiu.

— E ele usou isso perfeitamente ao seu favor. Era uma habilidade, velocidade e força que vi em poucos — riu brevemente. — Quando dei por mim, já estava no chão. Jogado como você hoje, só que de uma forma menos humilhante. O favorito da noite perdera. Todos aqueles bêbados apostadores em silêncio. Sem gritos e canecas se batendo, derramando cerveja. Nada até anunciarem o vencedor.

Nico olhou bem o rosto do amigo, procurando traços de mentira.

— Aquele homem sem nome derrotou você?

— Não prestou atenção, não? — Arqueou uma sobrancelha — E nem fizeram muito barulho para ele. Depois, nunca mais o vi lutar.

— O Vanmorrênio não foi invicto na Arena então?

Endrick balançou a cabeça.

— As pessoas me enalteciam muito, sabe? E essa nem foi a única vez que levei uma surra.

— Sério?

— Ah, olha só isso — apontou para frente.

A névoa tênue que cobria a estrada se dissipou, as casas do pequeno vilarejo surgiam não muito distante. A claridade se tornava mais forte do que os pensamentos de Nico após os últimos acontecimentos. O Lustre de Ferro se destacava em sua mente, girando sobre sua cabeça e desaparecendo na escuridão do seu subconsciente.

— Não é só lindo, Nico, é precioso.

— Ah, sei — protegeu os olhos com as mãos. — Não se cansa de ver isso, né?

— Nunca.

No horizonte, o véu das nuvens que passavam se tingia com o brilho áureo ensanguentado que aos poucos se tornava mais intenso, da mesma forma que o céu ficava mais azul. A aurora se fez magnífica, o sol se ergueu, exibindo o seu esplendor.

— O Primeiro Rei nasceu — disse Endrick —, revelando o ouro no mundo.

Nico sorriu.

— Um pouco de ouro para o povo desse reino não faria mal.

— Não quis dizer dessa forma.

— Eu sei, mas...

— Acho que isso não deve ser dito. Imagine se a ambição de Wendevel recaísse sobre nós.

— Verdade — Nico assentiu, esfregando os olhos. — Mas falar sobre isso não vai tornar o pensamento em realidade, não é?

— Tem razão — Endrick pestanejava com força.

— Esqueceu de proteger os olhos?

— Não.

A carroça passou sobre a ponte do rio Arnes, provocando um forte solavanco. Nico resmungou.

— Desculpa — disse o Vanmorrênio.

— Passa mais rápido da próxima vez.

Endrick riu.

Muito se falava que a ponte de pedras era inútil e só servia para enraivecer as pessoas. Ela não tinha culpa de ter sido construída de qualquer jeito e nem de estar no trecho mais fino do rio Arnes. Passar sobre ela com uma carroça, ou até mesmo a pé para pessoas mordidas três vezes por um lobo, como Nico gostava de observar, não era muito agradável. De qualquer forma, reclamar seria mais inútil do que diziam que ela era.

O calor crescia e a sensação na pele era revigorante, o sol estava quente o suficiente para superar a última noite fria e detestável. Nico se sentia fraco física e mentalmente, esperava que isso passasse e suas dores fossem embora ao amadurecer do dia. O sol seria seu aliado como fora outras vezes. Olhou ao redor e suspirou fechando os olhos, deixaria a beleza do mundo entrar em si.

— Agora faça sua parte — a voz de Endrick o puxou de seus pensamentos.

— O quê?

— Eu não quero atropelar ninguém — passou as rédeas para o rapaz.

Nico sorriu, eles haviam chegado ao vilarejo.

— Deixa comigo.

Ellefen era um lugar simples, assim como as pessoas que viviam nele. Elas respeitavam todos, eram justas, generosas e honestas, a menos que se criassem dívidas ou surgissem histórias que comprometessem alguém. Isso quase sempre ocorria. Suas ruas eram calçadas com pedras, embora quase não fossem mais visíveis. As casas faziam com que o caminho fosse sinuoso, pois foram construídas em desordem. Ambos achavam incômoda a semelhança entre elas, feitas de madeira escura, o que trazia uma aparência pesada e pouco atraente ao pequeno vilarejo.

O movimento se iniciara àquela hora. As pessoas se preocupavam em sair cedo para realizar aquilo que as tornavam dignas. Armavam tendas e abriam as portas de suas lojas ou suas casas para fazerem as vendas. Outras partiam com suas mercadorias para cidades próximas que possuíam um movimento considerável e retornavam quando o sol deixava de ser a única estrela no céu.

Nico guiava a carroça com maior velocidade, a dor de cabeça se mostrava presente a cada solavanco na rua esburacada. As mãos fortes e avermelhadas seguravam as rédeas de forma descuidada, pareciam querer largá-las. Talvez estivessem apenas fatigadas de permanecerem fechadas, esperando o momento certo de desferir um soco. Endrick notou, mas decidiu não comentar.

Havia uma velha e acolhedora estalagem na saída de Ellefen, onde Nico parou a carroça. A Casa Mercstzine era um excelente lugar para abrigar qualquer pessoa que enchesse a mão da dona com uma certa quantia. Contudo, estava difícil fazer isso nos últimos dias. A tolerância da mulher proporcionava aos dois teto e comida, mas com muita reclamação e cobrança.

— Chegamos ao nosso confortável lar — Endrick desceu, apoiando-se com dificuldade no braço direito. — Se é que ainda podemos dizer isso.

— É o que veremos — disse Nico, olhando seus pés descalços. — Onde estão minhas botas?

— Olá, meus amores! — Ouviu-se uma vozinha gentil atrás deles.

Os dois se entreolharam por um instante.

— Bom dia, senhora Mercstzine — respondeu Endrick.

— Ah, bom dia! — Ela abriu um largo sorriso. Carregava abraçada a si algumas sacolas com pães, verduras e legumes. — Você sabe que pode me chamar pelo nome. Como passaram a noite?

Endrick se voltou para Nico.

— Bom dia, rapaz. A propósito, como você perguntou, hoje é uma bela segunda-feira de primavera de 1618. Quase me esqueci.

— Obrigado — Nico forçou um ligeiro sorriso.

O semblante de Mercstzine se tornou carrancudo, entendera tudo.

— Mais uma luta perdida! Eu não posso acreditar!

Ela entrou na estalagem, batendo a porta com força.

— Duvido chamar ela pelo nome agora — disse Nico, procurando algo na carroça.

— Estamos no mesmo barco.

— O que aconteceu com as minhas botas? Você sabe? — Perguntou, desconfiado.

Endrick acariciou o velho cavalo baio que passara a noite puxando a carroça.

— Abriga o Lino no estábulo, dê comida e água. Ele andou demais, merece repouso. Assim como você e eu.

Nico assentiu.

— Olha bem o que você vai falar com ela.

— Deixa comigo — Endrick deu uma piscadela antes de entrar.

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