O crepúsculo morreu aos poucos em suas cores vermelhas. Pôs-se o sol novamente, escondendo-se em um horizonte invisível após o mar. Erensiel, com suas grandes asas deslizando pelo céu noturno, sobrevoava um manto de ondas escuras e pacíficas, logo deixadas para trás ao atravessarem a paisagem de uma praia vazia. Eram as terras de um continente marcado, suas cicatrizes ganhavam forma à medida que avançavam. Os rochedos e depressões simbolizavam sua força, pequenos riachos lembravam o sangue que foi e ainda era derramado. O céu repleto de estrelas, adornado com o sorriso de uma lua minguante, era o reflexo de que ainda havia esperança sobre aquele mundo.
O voo castigava o rosto cansado de Morgan. Um ardor crescia em seus olhos e seus cabelos negros esvoaçavam com força, sentia um frio incômodo nas orelhas e o vento sussurrava algo incompreensível. Um forte calafrio percorreu seu corpo, consideraria isso um aviso na suspeita noite que o cobria.
Erensiel avistou o acampamento e pousou na parte mais distante, como de costume, onde ninguém pudesse ouvi-los. O feiticeiro encontrou o apoio no flanco do animal e desceu.
— Obrigado mais uma vez, amigo — afagou as penas vermelhas do infistri, um ancião para os da sua espécie. — Talvez seja melhor não se distanciar muito esta noite.
Erensiel assentiu com uma mesura e voou, desaparecendo na escuridão acima. Morgan ajustou sua túnica e andou em direção às cabanas. Carregava uma bolsa ao lado do corpo, pesando sobre o seu ombro direito. Sentia-se meio tonto, não importava quantas vezes tivesse voado no dorso de um infistri, essa sensação sempre o acompanhava. De certa forma, tornara-se prazerosa.
Vigiou o caminho entre as tendas, uma fogueira crepitava não muito distante, onde pessoas se reuniam ao redor, distraídas demais para notá-lo. Andou alguns metros e adentrou nas sombras de uma cabana. Uma lamparina iluminava o lugar, caixas vazias se empilhavam em um canto, trapos e roupas sujas estavam jogadas pelo chão. Havia um jarro de barro sobre uma mesa, onde pão mofado se via ao lado de queijo apodrecido. Ratos correram pelo chão, incomodados com o invasor.
Não foi a bagunça, entretanto, que o deixou preocupado, mas o silêncio. Onde eles estavam? Girou o pingente triangular da sua pulseira, um hábito que adquirira recentemente, e olhou ao redor para ter certeza de que não pretendiam assustá-lo com outra de suas brincadeiras, contudo realmente não estavam ali. Começava a pensar em inúmeras possibilidades quando a cortina de entrada se abriu e um garoto esbarrou nele, por pouco não o derrubando.
— Nico — Morgan o segurou pelos ombros.
— Você — o garoto ofegava, assustado, teve que apertar os olhos para reconhecer o homem na escuridão. — Por que demorou tanto para voltar? Você abandonou a gente!
Seu olhar era acusador.
— Não, garoto, eu... Estive ocupado.
— Também estivemos ocupados — ele escapou do toque do feiticeiro e foi até o jarro, enchendo uma caneca e bebendo toda a água de uma vez.
— Onde está Leone?
O garoto desviou o olhar e se afastou.
— Onde está o seu irmão, Nico? — Morgan repetiu, andando até ele. — Por que você não responde?
— Porque você prometeu cuidar da gente — encarou o homem como se o desafiasse a desmenti-lo, seu tom agressivo apesar das lágrimas escorrendo pelo seu rosto. — Foram duas semanas e nada de você. Você não veio!
— O que aconteceu?
— Ele pegou. A doença, Morgan, ele pegou. Eu não queria, mas... A culpa é minha. Toda minha!
— Não... — Preocupação e medo o invadiram. — Não, não pode ser. Onde ele está?
Nico encheu a caneca de novo, mal sustentando-a em suas mãos trêmulas. O feiticeiro segurou o objeto antes que se derramasse.
— Onde está o seu irmão?
— N-na tenda. No curandeiro, Litier está cuidando dele. Preciso levar isso. Por favor, você pode ajudar, vem.
