Manhãs que começavam sem a voz de Mercstzine reverberando pela estalagem eram motivo de preocupação, coisas boas não vinham quando ela ficava muito pensativa. Seu marido diria que o silêncio dela machucava mais do que as palavras, porém o que ela fazia bastante desde que Endrick e Nico praticamente foram morar lá era falar.
— Essa foi a terceira vez que vocês se arriscaram em vão até Cinstrice — começou ela, ao ver Endrick entrar na cozinha. — Você ensinou esse garoto direito?
— Não se pode ganhar todas — disse ele, a voz branda.
Ela largou a faca com a qual cortava suas verduras e olhou para ele.
— Também não se pode perder todas. Vocês precisam pagar por ficarem aqui. Os cobradores de impostos não serão tolerantes comigo da mesma forma que eu sou com vocês.
— Sabemos disso. Não queremos abusar da sua paciência, mas precisamos de mais tempo.
Mercstzine assentiu e cruzou os braços.
— Você acha certo?
— O quê?
— Acha certo ficar levando o garoto para aquele lugar?
Uma espécie de culpa passou como vento por Endrick.
— Não, senhora Mercstzine. Mas ele irá de qualquer forma se eu tentar impedi-lo, é o que ele quer. O mais seguro é que eu o acompanhe.
— Você fica incentivando ele que eu sei! — Mercstzine elevou a voz.
— Não, eu só tento ajudá-lo.
— Acho que ele apanharia muito bem sem a sua ajuda.
Endrick revirou os olhos.
— O que foi isso? — Perguntou ela, retomando a faca.
— Nada — Endrick forçou um bocejo. — Só estou com sono.
— Como eu havia pensado — voltou às verduras.
— Ontem eu vi a vitória, sabe? — sentou-se à mesa. — Esteve próxima.
— Imagina como o garoto está se sentindo, era ele quem estava sob a luz do Lustre. E perdeu mais uma vez.
— Eu sei bem como é — disse Endrick, pensativo.
Mercstzine balançou a cabeça.
— Não sabe. Você era um campeão, Endrick. Nico é um iludido por pensar que pode vencer o novo ídolo da Arena. Ele deveria voltar para os pequenos torneios de Cadisce que o velho Johen o levava.
Apesar das suas palavras, Endrick sabia que ela não pretendia ser cruel.
— Eu acredito que ele pode, senhora Mercstzine.
— Meus ossos doem... — disse Nico, entrando no aposento.
O olhar de Mercstzine pousou sobre ele.
— O seu chá está aguardando.
— Dispenso, obrigado — sentou-se sobre a mesa e tentou massagear os próprios ombros.
— Onde você aprendeu esses modos, garoto?
Ao ver a mulher da casa empunhando uma faca, não levou dois segundos para puxar uma cadeira e se sentar.
— Eu não percebi — desculpou-se com um sorrisinho.
— Assim está melhor — jogou os últimos ingredientes na panela em que preparava o caldo para vender na feira de Ellefen, o cheiro que se espalhava pela estalagem era delicioso. O sabor explicava ainda mais o porquê vendia tanto, mas as moedas ganhas não eram suficientes para pagar os impostos que aumentavam a cada semana.
— O que aconteceu com as minhas botas, Endrick? — perguntou Nico, que nunca deixava uma questão de lado.
— Eu tenho outro par lá em cima, depois você pega.
A Casa Mercstzine era dividida em duas partes. A parte superior possuía oito quartos distribuídos em dois corredores estreitos, servia unicamente para os hóspedes; enquanto a parte térrea era onde viviam os proprietários, sendo usada pelos hóspedes apenas com permissão e para o que não podia ser feito em cima, como a alimentação. Essa forma de divisão foi criada pelos antigos Mercstzine, pois gostavam de conviver o menor tempo possível com estranhos.
Nico resmungou.
— Mas eu quero as minhas.
— Não posso fazer muita coisa — Endrick deu de ombros. — Onde está Tarci?
— Olha se está escondido nas minhas botas.
Endrick não evitou um sorriso.
— Perguntei a ela.
O semblante de Mercstzine ficou sério.
— Ele teve um sonho — disse, sem olhar para eles.
— Contou o que viu?
— Falou apenas que iria até Elisesile e que vocês deveriam buscá-lo ao anoitecer.
— Só disse isso?
