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Capítulo III: A noite conhece seu tempo

A cidade de Elisesile ficava ao leste de Ellefen, não muito distante. Poucas árvores margeavam o caminho, a vegetação rasteira era parca e as colinas escondiam perigos que poderiam se revelar quando a noite deixasse suas primeiras horas para trás. O pio de uma coruja lembrou Nico de que criaturas observavam nas sombras. A estrada que percorriam costumava estar movimentada a essa hora do dia com o retorno dos mercadores de Ellefen e de outros vilarejos da região. Estranhamente, isso não acontecia.

— Voltaram mais cedo por causa do tempo — disse Endrick, quando Nico perguntou.

O sol se pôs sem ser visto. Felizmente, Endrick não se esquecera da lamparina. As árvores se apresentavam na forma de silhuetas tortas e perdidas em meio a uma delicada cortina de névoa. O vento soprava, vindo de longe, das Montanhas Farynan ao norte de Ertiron. Vistas dali, as elevações eram mais negras que a noite, belas e sólidas, perseguindo-os imóveis. O atrito das rodas da carroça com o chão era o único som que os acompanhava na estrada, cortado poucas vezes por grasnados de pássaros e zumbidos de insetos.

Nico olhava para o céu e sentia a falta das estrelas. Costumava admirá-las e diferenciar as constelações. Em noites como essa, desejava estar sobre as nuvens, para avistar a beleza que escondiam. Um galope acelerado quebrou a ordem dos ruídos que os cercavam, alguém se aproximava rápido. O barulho ficava cada vez mais alto e, quando os alcançou, tudo que viram foi um borrão veloz passar por eles, seguindo na direção oposta.

— Isso foi um cavalo? — Perguntou Nico.

— Sim — respondeu Endrick.

— Quem correria com tanta pressa

— Ninguém.

— Como assim?

— A sela estava vazia.

— O que pode ter sido? Bandidos?

Endrick suspirou.

— Eu não sei, mas posso ver as luzes de Elisesile, logo estaremos retornando. Vamos torcer para não termos mais surpresas.

O cobertor do silêncio foi posto novamente, apenas trovões distantes se ouviam e a neblina se abria conforme avançavam. Um lampejo repentino fez da noite um dia até onde seus olhos podiam ver, revelando tudo que se escondia na escuridão e trazendo a figura de um homem caminhando na direção deles, o único elemento do cenário que prendeu a atenção de ambos. Quando a carroça se aproximou, o homem disse:

— Eu conheço essa carruagem — uma faixa escura encobria os seus olhos, ele inclinava a cabeça como se identificasse a carroça pelos ouvidos.

— E nós conhecemos esse andarilho solitário — disse Nico.

— Como está, Tarci? — Perguntou Endrick.

— Pronto para retornar para casa — saltou para a parte de trás, ficando de costas para eles.

As rédeas pararam nas mãos de Nico e o trajeto de volta a Ellefen se iniciou em um ritmo mais acelerado. Minutos se passaram e Tarci não disse nenhuma palavra para explicar a situação. Apesar da curiosidade, Nico concordou com Endrick em ficar quieto até chegar na estalagem, no entanto...

— Você gostaria de brincar um pouco, Endrick?

— Às vezes esqueço que você não teve infância — foi a resposta.

— Vamos brincar de adivinhar a razão que levou Tarci a Elisesile e o porquê de buscarmos ele antes do anoitecer?

— Dá um tempo.

— Mais? Eu vim com você, não foi? Tenho direito de saber.

— Eu disse para você ficar se quisesse — Endrick deu de ombros.

— Mas ele disse para nós dois irmos.

— Eu disse apenas Endrick — Tarci se pronunciou.

Nico resmungou.

— Acho melhor conversar com quem passa seus recados.

— E eu disse ao anoitecer.

— A noite chegou um pouco mais cedo. E como você sabe que já está de noite mesmo?

— A noite conhece seu tempo, Nico. Por que eu não conheceria também?

— Claro que conhece, mas qual o motivo de ser ao anoitecer? Não poderia ser às sete horas ou oito, é tudo noite.

— Duas razões — o vidente apontou o dedo para o céu — eu precisava de tempo e a outra...

Um relâmpago revelou as silhuetas das nuvens tempestuosas acima, o trovão estrondando com força como uma montanha de encontro a outra.

— Vocês podem ver. É melhor nos apressarmos.

— Claro — disse Nico. — Você explicou sua pressa ou a falta dela, agora só precisa dizer o que o levou até Elisesile.

— Este mesmo caminho.

— Seu senso de humor é fantástico. Então, Endrick, vamos brincar?