Apressado, Nico o guiou em silêncio até a tenda do curandeiro. O pequeno Leone se encontrava iluminado pela luz de uma vela, deitado sobre um catre de madeira e colchões finos. Litier apertava um pano molhado contra sua testa, mas não havia esperança em seu rosto, como se aquilo tivesse mais intuito de confortar o irmão que assistia do que o que estava enfermo.
— Quem é você?
— Um amigo — respondeu Nico. — Ele pode ajudar, ele veio aqui para isso.
Litier olhou para o homem sem parecer convencido, deu de ombros e indicou para que ele trouxesse a água.
— É preciso fazê-lo beber — explicou. — A febre o faz suar como o solstício mais quente em Aracl, ele não desperta para comer ou beber há três dias. Se a doença não o matar por seus próprios meios, a desidratação o fará.
Enquanto o curandeiro fazia Leone tomar o líquido, Morgan sentiu a pulsação do garoto.
— Desculpa — pediu Nico, mas os soluços do seu choro o silenciaram por um momento. Era incapaz de olhar o irmão daquela forma, cada vez que o fazia, sentia-se mais culpado e desejava estar em seu lugar.
O feiticeiro se afastou e virou as costas. Não havia o que ser feito, aquela vida não resistiria uma última noite. Não naquele lugar.
— Morgan — Nico conseguiu chamar. — Por favor, não deixe o Leone morrer.
O garoto segurou sua mão.
— Perdoe-me — respondeu. — Aqui eu não tenho o necessário.
— Você prometeu — suplicou.
Olhou os olhos da criança e sentiu sua dor, conhecia aquele medo, pois já esteve em seu lugar. A angústia trazia sentimentos desconhecidos que deveriam permanecer ocultos em cavernas intocáveis. Ninguém merecia a sensação de ser destituído de quem amava. Perder-se ao perder alguém era se encontrar distante de qualquer felicidade, alguém tão pequeno não precisava passar por isso. O pingente no seu pulso voltou a coçar como na primeira noite em que o usou, uma decisão seria tomada. E ele a manteria até o fim.
— Se você ainda acredita em mim, faço então uma nova promessa — apertou a mão dele para demonstrar sua convicção. — Seu irmão vai sarar, verá que ele vai viver mais de cem anos. Eu prometo a você.
Um sorriso se esboçou nos lábios de Nico, contudo havia uma dúvida em seus olhos, que se manifestou na voz do curandeiro.
— O que vai fazer?
— Vou levá-lo — Morgan pegou Leone em seus braços.
— O quê? Para onde?
Com o garoto no colo, deixou a tenda sem dar uma resposta. A lua fora encoberta por nuvens negras, um leve prateado surgia como uma moldura em torno delas. Não era um bom presságio o único sorriso da noite ter desaparecido. Sem esperar mais nada, gritou:
— Venha a mim, Erensiel!
O infistri ressurgiu de imediato, pousando em sua frente, indiferente aos gritos das pessoas ao redor do acampamento. O feiticeiro não ligava mais para isso, pôs o garoto na base do pescoço da grande ave e montou logo em seguida, verificando os apoios para que não se soltassem no ar e despencassem para a morte certa. Antes que pudesse partir, porém, alguém puxou sua túnica.
— Me deixe ir também — pediu Nico.
— O quê? Não, não há espaço. Mesmo se houvesse, Erensiel não tem mais o vigor da juventude.
— Tente me impedir.
Saltando e usando toda sua força, Nico conseguiu escalar e se agarrar à cintura do feiticeiro.
— Você perdeu a cabeça?
— Ele não vai sozinho. Tente me derrubar se quiser.
Morgan suspirou.
— Está certo, Nico, segure-se firme e não me solte — abraçou Leone e se preparou. — Volte para Nivins, mais rápido do que nunca.
Erensiel se animou ao ouvir essas palavras, bateu suas asas e levantou poeira, cortando o céu como uma flecha. Era o infistri mais veloz que Morgan já encontrara, ficou satisfeito de poder trazê-lo consigo em sua viagem. Os dias se tornavam cada vez mais tensos, alguém os perseguia. Alguém que ele acreditava ser capaz de sentir magia. Por essa razão, controlou o impulso de tentar curar Leone assim que o viu, seriam anos se escondendo em vão. Não podia esquecer a sua missão principal, destinos não seriam abandonados.