Ela assentiu.
— Se é o que ele quer, então faremos.
— O que acha que ele foi fazer? — Perguntou Nico, arrancando um pedaço dos pães sobre a mesa e enchendo a boca.
— Não faço ideia — respondeu Endrick. — Vamos ter que descobrir mais tarde.
— Espero que sim.
— Por ora, não acha melhor descansar? Você está quebrado.
— Estou mesmo — gemeu —, mas não estou com sono.
— Claro que não, doido. Dormiu...
— Eu não sou doido!
— Dormiu o caminho todo.
— Só na volta — Nico ergueu o indicador.
— O que estou querendo dizer é que você precisa deixar seu corpo se curar depois daquela luta.
— Não estou ferido, Endrick. Só estou com dor.
— Nosso Criador, Nico! Quer se tornar o velho Johen?
Mercstzine bateu com força a xícara na mesa, fazendo parte do chá saltar para fora. Emanava dele um aroma levemente adocicado que todos gostavam, mas ninguém queria sentir o sabor invadir a boca. O chá de Mercstzine, como diria Tarci pelas costas da esposa, tinha gosto de agonia. Nico decidiu ignorar a bebida alaranjada de gosto duvidoso à sua frente.
— Já está morno. Pode tomar.
Olhou os olhos daquela mulher, que mais lembravam o céu sereno de uma tarde quente. Adorava encará-los, mesmo que por um curto momento, pois sabia que apanharia se o fizesse por muito tempo. Ela usava um vestido azul florido, as cores estavam mortas se comparadas aos seus olhos. Um avental que talvez outrora tivesse sido branco envolvia sua cintura de medidas largas que poucos podiam abraçar. Seu cabelo liso com mechas grisalhas estava preso em um coque desajeitado, porém não aparentava ser problema. Como o esteio de todos ali, tinha assuntos mais relevantes para se preocupar.
— Me obrigue — Nico afastou a xícara.
— Vira isso na boca de uma vez — mandou Mercstzine, colocando o bule sobre a mesa e retornando a mexer o caldo no caldeirão, o vapor deixando seu rosto suado.
— Também não começa com isso de Johen — disse Nico. — Não quero ser cópia de ninguém.
— Mas é o que está parecendo — insistiu Endrick.
— Mas não é — bateu na mesa com a palma da mão.
— Então para de teimosia e bebe logo esse chá — ordenou Mercstzine. — Não quero escutar mais batidas na minha mesa!
— Só se Endrick devolver as minhas botas.
— Estaria com elas se tivesse vencido — Endrick se levantou.
— Mas você viu como cheguei perto? — perguntou, sorrindo.
— Claro que vi. Também assisti a bela surra do final, não se esqueça.
— Não acha que fui bem?
— Pode melhorar até que vença. Eu vou subir, pois sei que preciso descansar.
— Concordo, grande Vanmorrênio.
Endrick deu um tapa na cabeça dele.
— Não me chame assim. Sabe que não gosto.
— Precisava mesmo? — Nico gemeu.
— Bebe o seu chá, doido.
— Eu não...
— Quer comer algo? — Perguntou Mercstzine.
— Não, obrigado — Endrick se retirou.
— Eu aceito — disse Nico.
Mercstzine pôs a colher de pau diante dos seus olhos.
— Você pode tomar o seu chá.
— Não estou doente.
— Servirá para suas dores, verá que vai deixá-lo mais forte.
— Acho que já estou um pouco melhor, não precisa. Aliás, bebi uma vez e não vi diferença.
Mercstzine suspirou.
— Quando eu terminar aqui, você vai beber o seu chá e depois vai me ajudar em umas coisas.
— Eu não vou beber isso.
— Você acha certo? — Ela cruzou os braços.
— Claro.
— Estou falando de continuar indo até Nider Cinstrice. Se arriscando para ser humilhado naquele lugar. Saindo de onde é seguro para onde é conturbado. Você acha certo?
Nico assentiu.
— Como eu disse, claro.
Lembrou-se de ter escutado palavras parecidas, vindas de alguém que só queria feri-lo. Não era uma pessoa como Mercstzine, sempre preocupada com o seu bem estar, mas alguém amargo e cruel que Nico desejou nunca ter encontrado. O homem mordido três vezes pelo lobo.
