Não foi dita uma palavra desde que se sentara. Apenas suspiros de descontentamento e o incessante som de pena riscando papel circulavam o aposento, que possuía a doce essência das ervas-séias de Ciusimur. Os olhos verdes e incisivos de um gato preto a encaravam, sacolejava a cauda de forma lenta deitado sobre uma caminha almofadada de veludo azul. Se bem escutara, chamava-se Calaithto. Nome do primeiro Eldenzor que se sentara no trono de Wendevel há quinhentos anos. Uma simples forma de homenagear a família real, até o mais tolo poderia ver, entretanto olhares diferentes poderiam ver o ato como um insulto. Ela não dava importância para isso, Calaithto era um nome bonito para um belo felino. O gato deu uma piscadela, como se apreciasse seus pensamentos.
Millena nunca estivera no Palácio Lirnansio do lorde Syafer de Lirnans, mas a sua grandiosidade e reputação construída ao longo dos séculos a levaram a crer que existisse algo de fato acolhedor por trás de seus muros. Em parte, estava certa. O pátio com a grande cascata guardada por estátuas de Bonsmur, o deus hiadovano da fartura, e suas servas era belíssimo, um dos melhores que seus olhos viram em toda a vida. Nos jardins cresciam as flores que mais admirava e outras cujos nomes não pôde decorar, porém os aromas ainda infestavam vivos sua memória.
As filhas do lorde, em seus vestidos de cores chamativas, foram graciosas e receptivas. Logo ao vê-las, Millena soube que haviam herdado todos os bons modos e aparência da mãe, lady Syafer. A mulher expressou o contentamento e as saudações necessárias diante do encontro, mas com o mesmo ar de superioridade esperado das senhoras da nobreza. O casal tinha mais um filho, que trazia honra ao nome da família fazendo parte da Segunda Ordem Leal, uma das principais classes de soldados do rei. Ele, sim, se parecia com o pai.
No interior do palácio, a amplidão dos salões era nada modesta, assim como as escadas de mármore com balaustrada ornamental que lembravam raízes. Bustos e esculturas dos antigos lordes e pessoas importantes adornavam os corredores, pinturas e forros exibiam mais imagens dos deuses; um singelo preito às divindades com traços encantadores. Mas o mais interessante ficara por último: a biblioteca. Não era tão grande quanto as do Nono Pilar, mas era intrigante. Centenas de livros eram guardados, a maioria nunca lida, pois possuíam idiomas ancestrais e desconhecidos. Variavam dos mais diversos tipos, desde os que ensinavam a fazer bolos aos que mostravam como realizar feitiços corretamente sem arrancar as próprias mãos, ao menos foi o que pensou ao ver uma estante com livros de magia.
Pode causar estranheza, porém Millena estava lá por essa razão. Não um livro mágico, mas um livro chamado Ulerim Isfe. O Patriarca Sirius que a enviou pessoalmente para a tarefa. Não era a primeira vez que saía em busca de um acréscimo para a Grande Biblioteca do Nono Pilar, mas se tornara a menos empolgante. Nunca vira pessoas tão frias e sérias quanto os criados e o próprio lorde Syafer. Respostas vagas foram dadas para as poucas perguntas que fizera, e as saudações adequadas quase foram deixadas de lado. Todos pareciam se perguntar a razão dela estar usando aquelas faixas nos pulsos, que iam até metade dos antebraços. Achavam-na estranha do jeito de falar ao andar. Felizmente, aprendera a não se importar com muitas coisas como essas.
Sua noção de tempo deixou de existir desde que Syafer a levou para seu escritório e começou a assinar os papéis que formalizavam a transferência do livro para o Nono Pilar, a única coisa clara era que o tédio a possuía. Olhou as vidraças duplas das janelas à direita, de onde entrava a luz da manhã em tons avermelhados, analisou os retratos sem vida das paredes e observou de forma minuciosa os entalhes da cadeira em que se sentava, raspando um pouco a madeira com as unhas.