Ainda assim, encontrava tempo para cuidar dos irmãos sempre que podia. Não só pela origem deles, o que o fazia pensar no que Hystir estava escrevendo, mas porque se afeiçoara. Preocupava-se com eles, tanto que sabia que era o único responsável por ambos. Leone ser pego pela praga levada àquele continente séculos antes foi um golpe inesperado. De tantos problemas que poderiam recair sobre eles, veio aquele que não conseguiriam afastar com uma lâmina.
O odor do mar invadiu suas narinas, a terra ficou para trás, como a silhueta de uma fera escapando da sua vista. O vento era constante, não permitia ver muito do caminho. A velocidade o anestesiava, sentia apenas a oscilação de altitude quando Erensiel batia as asas. Distraído em seus pensamentos, não percebeu que a pequena ilha de Nivins surgia logo abaixo. Erensiel pousou em frente à cabana de madeira, construída com esmero pelas mãos do próprio feiticeiro.
Morgan desceu e entrou sem demora, deixando Leone nos seus aposentos. Nico acompanhou-os após se recuperar da tontura e vomitar no poço ao lado da cabana. Entrou no quarto enquanto o feiticeiro saía.
— Vai para onde?
— Fique aí.
Essa ordem ele soube obedecer. Morgan pegou um candelabro e clareou o caminho até a despensa, o piso rangendo sob seus passos apressados. Guardou o que considerou necessário das prateleiras que continham ervas especiais e, quando se virou para sair, viu uma silhueta se esconder atrás da porta.
— Eu vi você — disse ele, aguçando a visão. — Pode sair.
Não aconteceu nada.
— Apareça! — Ordenou, avançando até o local. Vazio.
Sentiu uma pequena mão puxando sua bolsa cuidadosamente. Ele a pegou em um movimento rápido.
— Millena — iluminou a garota —, eu disse para permanecer no seu quarto.
— Eu sei — falou ela, cobrindo os olhos devido à claridade. — Estava brincando com Scarlia quando escutei vozes. Só vim ver o que era.
— Scarlia, a sua amiga imaginária?
— Ela não é, o senhor sabe — fez biquinho.
— Desculpe-me — ele passou a mão pela testa.
Millena notou seu nervosismo.
— O que aconteceu? — Pegou a mão daquele homem grande e cansado. — Está com algum probleminha?
O feiticeiro se ajoelhou e acariciou a mão dela.
— Minha pequena curiosa, não tenho tempo para responder todas as perguntas que surjam agora, mas há uma pessoa... E ela está doente. Eu tenho, eu preciso...
— Irei ajudá-lo — o seu tom não deixava margens para discussões. — Scarlia também.
Morgan sorriu.
— Vamos. Toda ajuda será bem-vinda.
— Quem é essa? — Perguntou Nico ao ver Millena entrando no quarto.
— Vamos cuidar do seu irmão, eu a ensinei como cortar e moer ervas. Faça o que ela estiver fazendo.
Nico ficou ao lado da garota e pegou algumas plantas, seguindo o que ela dizia. O feiticeiro cuidou das ferramentas que seriam utilizadas e observou os dois, tão diferentes que era difícil acreditar fazerem parte do mesmo mundo. Millena era a razão pela qual Erensiel e ele se encontravam tão longe de casa com o intuito de esconder o seu nascimento daqueles que pretendiam moldá-la para objetivos malignos. O seu destino era tão misterioso quanto o dos irmãos, porém seria grandioso, capaz de decidir o rumo das maiores nações de Arcaidon. Entretanto, ela não precisava saber disso, não apenas sete anos após o seu nascimento.
A noite avançou e Morgan fez Leone ingerir as poções recém preparadas, cujas misturas ele se encarregou. Minutos depois, uma tosse irrompeu dos lábios ressecados do garoto. O feiticeiro partiu um pequeno galho e passou próximo ao nariz dele, fazendo Leone abrir os olhos no ato.
— Você? — Conseguiu articular. — C-cadê o meu irmão?
Nico surgiu no seu campo visual e segurou sua mão.
— Estou aqui, você vai ficar bem.
— Isso dói — ele chorou. — Não quero morrer.