***
Como esperado, Nico não tomou o chá, embora Mercstzine quase tenha perdido a paciência e feito ele engolir a bebida com xícara e tudo. Ela foi piedosa, mas o obrigou a ficar na sua tenda enquanto fazia uma limpeza na estalagem. Não se passara muito tempo desde a última vez, mas montes de teias de aranha surgiam de um dia para o outro, acompanhadas de um pó acinzentado que se acumulava sobre os antigos móveis da família, os quais exibiam um ar suntuoso em meio àquele cenário humilde.
Apesar do cheiro deliciosamente chamativo, o caldo de Mercstzine não dava sinais de que faria uma boa venda naquela manhã, porém até o meio-dia e o fim da paciência de Nico, o fundo da panela foi ficando visível sem muito esforço e uma bolsinha ganhou o peso a mais de algumas moedas. O pouco que era muito quando se tinha quase nada. Nico retornou à estalagem e encontrou Mercstzine na cozinha. Terminara a limpeza e colocava uma panela sobre o fogo enquanto falava consigo mesma.
— Só pode estar louco. Perdeu os olhos e agora a cabeça...
Se ficou surpresa ao notar que Nico escutara, não demonstrou. Virou-se para ele e perguntou:
— Como foi?
Nico pôs a panela vazia sobre a mesa.
— Alison Anders causou problemas de novo, mas... — Tirou a bolsinha que estava presa em seu cinto e jogou para Mercstzine, que a aparou no ar — eu diria que não foi tão ruim.
— Eu diria o mesmo — ela sorriu.
Monotonia foi o sinônimo do resto do dia. O vento estagnou e as copas das árvores posaram de estátuas. O contrário ocorria com as nuvens, indecisas entre se unirem e caírem como chuva ou seguirem seu curso adiante no oceano celeste. Nico torcia pelo primeiro. O rapaz se sentia muito melhor em relação ao seu corpo, mas sua mente continuava trazendo a noite anterior aos seus olhos, como se fossem fantasmas sombrios que insistiam em persegui-lo. Vozes se agarravam aos seus ouvidos e ecoavam sussurros de gritos dirigidos ao Cerco, a plateia da Arena comemorava sua derrota.
Rostos distorcidos lentamente se tornavam pinturas a serem colocadas nas paredes da sua memória. O mais atormentador entre as estranhas faces que surgiam era um rosto que ele conhecia. Nico vira Johen sorrindo para ele, o mesmo sorriso torto de desdém que sempre tivera. Essa única pintura estava terminada.
— Evite ficar pensando nessas coisas — Mercstzine o pegou distraído durante o almoço. — Apenas aproveite a minha comida.
— Sim, senhora — ele sorriu. O dia pareceu ficar bem melhor após isso.
Quando terminaram e lavaram a louça, Mercstzine se recolheu em seu quarto para ter seu merecido descanso e Nico ficou na sala de estar, olhando pela milésima vez os retratos da família Mercstzine. Era espantador como sempre conseguiam causar um tipo diferente de estranheza. Alguns olhares estreitos davam a impressão de que não o queriam ali. Outros, cujos olhos quase saltavam das órbitas, demonstravam surpresa por ainda o verem ali. Os Mercstzine podiam ter lábios grossos ou finos, serem pálidos como cadáveres ou vermelhos como brasa, mas existia um traço em comum em todos, notável também na atual dona da estalagem.
— Bochechudos — disse, tendo a impressão de que as feições se tornaram mais ameaçadoras.
O tempo caminhava com passos de formigas. Nico desejava uma lupa e um pouco de sol naquela tarde maçante para fazê-lo andar mais depressa. Queria que o próximo dia viesse sem demora, que fosse embora tão rápido quanto tivesse chegado e os seguintes mantivessem o mesmo ritmo até formar uma nova semana. Ele esperava retornar à Arena e mostrar a todos que podia derrotar Abnor, sabia que conseguiria se tivesse mais uma chance. Era mais tentador ficar pensando nisso do que na sua última derrota.
O Lustre de Ferro ainda balançava sobre sua cabeça, podia ver, mas ao mesmo tempo sabia que ele permanecia imóvel. Era seu corpo que girava com um abraço apertado, roubando seu ar. Sem peso, voava antes de cair em um sonho macio. Decidiu que essa sensação de ser abatido morreria para sempre, não mais se repetiria. Quando se cansou de imaginar como as sobrancelhas do senhor Alho Mercstzine cresceram de forma tão peculiar, Nico decidiu subir para o seu quarto, sentir as velhas escadas rangendo sob seus pés descalços não podia ser mais desagradável.