Nesse meio tempo, o máximo que Syafer fizera foi erguer a cabeça não mais do que três vezes para encará-la com o olhar que mais detestava, como se ela fosse uma intrusa. Perguntava-se como ele conseguia tal efeito com olhos tão pequenos e acinzentados, parecia quase cego. Uma escrivaninha de aparência velha e desgastada estava entre ambos, fazia um barulho irritante toda vez que ele se apoiava para anotar. Na cabeça de Millena, o som parecia ribombar como se partisse de mil tambores. Odiaria ficar com dor de cabeça e desejou sair dali, rápido. Olhou para as vidraças de mosaico vermelho novamente, o céu estava azul lá fora. Logo estaria mais próxima dele, sobre o dorso forte e as asas potentes de Bervis.
Syafer dirigiu mais um olhar em sua direção ao erguer de maneira suave a cabeça e disse:
— Requer sua assinatura e a de uma testemunha.
Millena assentiu e fez o que era pedido, enquanto o lorde chamava uma criada para servir como testemunha. Após um tempo para a tinta secar, Syafer enrolou os papéis como um pergaminho e amarrou uma fita negra com o emblema verde e dourado da sua família.
— Perfeitamente concluído, senhorita Leviance — disse, entregando o cilindro. — Isso prova de forma absoluta e oficial que o Ulerim Isfe pertence agora ao Nono Pilar e ninguém pode tomá-lo, o Patriarca Sirius ficará satisfeito por possuí-lo. Resta apenas decifrar o que está escrito.
Millena pôde ver algum prazer nessas palavras, um esboço de sorriso no rosto do homem.
— Ele apreciará sua doação, meu lorde. Agradeço por sua generosidade, será uma valiosa adição à Grande Biblioteca, independente de sabermos ou não o que tem escrito. A importância está na capacidade que os escritos tiveram de sobreviverem até os dias de hoje, resistindo inclusive à pior das guerras.
Syafer a observou por um instante, ela odiou aquele olhar como todos os outros.
— Você fala como ele, garota. A semelhança espanta, permita-me dizer. É claro, considerando o fato dele não ser seu pai de verdade.
— Isso é porque Sirius é meu pai de verdade. Ele me criou desde os sete anos, lutando contra todos por mim. Qual sua ideia de pai de verdade, meu lorde? Deixar seu filho fazer o que bem entende na Segunda Ordem e almejar conflito? Grande pai o senhor tem sido, não acha?
Syafer a encarou, dessa vez ela gostou. Ele não deu nenhuma resposta, apenas pegou o pequeno sino que estava sobre a mesa e o balançou com seus inchados polegar e indicador. Em segundos, uma criada entrou no aposento.
— Meu senhor?
— Acompanhe a senhorita Leviance até a saída.
— Como queira.
— Esperem — disse Millena, encarando o olhar de Syafer com a mesma intensidade. — Não vamos querer esquecer o Ulerim.
Com a expressão mais enfezada que Millena vira, Syafer abriu uma gaveta e retirou o pequeno livro do seu interior, colocando-o sobre a mesa.
— Agradeço mais essa vez, meu lorde — disse ela, erguendo-se e recolhendo o livro — Agora eu me despeço, até um próximo encontro. Que os rios sejam benevolentes e as veredas não atrapalhem.
Syafer torceu o nariz, o que Millena respondeu com a audácia de um sorriso e um...
— Tchauzinho, Calaithto! — O gato a vigiou até que saísse pela porta.
Millena dispensou a companhia da criada afirmando que conhecia a saída, agradecia pela facilidade de aprender e reconhecer espaços nessas horas. Chegando na grande porta de carvalho que a levou para a mais pura luz da manhã, encontrou Bervis bebendo água na cascata, pousado sobre a estátua de uma mulher. Alguns guardas do palácio tentavam espantá-lo com gritos e palmas.
