A Maldição de Dirt'alrus (Parte I)
A Maldição de Dirt'alrus (Parte I)
Por: L.L.Santos
Prólogo

O crepúsculo morreu aos poucos em suas cores vermelhas. Pôs-se o sol novamente, escondendo-se em um horizonte invisível após o mar. Erensiel, com suas grandes asas deslizando pelo céu noturno, sobrevoava um manto de ondas escuras e pacíficas, logo deixadas para trás ao atravessarem a paisagem de uma praia vazia. Eram as terras de um continente marcado, suas cicatrizes ganhavam forma à medida que avançavam. Os rochedos e depressões simbolizavam sua força, pequenos riachos lembravam o sangue que foi e ainda era derramado. O céu repleto de estrelas, adornado com o sorriso de uma lua minguante, era o reflexo de que ainda havia esperança sobre aquele mundo.

O voo castigava o rosto cansado de Morgan. Um ardor crescia em seus olhos e seus cabelos negros esvoaçavam com força, sentia um frio incômodo nas orelhas e o vento sussurrava algo incompreensível. Um forte calafrio percorreu seu corpo, consideraria isso um aviso na suspeita noite que o cobria.

Erensiel avistou o acampamento e pousou na parte mais distante, como de costume, onde ninguém pudesse ouvi-los. O feiticeiro encontrou o apoio no flanco do animal e desceu.

— Obrigado mais uma vez, amigo — afagou as penas vermelhas do infistri, um ancião para os da sua espécie. — Talvez seja melhor não se distanciar muito esta noite.

Erensiel assentiu com uma mesura e voou, desaparecendo na escuridão acima. Morgan ajustou sua túnica e andou em direção às cabanas. Carregava uma bolsa ao lado do corpo, pesando sobre o seu ombro direito. Sentia-se meio tonto, não importava quantas vezes tivesse voado no dorso de um infistri, essa sensação sempre o acompanhava. De certa forma, tornara-se prazerosa.

Vigiou o caminho entre as tendas, uma fogueira crepitava não muito distante, onde pessoas se reuniam ao redor, distraídas demais para notá-lo. Andou alguns metros e adentrou nas sombras de uma cabana. Uma lamparina iluminava o lugar, caixas vazias se empilhavam em um canto, trapos e roupas sujas estavam jogadas pelo chão. Havia um jarro de barro sobre uma mesa, onde pão mofado se via ao lado de queijo apodrecido. Ratos correram pelo chão, incomodados com o invasor.

Não foi a bagunça, entretanto, que o deixou preocupado, mas o silêncio. Onde eles estavam? Girou o pingente triangular da sua pulseira, um hábito que adquirira recentemente, e olhou ao redor para ter certeza de que não pretendiam assustá-lo com outra de suas brincadeiras, contudo realmente não estavam ali. Começava a pensar em inúmeras possibilidades quando a cortina de entrada se abriu e um garoto esbarrou nele, por pouco não o derrubando.

— Nico — Morgan o segurou pelos ombros.

— Você — o garoto ofegava, assustado, teve que apertar os olhos para reconhecer o homem na escuridão. — Por que demorou tanto para voltar? Você abandonou a gente!

Seu olhar era acusador.

— Não, garoto, eu... Estive ocupado.

— Também estivemos ocupados — ele escapou do toque do feiticeiro e foi até o jarro, enchendo uma caneca e bebendo toda a água de uma vez.

— Onde está Leone?

O garoto desviou o olhar e se afastou.

— Onde está o seu irmão, Nico? — Morgan repetiu, andando até ele. — Por que você não responde?

— Porque você prometeu cuidar da gente — encarou o homem como se o desafiasse a desmenti-lo, seu tom agressivo apesar das lágrimas escorrendo pelo seu rosto. — Foram duas semanas e nada de você. Você não veio!

— O que aconteceu?

— Ele pegou. A doença, Morgan, ele pegou. Eu não queria, mas... A culpa é minha. Toda minha!

— Não... — Preocupação e medo o invadiram. — Não, não pode ser. Onde ele está?

Nico encheu a caneca de novo, mal sustentando-a em suas mãos trêmulas. O feiticeiro segurou o objeto antes que se derramasse.

— Onde está o seu irmão?

— N-na tenda. No curandeiro, Litier está cuidando dele. Preciso levar isso. Por favor, você pode ajudar, vem.

Apressado, Nico o guiou em silêncio até a tenda do curandeiro. O pequeno Leone se encontrava iluminado pela luz de uma vela, deitado sobre um catre de madeira e colchões finos. Litier apertava um pano molhado contra sua testa, mas não havia esperança em seu rosto, como se aquilo tivesse mais intuito de confortar o irmão que assistia do que o que estava enfermo.

— Quem é você?

— Um amigo — respondeu Nico. — Ele pode ajudar, ele veio aqui para isso.

Litier olhou para o homem sem parecer convencido, deu de ombros e indicou para que ele trouxesse a água.

— É preciso fazê-lo beber — explicou. — A febre o faz suar como o solstício mais quente em Aracl, ele não desperta para comer ou beber há três dias. Se a doença não o matar por seus próprios meios, a desidratação o fará.

Enquanto o curandeiro fazia Leone tomar o líquido, Morgan sentiu a pulsação do garoto.

— Desculpa — pediu Nico, mas os soluços do seu choro o silenciaram por um momento. Era incapaz de olhar o irmão daquela forma, cada vez que o fazia, sentia-se mais culpado e desejava estar em seu lugar.

O feiticeiro se afastou e virou as costas. Não havia o que ser feito, aquela vida não resistiria uma última noite. Não naquele lugar.