Um ronco baixo o recebeu quando abriu a porta. O aposento estava escuro, as cortinas cobriam as janelas e as teias de aranha que pendiam do teto se moviam com o passar de um vento suave. Mercstzine não passou pelo quarto, pois Endrick dormia. Ele estava ao chão sobre os cobertores de um lado da cama, não se levantou desde que se despediu na cozinha. Nico se sentiu um pouco idiota por não ter seguido o exemplo, talvez dormir realmente fosse o melhor.
Fechou a porta atrás de si, o habitual ranger quase inaudível. Ignorando a poeira que se agarrava aos seus pés, andou até o lado oposto em que Endrick dormia e se deitou sobre os seus cobertores, que também estavam no chão. Era o que Mercstzine chamava de “A mais completa asneira!”. Os dois dormiam no chão para não dividirem a cama estreita ou alugarem outro quarto. Claro que um deles poderia ficar com a cama, contudo discordavam. Sempre diziam “Meu conforto não é mais valioso do que o dele”. Mercstzine sempre respondia “Asnos!”. Lembrar dessas palavras trouxe um sorriso.
Olhou para o teto e as teias que balançavam com cadência lenta e indefinida. Pensou mais uma vez sobre o sonho de Tarci, tentando imaginar a razão dele ir até Elisesile e retornar apenas ao anoitecer. Ele era um vidente, seus sonhos mostravam visões misteriosas, fragmentos do futuro. Tarci era considerado louco pelos habitantes de Ellefen. Nico tinha o mesmo pensamento até bem recentemente, dois meses atrás, quando começou a morar na Casa Mercstzine. Contudo, mudou de ideia após histórias contadas por Mercstzine e uma breve demonstração:
— Ei, garoto — Tarci chamara. — Ele vai estar com o ombro ferido, o direito, eu acho...
— Ah, obrigado — respondeu, franzindo o cenho.
Nico teria sua primeira luta na Arena. E sim, o oponente estava com o ombro direito machucado, uma informação bastante útil para sua primeira vitória em Cinstrice. Desde então, Tarci não teve mais visões. Nico estava ansioso para ir a Elisesile e ver o que descobriria. Cruzou os braços e permaneceu olhando para cima, acordaria Endrick quando visse a noite se aproximar.
Uma voz rompeu o silêncio do quarto.
— Não pega fogo de novo — resmungou Endrick.
— Como é? — Perguntou Nico, olhando por debaixo da cama.
Escutou-se algo indistinto e Endrick se virou para a parede, roncando. Não era raro que falasse dormindo, Nico se acostumara após algumas semanas. Às vezes, acontecia uma breve conversa, da qual Endrick dizia não se lembrar quando acordava e tampouco acreditava que falava dormindo.
— O que não pode pegar fogo, Vanmorrênio? — Nico fitou o teto novamente, com um sorrisinho.
Permaneceu calado enquanto esperava uma resposta, que talvez viesse acompanhada de um tapa. A única coisa que veio foi o sono que o derrotou sem se revelar como oponente e foi embora batendo a porta com força para que o acordasse. Nico imediatamente olhou para o outro lado da cama e se colocou de pé quando percebeu que era Endrick que saía.
Realmente não esperava ter adormecido, sua noção de tempo se desfez, não sabia se horas ou minutos haviam se passado e ficou tonto por se levantar muito rápido. Apesar do frio, suor escorria pela sua testa. Nico enxugou o rosto e caminhou até a janela, afastando a cortina para olhar a rua. A tarde se encerrava, o céu estava escuro e sem crepúsculo, devido às nuvens que decidiram se unir afinal. Sem perder mais um segundo, pegou uma capa e saiu correndo do quarto, descendo as escadas três degraus por vez até a porta. Encontrou Endrick com a carroça pronta, as mãos nas rédeas, quase saindo.
— Você não estava dormindo? — Perguntou ele.
— Eu acho que sim.
— Você quer ir?
— Ele disse para nós dois irmos.
— Você pode ficar se quiser.
— Eu posso?
Endrick deu de ombros.
— Você quer que eu vá?