— Ei! — Chamou Millena. — Vamos descendo, seu garoto mimado. Um dia eu faço uma estátua sua, agora temos que ir.
Bervis saltou e planou obediente até onde ela estava. Era um jovem touro marrom que ainda nem dispunha de chifres, mas guardava muita força em suas asas.
— Muito bom — ela o abraçou e se dirigiu aos homens: — Obrigada por terem ficado de olho nele.
— É um belo ackaminoum, senhorita — um dos homens acenou.
— Ele é o melhor.
Millena montou em um salto, ajustando-se na sela e afivelando os apoios de pernas até as coxas. Curvou-se sobre o dorso do animal e deu uma batidinha no flanco do seu pescoço. Bervis correu e preparou suas asas de grande envergadura, os dois alçaram voo com um forte ruflar contra o vento.
A manhã estava agradável para planar, a corrente ascendente que Bervis pegou possibilitava que o fizesse sem muito esforço. A cidade de Lirnans ficou para trás em poucos minutos, após passarem pelo arco de saída de ackaminoums no solo, o que a fazia lembrar que algumas regras eram bem cansativas. Millena soltou a presilha dos cabelos e permitiu que as mechas avermelhadas fossem tumultuadas pelo vento, mas tomava cuidado para que seus olhos permanecessem livres para olhar o mundo ao redor, toda a extensão do reino de Wendevel. Era uma visão com a qual nunca se acostumaria, magnífica. O mundo era belo e o sol brilhava apenas para que ele fosse visto.
As Elevações Verdes ao norte atraíram sua atenção, um dos lares dos infistris vermelhos, uma das criaturas mais fantásticas do continente de Sarismel, belas e indômitas. Senhores do fogo na sua segunda vida. Cobiçava um dia vê-los além das páginas dos livros. Mais ao norte, as silhuetas acinzentadas e azuis das Montanhas Ghri’modur se erguiam soberanas em direção ao céu, o horizonte era uma fusão entre a terra e o ar. Os antigos anões que habitavam aquelas montanhas diziam que elas ainda cresciam das entranhas de Arcaidon, do coração do próprio mundo, e que um dia seriam a primeira ponte entre eles e seus deuses. Por essa razão que as nomearam de Ghri’modur, “grande ponte” no seu dialeto.
Existiam diversas lendas sobre as montanhas, Millena conhecia várias do Salão dos Escritos Antigos, a mais curiosa e obscura era sobre a razão dos antigos anões terem deixado seu lar após a Guerra dos Vaëlorins. Afirmava-se que uma maldição foi deixada nas águas, na comida e sobretudo nas riquezas, contudo os rios que corriam das montanhas traziam vida ao reino de Wendevel, as cabras montesas e outros víveres provenientes de lá eram os pratos mais apreciados no salão de banquetes do rei Sothgar. E o ouro, que se esperava ter sido deixado para trás, nunca foi visto por qualquer outra criatura. Nem os dragões do Oeste sentiram seu cheiro quando as lágrimas foram derramadas no cálice. Mesmo de longe, o aspecto soturno das Ghri’modur era presente. Millena mudou a direção do olhar ao sentir um arrepio.
A sombra de Bervis passeava sobre as colinas cobertas de verde, crescendo e encolhendo de acordo com o terreno acidentado que corria abaixo. Fazendas e pequenas cidades ao sul ficavam cada vez menores à medida que avançavam no trajeto. Um brilho acertou os olhos de Millena, a cidade em que crescera chamava sua atenção e se aproximava à frente. Erguida sobre os imensos pilares brancos como alabastro que a sustentavam acima do solo, estava a capital do reino. A imagem era escultural e belíssima, uma dádiva incomensurável dos Primeiros Construtores. A magia teve sua importância, mas segundo os Escritos Antigos, as mãos e as mentes dos trabalhadores e engenheiros wendevelianos foram as forças fundamentais e mais valiosas para que a cidade fosse erigida e permanecesse no ar por mais de 1600 anos.