— Não vai — garantiu. — Morgan está aqui, você viverá cem anos!
Millena se dirigiu ao feiticeiro.
— Era por eles que o senhor saía às vezes?
— Sim — ele assentiu. — Nem sempre, mas sim.
— O que Nico e eu somos?
— Até esta noite não eram nada um para o outro, agora tenho certeza de que serão grandes amigos — então notou algo estranho. — Como sabe o nome dele?
— Scarlia me contou.
Faria mais perguntas, mas o grito de Nico o sobressaltou. Convulsões se apoderaram de Leone, seus olhos brancos e espuma saindo da boca indicavam que a doença vencera a poção. Morgan afastou Nico e deitou o seu irmão de lado para que não se engasgasse. A crise durou poucos segundos, então Leone não se mexeu mais. Morgan verificou que os batimentos do garoto estavam mais fracos que antes. Se a poção não funcionara, não havia mais ao que recorrer.
— Morgan — chamou Millena, e teve que repetir três vezes para conseguir sua atenção. — Use a sua magia.
— Não, eu não posso.
— Use sua magia ou ele irá morrer! Salve-o agora.
Ele permaneceu sem reação.
— Scarlia? — A garota olhou ao redor como se procurasse alguém, aproximando-se por fim do leito de Leone. — Diga-me o que fazer.
Millena pronunciou palavras estranhas. Dos seus olhos emanou um brilho verde, a pausa entre cada trecho indicava que escutava as instruções de uma pessoa presente apenas para ela, alguém que ditava o encantamento. O feiticeiro se viu impressionado como nunca antes, mas Millena desabou como se algo a golpeasse.
— O que foi isso? — Perguntou Nico. — Ela o salvou? Como fez isso? O que vocês são?
O homem tinha tantas perguntas quanto a criança. Ajoelhou-se ao lado da garota e verificou se ela estava bem.
— Eu não consegui — sussurrou Millena. — A voz da Scarlia se perdeu, eu não o salvei.
— Era uma tarefa pesada demais — Morgan tentou reconfortá-la, apreensivo sobre o que aquilo podia significar. — Não cabia a você. A vida dele se esvaiu pela doença.
— Não pode ser — Nico ouviu tudo. — Você fez uma promessa.
— Nico, por favor.
— Faça alguma coisa por ele.
— Acalme-se.
— Eu não quero!
Com punhos cerrados e rosto encharcado, ele correu em direção a Morgan. A ilha inteira tremeu antes que o garoto alcançasse o feiticeiro. Um trovão estrondou com intensidade absurda, o lampejo trouxe o dia por um segundo através das frestas da janela. O calafrio de antes o alcançou novamente, com maior veemência. Escutou-se o som de árvores estalando e caindo. Seus batimentos aceleraram, o feiticeiro compreendeu quem o aguardava.
— Millena — chamou. — Ainda está com a pulseira que eu dei a você?
Ela assentiu, exibindo o pingente triangular.
— Não a tire agora. Nico, venha cá — ele ajudou o garoto a se sentar e transferiu a sua para ele. — Isso o pertence a partir desse momento. Deem as mãos e não soltem por nada, independente do que ouvirem lá fora.
— Por quê? O que o senhor vai fazer?
— Receberei o nosso convidado, minha querida — levantou-se. — Obedeçam e não saiam daqui.
Confusos e chorosos, Nico e Millena seguraram a mão um do outro.
Quando o feiticeiro deixou o interior da cabana, deparou-se com Erensiel no local em que pousara, observando o fogo lambendo as árvores em que o raio caíra. Uma figura alta e encapuzada saltou sobre as chamas, ficando a poucos metros dos dois. Ela empunhava um longo machado em formato de morcego, cujas lâminas duplas eram as asas semiabertas da criatura. Conheciam o possuidor daquela arma: Frarga, servo de Analesia.
— Encontra-se então o rato encurralado — disse ele, baixando o capuz negro e revelando orelhas pontudas, olhos e cabelo em tons prateados.
Erensiel colocou-se em posição de ataque.
— Calma — alertou Morgan.
— Olha até onde você chegou para fracassar... — zombou Frarga. — Uma terra sem paz e perdida em ilusões, não é mesmo? Agora, entregue-me a criança.