Endrick revirou os olhos, grato por Mercstzine não estar ali.

— Vê se fica quieto.

— Tudo bem — disse Tarci. — Vamos brincar, Nico, mas será de algo novo, vamos brincar de calar a boca até chegar em casa. O próximo que falar vai cair da carruagem.

Nico franziu a testa, irritado, mas não ousou abrir a boca para descobrir se a ameaça era verdadeira. Até chegar à estalagem, escutou-se apenas os sussurros inquietos do vento e as vozes das nuvens retumbando por todo o reino.

***

A chuva caiu quando se reuniram à mesa. Mercstzine recebeu Tarci com um tapa na cabeça e comentou sobre a sorte dos três não serem pegos pelo temporal, mas prometeu que teriam o seu chá à disposição no caso de um resfriado, o que os obrigou a torcer o nariz. A lenha crepitava na lareira em uníssono com as gotas de chuva que açoitavam a estalagem. Mercstzine fizera uma sopa de legumes para ajudar a espantar o frio, pelo que Nico era grato, apenas seus pés reclamavam de estarem congelando. Endrick se enganara ao pensar que tinha um par extra de botas, e os pés de Tarci eram menores do que os de Nico, a única solução foi continuar descalço.

Endrick apoiava o queixo na mão, ondeando a sopa com o talher de forma distraída, sequer cogitava tomar um pouco. Seus pensamentos estavam distantes, além do mar, porém permanecia ciente de tudo ao redor. Nico não o vira comer nada o dia inteiro, algo que notara outras vezes, contudo sabia que o amigo não era descuidado.

Havia um feixe de preocupação aceso nos olhos de Mercstzine, mas também um brilho de curiosidade. Seu olhar pousava constantemente no marido, cujo cabelo longo e grisalho encobria parte do rosto e dos ombros. Sombras projetadas em sua face o transformavam em alguém severo e cruel. Mesmo sem o peso do seu olhar de volta, qualquer pessoa se intimidaria ao encará-lo.

De uma forma ou de outra, todos esperavam que Tarci falasse sobre o que tinha visto no seu sonho e o que tinha sido feito em Elisesile, mas ele permanecia lacônico. Nem mesmo Nico resolveu perguntar dessa vez, o silêncio sentava com eles e era uma companhia desconcertante. Os trovões permaneciam fortes, as nuvens falavam entre si e ignoravam o resto do mundo. Quando uma voz enfim se ouviu, foi a de Mercstzine:

— Quer dizer então que vocês nem colocaram os pés em Elisesile?

— Não, senhora Mercstzine — respondeu Nico, girando o talher entre os dedos. — Tarci resolveu voltar mais cedo. Encontramos ele no caminho.

— Sério? Voltou mais cedo?

— Não, senhora Mercstzine — respondeu Endrick, largando o talher. — Nós estávamos atrasados e ele começou o caminho de volta, pois já havia anoitecido. Por isso o encontramos na estrada.

— Logo depois que um cavalo passou correndo por nós — disse Nico.

— Um cavalo?

— Sim, mas a sela estava vazia — Endrick limpou a garganta. — Vinha de Elisesile, correndo veloz nessa direção. Tarci certamente deve ter escutado o galope.

— Escutei.

— Vocês acham que foram bandidos? — perguntou Mercstzine, espantada. — Sinto pena pelo o que tenha acontecido a esse pobre homem, mas sou grata que nada tenha me tirado o meu Tarcísio.

— Obrigado, minha flor.

— Não foi nada, meu bem — Mercstzine sorriu.

— Os dois não comecem, por favor — Nico interrompeu antes que Tarci continuasse. — Não na nossa frente.

— É possível que tenha sido um ataque — disse Endrick —, há meses que não acontece por essa região.

Tarci balançou a cabeça em sinal de concordância.

— Quando o vento se aquieta, é melhor preparar a alma para quando ele voltar a soprar, pois pode trazer as dores que Ávaro carrega.

— Se já voltou a tagarelar, o que acha de falar sobre o que foi fazer naquela cidade? — Indagou Mercstzine. — Você saiu cedo pela manhã sem muitas explicações e só voltou agora, logo após um ataque! Não percebe a sorte que teve de o destino de outro homem não ter caído sobre você? E por qual razão?

— Eu sabia que a única coisa que poderia cair sobre mim era a chuva.

— Não me diga, Tarcísio. Sério? Mas se acontecesse algo mesmo assim? Já aconteceu certa vez.

Tarci abaixou a cabeça e suspirou. Seus braços envolviam seu corpo de forma estranha, Endrick suspeitava que escondia algo.