A grande massa de terra, colossal aos olhos de Millena, trouxera espanto e medo para diferentes raças que a contemplaram, no entanto a admiração sempre prevalecia e tomava os sentimentos, atiçava a cobiça e a inveja dos povos que menos se esperava. Uma cidade tão preciosa não passou despercebida aos olhos dos dragões, isso não foi uma surpresa. Dias de fumaça e cinzas vieram, mas ela mostrou sua resistência e disse que o orgulho era sua maior força.
Eiunli’env era seu nome, a Cidade dos Reis, dona de uma beleza incomparável, mas uma beleza gananciosa não é uma das melhores que se possa existir. Exibia-se em meio a raios vermelhos e dourados devido aos reflexos das primeiras luzes da tarde que nascia em seus muitos edifícios ornados de ouro e outras riquezas. A cidade era inteiramente rodeada por uma muralha baixa e espessa, palácios e outras construções eram vistas de longe, em especial as torres do castelo real que ficava no centro.
Os pilares brancos sob a cidade eram tão impressionantes quanto o que havia em cima, tinham formato cônico em cada uma das extremidades e se afinavam ligeiramente no meio. Eram nove no total, oito distribuídos ao redor do disco de rocha sobre o qual repousava a cidade e apenas um, sem dúvidas o maior, localizava-se no centro. Bervis sobrevoou as edificações com graciosidade, as ruas eram largas e a movimentação lépida das pessoas e carruagens traziam um burburinho agradável. Árvores margeavam as casas e os grandes jardins, cujas cores vermelhas e lilases predominavam, atraindo a atenção de Millena.
Após instantes voando a esmo e assistindo as veias da cidade, Millena visualizou o Palácio do Nono Pilar.
— Vamos para casa, amigo.
Entraram no Pavilhão de Pouso através de uma das aberturas no teto, uma estrutura esférica de metal chamada de Gaiola projetada apenas para os ackaminoums entrarem e saírem. Bervis pousou e Millena desafivelou as tiras que deixavam suas pernas firmes, desmontando em seguida.
— Sua demora me preocupou — disse uma jovem, aproximando-se para ajudá-la.
— Obrigada, Nerissia, mas você sabe como os Syafer são.
— Sim — Nerissia sorriu, seus olhos castanho-claros quase se fechando. O seu cabelo escuro e sedoso balançando acima dos ombros. — O Patriarca Sirius está aguardando, acho que ele não vai gostar do seu atraso, melhor ir sem mais demoras.
— Você está certa, mas por alguma razão ele sempre me perdoa — ela piscou. — Depois conversamos, Nerís. Cuide bem desse garotão.
Acariciou Bervis antes de sair a passos largos.
Nove pilares eram suficientes para sustentar a Cidade dos Reis sobre o solo. Os wendevelianos passaram a crer que a mesma quantidade era necessária para manter o resto do reino funcionando, os Nove Pilares Políticos de Wendevel foram criados sobre essa ideia. Cada Pilar possuía uma função e um Patriarca para regê-lo. O Nono Pilar era o Pilar do Conhecimento, guardado por Sirius Leviance. Millena o encontrou na Sala-Maior de Estudos e Observação, ao lado de alguns Senhores dos Livros. Ao vê-la, ele foi em sua direção com passos suaves.
— Bom dia, Patriarca Sirius Leviance do Nono Pilar, a Mão do Conhecimento, Guardião da Chave Útil, Senhor das Inscrições Antigas e Perdidas, Protetor da Sala dos Arquivos Trancados, e meu pai — ela fez um movimento com a mão direita e a pôs sobre o peito, curvando-se enquanto colocava um pé atrás e a outra mão à frente. — Como tem passado?
— Vejo que pôs a obrigação mais difícil por último. — Ele olhou ao redor. — Não permita que os outros assistam a essa mesura, podem querer levá-la para a Casa Sobre Rochas.
Ambos riram e se abraçaram.
— Pensei que nunca terminaria — disse ela, quando se desvencilharam.