— Não. Recupere sua razão. Acha mesmo que Analesia irá recompensá-lo?
— Satisfaz-me apenas servi-la — aproximava-se devagar. — E você deveria fazer o mesmo.
— Não me conhece mais para me fazer uma proposta dessas.
— Vi pessoas viverem tempo o suficiente para se tornarem aquilo que não queriam — ele sorriu. — Eu sou um grande exemplo, precisei somente ver a verdade por trás de tudo, afinal.
— Qualquer mentira dita apenas uma vez pela boca da deusa da morte se torna verdade para quem é tolo.
— Eis o sábio ou o tolo dos tolos? Servindo-a, a morte não o preocuparia.
— Não preocupa.
— A sua, não, mas vejo que a de alguém, sim.
Os olhos do morcego ganharam um brilho vermelho.
— Que pena... — Frarga suspirou. — Gostaria de resolver isso sem luta.
— Haverá hoje, assim como amanhã. Assim como na guerra que está por vir.
— Parece que vou ter que conviver com isso — investiu com velocidade surpreendente, porém Morgan se antecipou.
— Insva sworti!
Com a mesma intensidade que a magia fluía, a eletricidade percorreu seu corpo e se concentrou no braço direito, um raio partindo na direção do elfo. Frarga se protegeu no último momento, o machado absorvendo toda a energia do ataque.
— Erensiel, mantenha-o afastado.
O infistri bateu as asas e agarrou Frarga, adentrando em meio às árvores, cujas chamas as devoravam com voracidade.
Morgan, em um relance, notou Millena espiando por uma brecha na porta.
— Não fique aí! — Gritou. — Faça o que eu ordenei!
A porta se fechou após uma rápida hesitação.
Ele olhou para a floresta e se concentrou em um ponto fixo à sua frente, um pequeno brilho azul surgiu flutuando diante de si. Uma luz intensa emanava dele à medida que crescia, revelando ser uma pedra. Como que de uma semente, dela brotaram raízes que cresceram enrolando-se umas nas outras até tocarem o chão, formando um cajado. O feiticeiro segurou o artefato com as duas mãos.
— Cisásfen — disse, fazendo o cajado se incendiar em um fogo azul. — Mestre, ele enfim nos encontrou. Faça com que tudo não tenha sido...
— Sim — uma voz ecoou em sua mente. — Eu compreendo. Dar-lhe-ei forças para prosseguir.
O fogo se tornou mais forte, Morgan permaneceu segurando, suportando aquele poder imenso. Quando terminado, Cisásfen disse:
— Será o bastante para o meu portal ser aberto para você e Millena. O infistri poderá retornar voando. Enquanto aos garotos, é cedo demais para tê-los conosco.
— Senhor, eu não irei. Um deles está morto. Não permitirei que Frarga leve o outro. Ele irá no meu lugar.
— Não. Você precisa me obedecer, não importa o que aconteça. Deixe essa criança.
— Perdoe-me, mestre — sua respiração pesava tanto quanto sua decisão —, mas não esta noite.
De súbito, puxou o cajado e acertou o machado que fora arremessado na sua direção.
— Você perdeu um grande amigo — Frarga exprimiu entredentes, saindo ferido da floresta. Assim como as árvores ardiam em chamas, seu olhar ardia em fúria.
— Erensiel... — o fogo azul se apagava entre suas mãos.
— Não me referi àquela fera.
Como se ganhasse vida, o morcego se ergueu batendo as asas, retornando de onde caíra. Recuperou a forma metálica ao ser empunhado por Frarga.
— Me referi a mim! — Bradou ele.
Morgan cravou o cajado no chão.
— Não se perde coisas inexistentes.
O cajado se incendiou novamente, um fogo alto e dourado dessa vez. Podia sentir o mesmo calor de anos atrás ressurgir, invadindo até a alma.
— Você não vai escapar de mim — as asas do morcego se modificavam, o machado passava a ser uma lança.
— Não, não vou, mas você não está aqui por minha causa.
O brilho dourado surgiu de dentro da cabana.
— Boa viagem, amigos — Morgan fechou os olhos.
— Não! — Frarga arremessou a lança.
No mesmo instante, o brilho que deixava a cabana se intensificou e desapareceu em um piscar. Muito distante dali, duas crianças se viram perdidas, sem nada para chamar de lar.
