Nico despertou duas horas após o anoitecer em um quarto separado apenas para ele. Reconhecia o local, havia um guarda-roupa com as laterais enegrecidas, manchas descendo como raízes causadas por uma goteira sobre o móvel. Dez anos atrás, o som da água de encontro à madeira o despertou de forma gradual. Johen o encontrara na madrugada e se abrigaram na estalagem durante a chuva, não sem antes se molharem, um lugar desconhecido que se tornou difícil de imaginar como tal nas atuais circunstâncias.Houve uma discussão com a senhora Mercstzine para que fossem aceitos, além de estarem encharcados, ela sabia que o homem não teria dinheiro para pagar por um quarto, quiçá por dois. A estalajadeira, porém, viu a criança e soube que ela ficaria doente, concedeu um quarto para ambos e disse que prepararia um chá para quando acordassem. O pequeno Nico jamais esqueceria o sabor daquela bebida, mas de alguma forma compreendia que o tinha salvado, pois a gripe não passou de poucas tosses e uma febre c
O crepitar de folhas mortas os acompanhou enquanto percorriam as vias da cidade, as calçadas ondeando sobre as raízes que cresciam em direção às casas e as copas das árvores batendo em janelas quebradas há muito tempo sem se preocuparem com tesouras para as podarem. Os postes a óleo não iluminavam mais, quem quer que corresse as ruas para acendê-los já estava muito distante, e alguns deles jaziam ao chão envergados, como se os tivessem manejado em uma feroz luta de espadas. Poucas pessoas caminhavam como eles, afastando-se rapidamente quando os avistavam; outras, Nico percebeu, não se incomodavam em desviar o olhar ou disfarçar a intenção de observá-los escondidas, mesmo que descobertas. Ele sentiu um frio no estômago, os olhos de algumas pareciam emanar névoa, mas ele sabia que não era uma indicação de que Johen apareceria.Dirigiam-se ao centro de Cinstrice, onde alguma iluminação escapava de construções distantes entre si, casas, lojas ou fábricas não tão abandonadas, chaminés lança
Sussurros circulavam ao redor, mas eram ingredientes pequenos demais em uma sopa cheia de quietude. Demorou para perceber que estava acordado, então ele sentiu. A tontura, deitado em um chão duro que parecia balançar. O gosto amargo, tomando o seu paladar e se unindo à sede que arranhava a garganta. Estava sedento como um animal de rua que não encontrava água há dias. O odor de esgoto o fazia querer vomitar as suas entranhas. Decidiu se levantar e o fez rápido demais, sua cabeça encontrou uma superfície sólida. Tateou no escuro e se descobriu confinado em um espaço cúbico, como uma grande caixa de madeira.— Endrick — gritou.Nenhuma resposta veio. Sua enxaqueca o fez cair de bunda. Onde ele estava? Após instantes refletindo no ocioso silêncio, esmurrou seu cubículo, mais por raiva do que na intenção de se libertar, desvendando o que teria de enfrentar por seus atos. Abriu um espaço entre as tábuas de madeira e saiu, apenas para se ver em uma cela. Correu e agarrou as barras de ferro,
Ocorreram as conversas mais importantes desde a chegada dos novatos, que permitiram conhecer mais dos indivíduos que ali viviam. Segundo o que diziam, vinham de lugares diversos e eram esses lugares que sabiam em que não estavam presos, pois o transporte levara dias. Nico percebeu que foi o único a dormir durante esse processo. Eram todos trabalhadores: ferreiros, açougueiros, carregadores, construtores, todo tipo de serviço que exigia um tipo elevado de força. Exceto Tadeus.— Eu era um Mestre da área da matemática — dizia ele, para o riso de alguns. — Uma noite eu dormi com a mulher do homem que eu gerenciava a fortuna e acordei a caminho desse buraco. Dois meses se passaram desde então, eles não compensaram minha leviana aventura.Vários duvidaram da capacidade dele. Victorstic deu outro depoimento após diversos prisioneiros.— Eu trabalhava em uma mina de ouro desativada em Ristivia, uma das que Wendevel levou tudo. Procurava sem descanso para melhorar a vida da minha família e aju