— Ah, o lorde Elrok Syafer, ele não tem culpa. Você sabe que...
— ... é sempre preciso obedecer às regras a respeito da doação de uma biblioteca para a outra, com o intuito de “asseverar” que tal doação realmente ocorreu...
— ... e em caso de roubo, poder acionar os soldados do rei. Essas são apenas as razões mais específicas.
— Eu conheço a burocracia, mas me pareceu que ele prolongou o processo mais do que o esperado.
— Os que carregam o nome Syafer não carregam a pressa no espírito — alertou o mais velho —, Elrok não é diferente. Conte-me como foi.
— Foi bem, porém temo ter dito mais que o necessário. Devo tê-lo ofendido, mas saiba que não foi de forma gratuita. O Palácio Lirnansio é belíssimo, as filhas e esposa de Syafer são encantadoras, Calaithto é a criatura mais fofa, digo ser uma verdadeira pena não ter boas palavras guardadas para o lorde.
Sirius a tocou no ombro.
— Se esse é o caso, digo que compartilho do mesmo pensamento. Sinto por tê-la enviado nessa missão, mas era minha melhor opção e certeza de que o livro chegaria às minhas...
Ele estendeu a mão. Após uma breve fração sem compreender, Millena puxou o livro e o entregou.
— ... mãos. Só não espalhe para ninguém quem tem a minha total confiança.
Millena sorriu.
— Seu segredo está guardado.
Sirius abriu o livro e folheou as velhas páginas com cautela, as inscrições desconhecidas dançavam por toda parte.
— Perdoe-me a curiosidade, mas o senhor sabe o que tem escrito?
Sirius a encarou, o tipo de olhar que ela não sabia decifrar.
— A biblioteca do Palácio Lirnansio guarda escritos de longas datas, como você deve ter visto, uma tradição da família Syafer. Não é nada que Elrok tenha se apegado, afinal há décadas que não é acrescentada nenhuma folha ao acervo. No entanto, o que está em minhas mãos é o mais precioso que se poderia encontrar, é um livro descrínico.
— Mas não é o único livro sobrevivente da época da Descrínia — afirmou Millena, retirando o cilindro de papel do seu cinto e colocando sobre a mesa ao lado, ainda possuía um leve odor das ervas-séias.
— Não mesmo, minha querida. Porém me arrisco a dizer que pode ser o único que explica os detalhes que levaram a maior guerra de todas, a própria Descrínia. Tão marcante que estamos em 1618 após o seu fim. Existem menções dele em vários escritos antigos. — Sirius apontou para onde os Senhores dos Livros estavam, ao redor de uma grande mesa com vários livros e pergaminhos, uma imagem comum. — Verificamos até a exaustão, Ulerim Isfe pode nos revelar o passado.
— O passado que transborda, enchendo assim o presente e preparando nosso futuro — disse Millena, repetindo as palavras que seu pai costumava dizer.
— É como você sabiamente disse.
Millena sorriu e apontou para o livro.
— Por um momento eu pensei que pudesse ensinar a lançar raios pelas mãos.
Sirius riu.
— Tal poder não se alcança através de livros, a menos que seja um de magia proibida. Agora pode ir, volte ao seu trabalho, pois temos os nossos a concluir.
Ela suspirou, uma folga como agradecimento não cairia mal.