As vozes nasciam da imensidão acima. A multidão se agitava, a expectativa aumentava à medida que seus passos progrediam no corredor escuro. Embora o percurso tivesse se tornado familiar, sentia-se perdido, como se o caminho único pudesse se ramificar em vários e levá-lo a um calabouço frio onde se encolheria pela eternidade. Lembrou-se da primeira vez em que seus pés pisaram naquele lugar. De como o ímpeto de voltar e desistir era grande, cada batimento era um “não vá”. Não se sentia um lutador da Arena, mas um garoto perdido na vastidão de um mundo onde as sombras reinavam.Naquela noite, sua primeira em Cinstrice, ele enfrentou um adversário experiente, bem maior do que esperava. Todos diziam seu nome e o incentivavam a acabar logo com o novato magrelo. Via a si mesmo como pequeno e incapaz, apesar de sempre tentar parecer o contrário. Seus pés se moviam como se dominados por uma entidade desconhecida, era um espectador no seu próprio corpo, distante e ao mesmo tempo presente. O calo
Manhãs que começavam sem a voz de Mercstzine reverberando pela estalagem eram motivo de preocupação, coisas boas não vinham quando ela ficava muito pensativa. Seu marido diria que o silêncio dela machucava mais do que as palavras, porém o que ela fazia bastante desde que Endrick e Nico praticamente foram morar lá era falar.— Essa foi a terceira vez que vocês se arriscaram em vão até Cinstrice — começou ela, ao ver Endrick entrar na cozinha. — Você ensinou esse garoto direito?— Não se pode ganhar todas — disse ele, a voz branda.Ela largou a faca com a qual cortava suas verduras e olhou para ele.— Também não se pode perder todas. Vocês precisam pagar por ficarem aqui. Os cobradores de impostos não serão tolerantes comigo da mesma forma que eu sou com vocês.— Sabemos disso. Não queremos abusar da sua paciência, mas precisamos de mais tempo.Mercstzine assentiu e cruzou os braços.— Você acha certo?— O quê?— Acha certo ficar levando o garoto para aquele lugar?Uma espécie de culpa p
A cidade de Elisesile ficava ao leste de Ellefen, não muito distante. Poucas árvores margeavam o caminho, a vegetação rasteira era parca e as colinas escondiam perigos que poderiam se revelar quando a noite deixasse suas primeiras horas para trás. O pio de uma coruja lembrou Nico de que criaturas observavam nas sombras. A estrada que percorriam costumava estar movimentada a essa hora do dia com o retorno dos mercadores de Ellefen e de outros vilarejos da região. Estranhamente, isso não acontecia.— Voltaram mais cedo por causa do tempo — disse Endrick, quando Nico perguntou.O sol se pôs sem ser visto. Felizmente, Endrick não se esquecera da lamparina. As árvores se apresentavam na forma de silhuetas tortas e perdidas em meio a uma delicada cortina de névoa. O vento soprava, vindo de longe, das Montanhas Farynan ao norte de Ertiron. Vistas dali, as elevações eram mais negras que a noite, belas e sólidas, perseguindo-os imóveis. O atrito das rodas da carroça com o chão era o único som q
Não foi dita uma palavra desde que se sentara. Apenas suspiros de descontentamento e o incessante som de pena riscando papel circulavam o aposento, que possuía a doce essência das ervas-séias de Ciusimur. Os olhos verdes e incisivos de um gato preto a encaravam, sacolejava a cauda de forma lenta deitado sobre uma caminha almofadada de veludo azul. Se bem escutara, chamava-se Calaithto. Nome do primeiro Eldenzor que se sentara no trono de Wendevel há quinhentos anos. Uma simples forma de homenagear a família real, até o mais tolo poderia ver, entretanto olhares diferentes poderiam ver o ato como um insulto. Ela não dava importância para isso, Calaithto era um nome bonito para um belo felino. O gato deu uma piscadela, como se apreciasse seus pensamentos.Millena nunca estivera no Palácio Lirnansio do lorde Syafer de Lirnans, mas a sua grandiosidade e reputação construída ao longo dos séculos a levaram a crer que existisse algo de fato acolhedor por trás de seus muros. Em parte, estava ce
