O dia amanheceu tão claro que Millena pensou que o sol batia na janela do seu quarto. O relógio marcava seis e meia, relativamente tarde para o que estava acostumada a levantar. Surpresa, notou que não havia sonhado, nem se esforçando conseguiu trazer algum vestígio. Ficou grata, mas o seu corpo estava dolorido por causa do passeio aéreo do dia anterior com Nerissia. Perderam a noção do tempo planando e fazendo as manobras que os ackaminoums permitiam. Quando pousaram, sua amiga levou broncas de Dinah na cozinha e teve que carregar caixotes e descascar legumes o dia inteiro. Enquanto a Millena, recebeu muito mais volumes para separar do que esperava sua estimativa mais pessimista.Suas nádegas deviam estar marcadas até agora, pois ficara sentada até tarde da noite, levantando-se apenas para o indispensável. Podia ser atrasada, mas se orgulhava de não poderem dizer que não era dedicada. Não tivera absolutamente nenhuma chance de contar a Sirius sobre suas visões, o temor angustiante de
A claridade das velas incomodava seus olhos. Tinha em mão uma pena e a tinta intocada ao lado. Estava sem sono, diferente do que dissera a Sirius meia hora atrás. Uma certa paz a envolveu, satisfação por ele e Argus terem dado um passo importante. Outra parte dela, contudo, mantinha seu ânimo baixo e lhe privava o sono. Tinha costume de escrever no caderninho de capa dura que ganhara do irmão anos antes, porém sua imaginação não estava ativa o suficiente para redigir nem uma receita de bolo de cenoura, algo que Dinah fez questão de ensiná-la quando era criança. Mesmo assim, tentava espremer qualquer coisa da sua mente infértil.Mergulhou a ponta metálica na tinta, pensando na primeira palavra de uma possível história que ainda não existia na sua cabeça, mas um calafrio a atravessou de repente, sua mão esbarrou no potinho de tinta e o conteúdo se derramou sobre a folha. Ela agiu depressa para evitar que estragasse o restante dos seus manuscritos, mas parou ao observar com espanto o que
“Duvenur era considerado por muitos povos da antiguidade o sleniano mais controverso, tal fato se manteve inalterado até o período atual pós-descrínico. Duvenur fez como moradia o interior do crânio do gigante Eltisdes, derrubado por Hallar’ken nas guerras de Belqzardu. Sendo considerado o deus da morte e da piedade, do ódio e do amor, Duvenur também é nomeado como Osein e Abierg. Filho de Ninguém, carrega os títulos mundanos de Preceptor Dúbio, Mestre Ambíguo e Senhor Desolado. Entre os deuses, era principalmente reconhecido como Corvo Sereno e Guerreiro de Negras Seda e Foice. Casado com Tarinfel, a próxima sleniana a ser estudada no capítulo seguinte, teve cinco filhas cujos nomes são debatidos e observados até hoje. O mais aceitável é que elas eram Cecill, Niahr, Átilae, Ciliv e Analesia.”— Aí está você — disse Millena, soando cansada.Fizera pesquisas infrutíferas por diversos títulos até decidir buscar em Um estudo sleniano além da casca, de Edmons Lencster, o qual já revisitara
Os que estavam presentes olharam de imediato para quem entrava, murmúrios incendiaram o local, calaram-se as vozes alteradas. Igualmente repentino foi a troca de olhar de reconhecimento entre pai e filha, Sirius e sua expressão ligeiramente surpresa, nada repreensiva. O silêncio gritante se manteve enquanto Millena levava Brienqcorti até o seu assento no arco de arquibancadas à direita. Havia seis anões munidos de machados, lanças e martelos aguardando-o em pé, sentando-se apenas após o líder.Na outra extremidade do arco, após um notável vazio, reunidos estavam os representantes de Suillardre. Homens grandes e altivos, com vestes em tons de vinho que os mais formidáveis artesãos wendevelianos elogiariam. Estavam acompanhados de uma pequena guarnição própria, lâminas de espadas curvas à mostra.Os Nove Patriarcas dos Pilares Políticos de Wendevel encontravam seus assentos no arco à esquerda, diferentes expressões tomavam seus rostos, sobressaindo a tensão que deixava a atmosfera densa.