O chão do refeitório estava engordurado próximo à mesa de onde encontraram as crianças. Ela não saberia dizer se os restos de comida era o que restara de um porco ou de um frango, nem perdeu tempo pensando nisso. As crianças acenaram ao vê-la, quanta audácia de agirem naturalmente após terem feito o que fizeram. Mesmo irritada, ela retribuiu e riu das bochechas delas, lambuzadas de molho vermelho que torceu para que não saísse com facilidade.— Aí estão seus alunos, Mestre Armoni — virou-se para o Mestre de Ensinos. — Não os perca de vista novamente.— Peço desculpas, senhorita Leviance, em nome da Academia de Venelvor.Drafindel e os gêmeos riram da cara do homem, Diarne se retirou com um suspiro, dizendo que faria umas anotações. Millena se despediu, abraçou Drafindel e os irmãos e continuou seu trajeto.— Praguinhas famintas — sussurrou ao olhar para a mesa novamente. Esperava que levassem um sermão.Chegando ao balcão de pedra da cozinha, o cheiro dos assados a deixou com água na b
As engrenagens giravam no interior da caixinha de madeira, resultando em música e um leve tremor sobre o seu peito. O compasso criado junto aos seus batimentos acalmava, o toque melancólico ordenava para que fechasse os olhos. Ela era teimosa, observava o dossel da cama, vagueando em pensamentos criados por uma trilha sonora de toques mecânicos. Havia um casal que girava à medida que a melodia progredia, de início curvados, mas vagarosos se erguiam em uma dança. Agora estavam perdidos em algum lugar distante, assim como muitas coisas da sua infância. Coisas que envolviam a sua memória.O dossel caiu sobre seus olhos e as cortinas a envolveram tão subitamente quanto a caixinha que se fechou e deixou de tocar. Millena estava em Nivins, a ilha. Sabia que estava, poderia ser diferente? Tinha mais uma vez cinco anos, era óbvio. Qual pessoa não saberia a própria idade? Sentia-se bem e olhava o oceano, não havia praia. Pisava nas pedras descalça sem se incomodar. Estava livre, o vento forte e
— Meu nome é Alec — respondeu, após Endrick perguntar pela segunda vez.Sentava-se em uma cadeira próxima a lareira, assistia a lenha sendo abraçada pelas chamas e se transformando aos poucos em um resquício distante do que era. Ele recusara comida ou roupas secas, apenas quis ficar perto do fogo. Uma fina linha de sangue escorria do canto da sua boca, mas Mercstzine não o convenceu a deixá-la cuidar do ferimento. Apenas isso maculava o rosto pálido de Alec, porém ele estava mais ferido do que aparentava. Mancava um pouco com a perna esquerda, Nico serviu de apoio para carregá-lo até onde estava, e mantinha a mão colada ao lado do corpo. Se tivesse a sorte que Endrick acreditava, talvez nenhuma costela estivesse quebrada. Seu cabelo negro caía sobre seus olhos cinzentos e pensativos.Ele não devia ser muito mais velho que Nico, cuja altura era a mesma. Tinha uma voz grave, possuía um certo ritmo ao pronunciar as palavras. Um sotaque que ninguém reconhecia ou apenas uma maneira própria
Era um sonho antigo e recorrente. Se eram lembranças do seu passado esquecido, ele não sabia, no entanto o sonho nunca estivera tão nítido quanto naquele momento. Sentia tudo de forma concreta, era ele, uma criança entregue aos soluços do seu pranto. Nico duvidava que sua mente fosse capaz de criar uma ilusão tão perfeita em seu subconsciente, porém relutava em acreditar que realmente era uma cena ocorrida no seu passado.O aperto no peito era intenso e doloroso, não havia nada que pudesse ser feito. O medo, Nico pensou pela primeira vez em como o medo podia deixar alguém sem uma fração de si. As lágrimas enchiam os olhos e percorriam o curto caminho da sua face como um rio cristalino em direção aos seus lábios, o sofrimento era salgado. Veio então o nome pela primeira vez.De tantos sonhos confusos e indistintos, esse foi o único que permitiu relembrar o nome do garoto que morria: Leone. Um nome que achou bonito. Agora era tão óbvio que Nico se perguntou como não conseguiu se lembrar