O chão do refeitório estava engordurado próximo à mesa de onde encontraram as crianças. Ela não saberia dizer se os restos de comida era o que restara de um porco ou de um frango, nem perdeu tempo pensando nisso. As crianças acenaram ao vê-la, quanta audácia de agirem naturalmente após terem feito o que fizeram. Mesmo irritada, ela retribuiu e riu das bochechas delas, lambuzadas de molho vermelho que torceu para que não saísse com facilidade.— Aí estão seus alunos, Mestre Armoni — virou-se para o Mestre de Ensinos. — Não os perca de vista novamente.— Peço desculpas, senhorita Leviance, em nome da Academia de Venelvor.Drafindel e os gêmeos riram da cara do homem, Diarne se retirou com um suspiro, dizendo que faria umas anotações. Millena se despediu, abraçou Drafindel e os irmãos e continuou seu trajeto.— Praguinhas famintas — sussurrou ao olhar para a mesa novamente. Esperava que levassem um sermão.Chegando ao balcão de pedra da cozinha, o cheiro dos assados a deixou com água na b
As engrenagens giravam no interior da caixinha de madeira, resultando em música e um leve tremor sobre o seu peito. O compasso criado junto aos seus batimentos acalmava, o toque melancólico ordenava para que fechasse os olhos. Ela era teimosa, observava o dossel da cama, vagueando em pensamentos criados por uma trilha sonora de toques mecânicos. Havia um casal que girava à medida que a melodia progredia, de início curvados, mas vagarosos se erguiam em uma dança. Agora estavam perdidos em algum lugar distante, assim como muitas coisas da sua infância. Coisas que envolviam a sua memória.O dossel caiu sobre seus olhos e as cortinas a envolveram tão subitamente quanto a caixinha que se fechou e deixou de tocar. Millena estava em Nivins, a ilha. Sabia que estava, poderia ser diferente? Tinha mais uma vez cinco anos, era óbvio. Qual pessoa não saberia a própria idade? Sentia-se bem e olhava o oceano, não havia praia. Pisava nas pedras descalça sem se incomodar. Estava livre, o vento forte e
— Meu nome é Alec — respondeu, após Endrick perguntar pela segunda vez.Sentava-se em uma cadeira próxima a lareira, assistia a lenha sendo abraçada pelas chamas e se transformando aos poucos em um resquício distante do que era. Ele recusara comida ou roupas secas, apenas quis ficar perto do fogo. Uma fina linha de sangue escorria do canto da sua boca, mas Mercstzine não o convenceu a deixá-la cuidar do ferimento. Apenas isso maculava o rosto pálido de Alec, porém ele estava mais ferido do que aparentava. Mancava um pouco com a perna esquerda, Nico serviu de apoio para carregá-lo até onde estava, e mantinha a mão colada ao lado do corpo. Se tivesse a sorte que Endrick acreditava, talvez nenhuma costela estivesse quebrada. Seu cabelo negro caía sobre seus olhos cinzentos e pensativos.Ele não devia ser muito mais velho que Nico, cuja altura era a mesma. Tinha uma voz grave, possuía um certo ritmo ao pronunciar as palavras. Um sotaque que ninguém reconhecia ou apenas uma maneira própria
Era um sonho antigo e recorrente. Se eram lembranças do seu passado esquecido, ele não sabia, no entanto o sonho nunca estivera tão nítido quanto naquele momento. Sentia tudo de forma concreta, era ele, uma criança entregue aos soluços do seu pranto. Nico duvidava que sua mente fosse capaz de criar uma ilusão tão perfeita em seu subconsciente, porém relutava em acreditar que realmente era uma cena ocorrida no seu passado.O aperto no peito era intenso e doloroso, não havia nada que pudesse ser feito. O medo, Nico pensou pela primeira vez em como o medo podia deixar alguém sem uma fração de si. As lágrimas enchiam os olhos e percorriam o curto caminho da sua face como um rio cristalino em direção aos seus lábios, o sofrimento era salgado. Veio então o nome pela primeira vez.De tantos sonhos confusos e indistintos, esse foi o único que permitiu relembrar o nome do garoto que morria: Leone. Um nome que achou bonito. Agora era tão óbvio que Nico se perguntou como não conseguiu se lembrar