— Então, qual a sensação? — Perguntou Nico, pela milésima vez.— Trabalhe de bico fechado — mandou Endrick. — Quero cuidar logo de outro assunto.O rapaz pegou mais um tapete enrolado sobre o ombro e levou para dentro da casa, voltando logo em seguida. Estavam em Elisesile, ajudando no transporte da mobília de uma senhora, um favor que renderia alguns grelv. Era o tipo de trabalho que mais conseguiam pela região, geralmente não compensava o esforço, entretanto era uma boa forma de mostrar a Mercstzine que faziam algo além de “se humilharem completamente” na Arena para se sustentarem.— É só uma pergunta inocente.— Nada que vem de você é inocente.Nico resmungou e levou um estofado, restando dois baús da pilha inclinada que forçaram a se sustentar sobre a carroça no percurso de uma casa para outra.— Você faz um julgamento péssimo de mim — reclamou assim que retornou.— Faço o julgamento mais sensato.— Mas qual a sensação? — Perguntou, levando os últimos objetos, um em cada mão, e vol
Nico despertou duas horas após o anoitecer em um quarto separado apenas para ele. Reconhecia o local, havia um guarda-roupa com as laterais enegrecidas, manchas descendo como raízes causadas por uma goteira sobre o móvel. Dez anos atrás, o som da água de encontro à madeira o despertou de forma gradual. Johen o encontrara na madrugada e se abrigaram na estalagem durante a chuva, não sem antes se molharem, um lugar desconhecido que se tornou difícil de imaginar como tal nas atuais circunstâncias.Houve uma discussão com a senhora Mercstzine para que fossem aceitos, além de estarem encharcados, ela sabia que o homem não teria dinheiro para pagar por um quarto, quiçá por dois. A estalajadeira, porém, viu a criança e soube que ela ficaria doente, concedeu um quarto para ambos e disse que prepararia um chá para quando acordassem. O pequeno Nico jamais esqueceria o sabor daquela bebida, mas de alguma forma compreendia que o tinha salvado, pois a gripe não passou de poucas tosses e uma febre c
O crepitar de folhas mortas os acompanhou enquanto percorriam as vias da cidade, as calçadas ondeando sobre as raízes que cresciam em direção às casas e as copas das árvores batendo em janelas quebradas há muito tempo sem se preocuparem com tesouras para as podarem. Os postes a óleo não iluminavam mais, quem quer que corresse as ruas para acendê-los já estava muito distante, e alguns deles jaziam ao chão envergados, como se os tivessem manejado em uma feroz luta de espadas. Poucas pessoas caminhavam como eles, afastando-se rapidamente quando os avistavam; outras, Nico percebeu, não se incomodavam em desviar o olhar ou disfarçar a intenção de observá-los escondidas, mesmo que descobertas. Ele sentiu um frio no estômago, os olhos de algumas pareciam emanar névoa, mas ele sabia que não era uma indicação de que Johen apareceria.Dirigiam-se ao centro de Cinstrice, onde alguma iluminação escapava de construções distantes entre si, casas, lojas ou fábricas não tão abandonadas, chaminés lança
Sussurros circulavam ao redor, mas eram ingredientes pequenos demais em uma sopa cheia de quietude. Demorou para perceber que estava acordado, então ele sentiu. A tontura, deitado em um chão duro que parecia balançar. O gosto amargo, tomando o seu paladar e se unindo à sede que arranhava a garganta. Estava sedento como um animal de rua que não encontrava água há dias. O odor de esgoto o fazia querer vomitar as suas entranhas. Decidiu se levantar e o fez rápido demais, sua cabeça encontrou uma superfície sólida. Tateou no escuro e se descobriu confinado em um espaço cúbico, como uma grande caixa de madeira.— Endrick — gritou.Nenhuma resposta veio. Sua enxaqueca o fez cair de bunda. Onde ele estava? Após instantes refletindo no ocioso silêncio, esmurrou seu cubículo, mais por raiva do que na intenção de se libertar, desvendando o que teria de enfrentar por seus atos. Abriu um espaço entre as tábuas de madeira e saiu, apenas para se ver em uma cela. Correu e agarrou as barras de ferro,