— A menos que você queira ficar.
— Mas eu quero ir — disse Nico, subindo e encerrando o assunto.
Endrick fez Lino andar e seguiram em frente, sob um céu que prometia chuva e uma noite que caía.
A cidade de Elisesile ficava ao leste de Ellefen, não muito distante. Poucas árvores margeavam o caminho, a vegetação rasteira era parca e as colinas escondiam perigos que poderiam se revelar quando a noite deixasse suas primeiras horas para trás. O pio de uma coruja lembrou Nico de que criaturas observavam nas sombras. A estrada que percorriam costumava estar movimentada a essa hora do dia com o retorno dos mercadores de Ellefen e de outros vilarejos da região. Estranhamente, isso não acontecia.— Voltaram mais cedo por causa do tempo — disse Endrick, quando Nico perguntou.O sol se pôs sem ser visto. Felizmente, Endrick não se esquecera da lamparina. As árvores se apresentavam na forma de silhuetas tortas e perdidas em meio a uma delicada cortina de névoa. O vento soprava, vindo de longe, das Montanhas Farynan ao norte de Ertiron. Vistas dali, as elevações eram mais negras que a noite, belas e sólidas, perseguindo-os imóveis. O atrito das rodas da carroça com o chão era o único som q
Não foi dita uma palavra desde que se sentara. Apenas suspiros de descontentamento e o incessante som de pena riscando papel circulavam o aposento, que possuía a doce essência das ervas-séias de Ciusimur. Os olhos verdes e incisivos de um gato preto a encaravam, sacolejava a cauda de forma lenta deitado sobre uma caminha almofadada de veludo azul. Se bem escutara, chamava-se Calaithto. Nome do primeiro Eldenzor que se sentara no trono de Wendevel há quinhentos anos. Uma simples forma de homenagear a família real, até o mais tolo poderia ver, entretanto olhares diferentes poderiam ver o ato como um insulto. Ela não dava importância para isso, Calaithto era um nome bonito para um belo felino. O gato deu uma piscadela, como se apreciasse seus pensamentos.Millena nunca estivera no Palácio Lirnansio do lorde Syafer de Lirnans, mas a sua grandiosidade e reputação construída ao longo dos séculos a levaram a crer que existisse algo de fato acolhedor por trás de seus muros. Em parte, estava ce
O chão do refeitório estava engordurado próximo à mesa de onde encontraram as crianças. Ela não saberia dizer se os restos de comida era o que restara de um porco ou de um frango, nem perdeu tempo pensando nisso. As crianças acenaram ao vê-la, quanta audácia de agirem naturalmente após terem feito o que fizeram. Mesmo irritada, ela retribuiu e riu das bochechas delas, lambuzadas de molho vermelho que torceu para que não saísse com facilidade.— Aí estão seus alunos, Mestre Armoni — virou-se para o Mestre de Ensinos. — Não os perca de vista novamente.— Peço desculpas, senhorita Leviance, em nome da Academia de Venelvor.Drafindel e os gêmeos riram da cara do homem, Diarne se retirou com um suspiro, dizendo que faria umas anotações. Millena se despediu, abraçou Drafindel e os irmãos e continuou seu trajeto.— Praguinhas famintas — sussurrou ao olhar para a mesa novamente. Esperava que levassem um sermão.Chegando ao balcão de pedra da cozinha, o cheiro dos assados a deixou com água na b
As engrenagens giravam no interior da caixinha de madeira, resultando em música e um leve tremor sobre o seu peito. O compasso criado junto aos seus batimentos acalmava, o toque melancólico ordenava para que fechasse os olhos. Ela era teimosa, observava o dossel da cama, vagueando em pensamentos criados por uma trilha sonora de toques mecânicos. Havia um casal que girava à medida que a melodia progredia, de início curvados, mas vagarosos se erguiam em uma dança. Agora estavam perdidos em algum lugar distante, assim como muitas coisas da sua infância. Coisas que envolviam a sua memória.O dossel caiu sobre seus olhos e as cortinas a envolveram tão subitamente quanto a caixinha que se fechou e deixou de tocar. Millena estava em Nivins, a ilha. Sabia que estava, poderia ser diferente? Tinha mais uma vez cinco anos, era óbvio. Qual pessoa não saberia a própria idade? Sentia-se bem e olhava o oceano, não havia praia. Pisava nas pedras descalça sem se incomodar. Estava livre, o vento forte e