Nico mordiscava os pães, comumente ignorando o chá de Mercstzine servido a sua frente. Estava pensativo e pouco à vontade diante dos outros. O sonho com Leone, a aparição de Johen, seguido do roubo da misteriosa caixa de Tarci, que ele provavelmente roubara primeiro, foram tantos acontecimentos antes que o dia começasse que sua mente o fazia crer que nem tudo havia acontecido mesmo. Em especial a parte de quase ter sido morto. A adaga voava em sua direção, o tempo ganhou diferentes engrenagens e ele se via incapaz de fazer o simples ato de piscar. Porém o giro do cabo e da lâmina não terminaria como qualquer pessoa pudesse prever, o vento veio e mudou tudo.Endrick se recusou a falar sobre o que fez. No entanto, Nico sabia que uma hora ele atenderia a obrigação de conversar sobre o assunto. Embora o amigo contasse bastante sobre sua vida, reconhecia que inúmeros segredos eram guardados, mas magia estava longe de qualquer suspeita. Isso o levava a criar muitos questionamentos; se Endric
O dia amanheceu tão claro que Millena pensou que o sol batia na janela do seu quarto. O relógio marcava seis e meia, relativamente tarde para o que estava acostumada a levantar. Surpresa, notou que não havia sonhado, nem se esforçando conseguiu trazer algum vestígio. Ficou grata, mas o seu corpo estava dolorido por causa do passeio aéreo do dia anterior com Nerissia. Perderam a noção do tempo planando e fazendo as manobras que os ackaminoums permitiam. Quando pousaram, sua amiga levou broncas de Dinah na cozinha e teve que carregar caixotes e descascar legumes o dia inteiro. Enquanto a Millena, recebeu muito mais volumes para separar do que esperava sua estimativa mais pessimista.Suas nádegas deviam estar marcadas até agora, pois ficara sentada até tarde da noite, levantando-se apenas para o indispensável. Podia ser atrasada, mas se orgulhava de não poderem dizer que não era dedicada. Não tivera absolutamente nenhuma chance de contar a Sirius sobre suas visões, o temor angustiante de
A claridade das velas incomodava seus olhos. Tinha em mão uma pena e a tinta intocada ao lado. Estava sem sono, diferente do que dissera a Sirius meia hora atrás. Uma certa paz a envolveu, satisfação por ele e Argus terem dado um passo importante. Outra parte dela, contudo, mantinha seu ânimo baixo e lhe privava o sono. Tinha costume de escrever no caderninho de capa dura que ganhara do irmão anos antes, porém sua imaginação não estava ativa o suficiente para redigir nem uma receita de bolo de cenoura, algo que Dinah fez questão de ensiná-la quando era criança. Mesmo assim, tentava espremer qualquer coisa da sua mente infértil.Mergulhou a ponta metálica na tinta, pensando na primeira palavra de uma possível história que ainda não existia na sua cabeça, mas um calafrio a atravessou de repente, sua mão esbarrou no potinho de tinta e o conteúdo se derramou sobre a folha. Ela agiu depressa para evitar que estragasse o restante dos seus manuscritos, mas parou ao observar com espanto o que
“Duvenur era considerado por muitos povos da antiguidade o sleniano mais controverso, tal fato se manteve inalterado até o período atual pós-descrínico. Duvenur fez como moradia o interior do crânio do gigante Eltisdes, derrubado por Hallar’ken nas guerras de Belqzardu. Sendo considerado o deus da morte e da piedade, do ódio e do amor, Duvenur também é nomeado como Osein e Abierg. Filho de Ninguém, carrega os títulos mundanos de Preceptor Dúbio, Mestre Ambíguo e Senhor Desolado. Entre os deuses, era principalmente reconhecido como Corvo Sereno e Guerreiro de Negras Seda e Foice. Casado com Tarinfel, a próxima sleniana a ser estudada no capítulo seguinte, teve cinco filhas cujos nomes são debatidos e observados até hoje. O mais aceitável é que elas eram Cecill, Niahr, Átilae, Ciliv e Analesia.”— Aí está você — disse Millena, soando cansada.Fizera pesquisas infrutíferas por diversos títulos até decidir buscar em Um estudo sleniano além da casca, de Edmons Lencster, o qual já revisitara