— Você está certa — disse. — Como sempre, aliás. Fui imprudente, mas o impulso que eu sentia... não podia ser ignorado.

— O que o sonho mostrou?

— Uma caixa azul.

Nico riu.

— Uma caixa? Que interessante.

— Deixe que continue — Endrick o repreendeu.

Tarci umedeceu os lábios antes de prosseguir.

— Eu tive visões assombrosas, vi pessoas morrendo. Vi o caminho que levava a Elisesile, essa caixa estaria lá. Foi me dito onde encontrá-la, eu vi o céu coberto de nuvens, o tempo limite para pegá-la era o primeiro trovão ao anoitecer. O impulso... Ele era tão forte que não sossegou até me levar para o local onde ela estaria.

— E onde era? — Perguntou Mercstzine.

Tarci hesitou.

— O que importa é que ela está comigo agora — retirou o que ocultava de forma discreta no interior das suas vestes: uma caixa retangular pouco menor que seu antebraço, com a largura da palma da sua mão e medida de três a quatro dedos da base à tampa.

— Nosso Criador, Tarci! — Exclamou Nico — Essa caixa é vermelha.

— C-como é?

Endrick controlou o riso. Mercstzine deu um tapa na cabeça de Nico.

— É uma caixa azul, Tarcísio. O que tem escrito na tampa dela?

— Eu não sei — Tarci apontou a caixa na direção da esposa. — Consegue ler?

— Estranho — ela semicerrou os olhos, tentando distinguir a letra entre os entalhes de flores. — Parece um “M”.

— Ou um “W” — sugeriu Nico.

Endrick concordou com a teoria de Mercstzine.

— O que significa?

— Eu só sei que não pode ser aberta — Tarci indicou a fechadura — Não há chave e nem penso em quebrá-la. Desconheço o que ela pode conter, mas vejo que é necessário guardá-la comigo. Por qual outra razão a veria nos meus sonhos?

Nico bocejou.

— É uma caixa bonita. Deve servir de decoração.

— Vou usar de decoração na sua cabeça, garoto, quando pensar em voltar a Cinstrice de novo — ralhou Mercstzine. — Mas, Tarcísio, você não tirou essa coisa de ninguém, certo?

— Não se preocupe, meu bem — respondeu ele, voltando a guardar o objeto — Por falar na Arena, como foi sua noite, Nico? Venceu Abnor?

— Não exatamente...

Tarci balançou a cabeça.

— Todo mundo perde às vezes. Claro que Abnor nunca foi derrotado na Arena, mas qualquer pessoa que não seja ele já perdeu.

— É, obrigado pelas palavras.

— De nada. Veja, vencer não é tudo, rapaz. Aprendizados maiores se ganham perdendo, sei o que digo.

Nico coçou a cabeça.

— Não sei se concordo com isso, mas obrigado de novo. Eu consigo na próxima.

— Você quer ir à Arena mais uma vez? — Perguntou Mercstzine, irritando-se de verdade. — Não acha que está na hora de parar?

— Não... — disse após um breve silêncio. — Não quero parar.

— Você quer se matar? Não está vendo? Endrick, já chega...

— Não é Endrick quem pode escolher por mim, nem ninguém. Eu quero. Eu vou. Vencerei Abnor, a senhora verá.

— Por quê? Por que esse desejo de se provar? E para quem?

Nico balançou a cabeça.

— Ninguém, senhora Mercstzine.

— Ele não está mais nesse mundo — espalmou as mãos sobre a mesa, erguendo-se —, não faz parte da sua vida, não consegue esquecer?

— Isso não tem nada a ver com ele.

— Eu o proíbo de pisar em Nider Cinstrice novamente!

— A senhora não pode fazer isso.

Mercstzine bateu na mesa.

— Enquanto dormir aqui, eu posso!

— Esse é o problema? — Nico se levantou. — Posso ir embora agora mesmo.

— Fique no seu lugar, Nico — pediu Endrick.

— Eu não...

— Escutem — Tarci chamou. — Alguém b**e à porta.

Batidas fortes soaram, como se não fosse a primeira ou terceira vez que alguém tentasse ser ouvido. A chuva havia diminuído, encerrando-se como a conversa deles, com pingos indicando que havia mais por vir.

— Isso não acabou — disse Mercstzine, saindo da cozinha.

Endrick lançou um olhar para Nico e a acompanhou até a porta. Quando Mercstzine a abriu, um corpo desabou sobre o tapete.

— Nosso Criador!

Um homem adentrou a estalagem, austero e frio, seu olhar de encontro ao de Mercstzine.

— Temos um abrigo aqui esta noite?

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