O cinza pintava a manhã com dedos mornos, a claridade invadia o refeitório pelas grandes janelas de vidro do Nono Pilar. As mesas se enchiam aos poucos de funcionários do palácio: Mestres e aprendizes, Senhores dos Livros e pesquisadores, mas não só eles; havia também os que se entregavam às funções mais simples, desde enumerar ou separar livros, como Millena, e quem era contratado para carregar incontáveis volumes que um leitor ávido, ou um pesquisador, fosse buscar. As vozes brandas, risos quietos e o som dos talheres davam início ao desjejum. As engrenagens voltavam a girar, o mundo funcionava novamente, ela adorava apreciar esse despertar todas as manhãs.Serviu-se como de costume. Não obstante os ovos estivessem demasiados oleosos e os nognoas passados do ponto, era uma refeição da qual poderia repetir. Sua mente aos poucos levava a imagem aterrorizante do seu sonho para longe, sumia da luz das suas ideias, como se batesse as asas para espantar o machado em formato de morcego. Com
A noção de loucura em atacar os guardas de Syafer se tornou em excitação quando o duelo mostrou sua face mais desafiadora: três contra um, exigindo triplicar sua atenção no que antes se acostumara a ter um único oponente. O primeiro foi surpreendido com o peso do seu golpe, segurando o cabo de forma displicente, por pouco a arma não escapou de suas mãos. Ao tentar retomar o controle, já era tarde, Millena atacou pela segunda vez, desarmando-o e botando-o para dormir ao acertar sua cabeça com a parte plana da espada.Os outros dois adversários não foram cavalheiros, nem ela terminava de abater aquele que a subestimara, atacavam com sangue nos olhos. Sua cabeça teria sido cortada ou seu peito, perfurado, se não se esquivasse do da direita e rolasse pelo chão durante a estocada do que vinha pela esquerda. Este permaneceu investindo com ânimo e dedicação crescente, como se derrotar uma garota fosse seu maior sonho de espadachim. Seu companheiro esperava sempre o momento certo para experime
— Acorde e diga quem é — uma voz baixa a puxou dos seus sonhos, tão mansa que soube que não foi o único modo de despertá-la. Viu que estava certa ao sentir sua cabeça sobre uma pedra e não mais Bervis.Uma lanterna a óleo era posta diante do seu rosto, dificultando a identificação da figura de quem a chamava. A ackamitzarin se sentou, sua mão buscando a espada de forma tola. A silhueta de Bervis surgiu de pé a uma curta distância, observando a situação. Acalmou-se, sabia que ele agiria se fosse atacada.O ar gélido da madrugada a fez se encolher e se envolver nos seus braços, o pensamento de estar indefesa tentou dominá-la, mas ela o expulsou. Ignorou seus batimentos ao se lembrar de Nerissia, Argus e Sirius. Teria que manter o foco na atual situação, sobreviver ao presente. A lanterna se afastou e ela discerniu um garoto de treze anos.— Diga quem é você antes que seja tarde — ordenou, sem alterar o tom.— Meu nome é Scarlia — disse Millena, aceitando que esse seria seu novo nome enqu
O ackaminoum não se encontrava no mesmo local. Millena olhou para cima, touros alados sobrevoavam baixo a cidade, mas nenhum deles era marrom como o seu amigo. Seu assobio agudo fez eco por Werimiton, tinha esperança de que ele escutasse, porém nenhum ruflar veio ao seu chamado. Viu-se obrigada a segurar as lágrimas, não podia se jogar sobre joelhos e esmurrar a areia como queria, precisava resolver o problema.— Lá — disse o taverneiro.O olhar de Millena seguiu para onde ele apontava. Centenas de metros à frente, uma confusão se iniciava. Pessoas corriam e gritavam ao mesmo tempo em que asas imensas derrubavam caixas e carroças, assustando cavalos que partiam em galope pelas ruas laterais, causando mais alvoroço. Bervis pulava e fazia círculos, tentando escapar de seu raptor, que era ocultado na poeira que subia. A ackamitzarin assobiou de novo e correu em direção à ele.Esbarrando em pessoas e tropeçando em destroços de madeira, ela chegou àquela cortina que obscurecia a luz do sol.