— Meu nome é Alec — respondeu, após Endrick perguntar pela segunda vez.Sentava-se em uma cadeira próxima a lareira, assistia a lenha sendo abraçada pelas chamas e se transformando aos poucos em um resquício distante do que era. Ele recusara comida ou roupas secas, apenas quis ficar perto do fogo. Uma fina linha de sangue escorria do canto da sua boca, mas Mercstzine não o convenceu a deixá-la cuidar do ferimento. Apenas isso maculava o rosto pálido de Alec, porém ele estava mais ferido do que aparentava. Mancava um pouco com a perna esquerda, Nico serviu de apoio para carregá-lo até onde estava, e mantinha a mão colada ao lado do corpo. Se tivesse a sorte que Endrick acreditava, talvez nenhuma costela estivesse quebrada. Seu cabelo negro caía sobre seus olhos cinzentos e pensativos.Ele não devia ser muito mais velho que Nico, cuja altura era a mesma. Tinha uma voz grave, possuía um certo ritmo ao pronunciar as palavras. Um sotaque que ninguém reconhecia ou apenas uma maneira própria
Era um sonho antigo e recorrente. Se eram lembranças do seu passado esquecido, ele não sabia, no entanto o sonho nunca estivera tão nítido quanto naquele momento. Sentia tudo de forma concreta, era ele, uma criança entregue aos soluços do seu pranto. Nico duvidava que sua mente fosse capaz de criar uma ilusão tão perfeita em seu subconsciente, porém relutava em acreditar que realmente era uma cena ocorrida no seu passado.O aperto no peito era intenso e doloroso, não havia nada que pudesse ser feito. O medo, Nico pensou pela primeira vez em como o medo podia deixar alguém sem uma fração de si. As lágrimas enchiam os olhos e percorriam o curto caminho da sua face como um rio cristalino em direção aos seus lábios, o sofrimento era salgado. Veio então o nome pela primeira vez.De tantos sonhos confusos e indistintos, esse foi o único que permitiu relembrar o nome do garoto que morria: Leone. Um nome que achou bonito. Agora era tão óbvio que Nico se perguntou como não conseguiu se lembrar
Nico mordiscava os pães, comumente ignorando o chá de Mercstzine servido a sua frente. Estava pensativo e pouco à vontade diante dos outros. O sonho com Leone, a aparição de Johen, seguido do roubo da misteriosa caixa de Tarci, que ele provavelmente roubara primeiro, foram tantos acontecimentos antes que o dia começasse que sua mente o fazia crer que nem tudo havia acontecido mesmo. Em especial a parte de quase ter sido morto. A adaga voava em sua direção, o tempo ganhou diferentes engrenagens e ele se via incapaz de fazer o simples ato de piscar. Porém o giro do cabo e da lâmina não terminaria como qualquer pessoa pudesse prever, o vento veio e mudou tudo.Endrick se recusou a falar sobre o que fez. No entanto, Nico sabia que uma hora ele atenderia a obrigação de conversar sobre o assunto. Embora o amigo contasse bastante sobre sua vida, reconhecia que inúmeros segredos eram guardados, mas magia estava longe de qualquer suspeita. Isso o levava a criar muitos questionamentos; se Endric
O dia amanheceu tão claro que Millena pensou que o sol batia na janela do seu quarto. O relógio marcava seis e meia, relativamente tarde para o que estava acostumada a levantar. Surpresa, notou que não havia sonhado, nem se esforçando conseguiu trazer algum vestígio. Ficou grata, mas o seu corpo estava dolorido por causa do passeio aéreo do dia anterior com Nerissia. Perderam a noção do tempo planando e fazendo as manobras que os ackaminoums permitiam. Quando pousaram, sua amiga levou broncas de Dinah na cozinha e teve que carregar caixotes e descascar legumes o dia inteiro. Enquanto a Millena, recebeu muito mais volumes para separar do que esperava sua estimativa mais pessimista.Suas nádegas deviam estar marcadas até agora, pois ficara sentada até tarde da noite, levantando-se apenas para o indispensável. Podia ser atrasada, mas se orgulhava de não poderem dizer que não era dedicada. Não tivera absolutamente nenhuma chance de contar a Sirius sobre suas visões, o temor angustiante de