— Morgan — Nico conseguiu chamar. — Por favor, não deixe o Leone morrer.

O garoto segurou sua mão.

— Perdoe-me — respondeu. — Aqui eu não tenho o necessário.

— Você prometeu — suplicou.

Olhou os olhos da criança e sentiu sua dor, conhecia aquele medo, pois já esteve em seu lugar. A angústia trazia sentimentos desconhecidos que deveriam permanecer ocultos em cavernas intocáveis. Ninguém merecia a sensação de ser destituído de quem amava. Perder-se ao perder alguém era se encontrar distante de qualquer felicidade, alguém tão pequeno não precisava passar por isso. O pingente no seu pulso voltou a coçar como na primeira noite em que o usou, uma decisão seria tomada. E ele a manteria até o fim.

— Se você ainda acredita em mim, faço então uma nova promessa — apertou a mão dele para demonstrar sua convicção. — Seu irmão vai sarar, verá que ele vai viver mais de cem anos. Eu prometo a você.

Um sorriso se esboçou nos lábios de Nico, contudo havia uma dúvida em seus olhos, que se manifestou na voz do curandeiro.

— O que vai fazer?

— Vou levá-lo — Morgan pegou Leone em seus braços.

— O quê? Para onde?

Com o garoto no colo, deixou a tenda sem dar uma resposta. A lua fora encoberta por nuvens negras, um leve prateado surgia como uma moldura em torno delas. Não era um bom presságio o único sorriso da noite ter desaparecido. Sem esperar mais nada, gritou:

— Venha a mim, Erensiel!

O infistri ressurgiu de imediato, pousando em sua frente, indiferente aos gritos das pessoas ao redor do acampamento. O feiticeiro não ligava mais para isso, pôs o garoto na base do pescoço da grande ave e montou logo em seguida, verificando os apoios para que não se soltassem no ar e despencassem para a morte certa. Antes que pudesse partir, porém, alguém puxou sua túnica.

— Me deixe ir também — pediu Nico.

— O quê? Não, não há espaço. Mesmo se houvesse, Erensiel não tem mais o vigor da juventude.

— Tente me impedir.

Saltando e usando toda sua força, Nico conseguiu escalar e se agarrar à cintura do feiticeiro.

— Você perdeu a cabeça?

— Ele não vai sozinho. Tente me derrubar se quiser.

Morgan suspirou.

— Está certo, Nico, segure-se firme e não me solte — abraçou Leone e se preparou. — Volte para Nivins, mais rápido do que nunca.

Erensiel se animou ao ouvir essas palavras, bateu suas asas e levantou poeira, cortando o céu como uma flecha. Era o infistri mais veloz que Morgan já encontrara, ficou satisfeito de poder trazê-lo consigo em sua viagem. Os dias se tornavam cada vez mais tensos, alguém os perseguia. Alguém que ele acreditava ser capaz de sentir magia. Por essa razão, controlou o impulso de tentar curar Leone assim que o viu, seriam anos se escondendo em vão. Não podia esquecer a sua missão principal, destinos não seriam abandonados.

Ainda assim, encontrava tempo para cuidar dos irmãos sempre que podia. Não só pela origem deles, o que o fazia pensar no que Hystir estava escrevendo, mas porque se afeiçoara. Preocupava-se com eles, tanto que sabia que era o único responsável por ambos. Leone ser pego pela praga levada àquele continente séculos antes foi um golpe inesperado. De tantos problemas que poderiam recair sobre eles, veio aquele que não conseguiriam afastar com uma lâmina.

O odor do mar invadiu suas narinas, a terra ficou para trás, como a silhueta de uma fera escapando da sua vista. O vento era constante, não permitia ver muito do caminho. A velocidade o anestesiava, sentia apenas a oscilação de altitude quando Erensiel batia as asas. Distraído em seus pensamentos, não percebeu que a pequena ilha de Nivins surgia logo abaixo. Erensiel pousou em frente à cabana de madeira, construída com esmero pelas mãos do próprio feiticeiro.

Morgan desceu e entrou sem demora, deixando Leone nos seus aposentos. Nico acompanhou-os após se recuperar da tontura e vomitar no poço ao lado da cabana. Entrou no quarto enquanto o feiticeiro saía.

— Vai para onde?

— Fique aí.

Essa ordem ele soube obedecer. Morgan pegou um candelabro e clareou o caminho até a despensa, o piso rangendo sob seus passos apressados. Guardou o que considerou necessário das prateleiras que continham ervas especiais e, quando se virou para sair, viu uma silhueta se esconder atrás da porta.

— Eu vi você — disse ele, aguçando a visão. — Pode sair.

Não aconteceu nada.

— Apareça! — Ordenou, avançando até o local. Vazio.

Sentiu uma pequena mão puxando sua bolsa cuidadosamente. Ele a pegou em um movimento rápido.

— Millena — iluminou a garota —, eu disse para permanecer no seu quarto.

— Eu sei — falou ela, cobrindo os olhos devido à claridade. — Estava brincando com Scarlia quando escutei vozes. Só vim ver o que era.

— Scarlia, a sua amiga imaginária?

— Ela não é, o senhor sabe — fez biquinho.

— Desculpe-me — ele passou a mão pela testa.

Millena notou seu nervosismo.

— O que aconteceu? — Pegou a mão daquele homem grande e cansado. — Está com algum probleminha?

O feiticeiro se ajoelhou e acariciou a mão dela.

— Minha pequena curiosa, não tenho tempo para responder todas as perguntas que surjam agora, mas há uma pessoa... E ela está doente. Eu tenho, eu preciso...

— Irei ajudá-lo — o seu tom não deixava margens para discussões. — Scarlia também.

Morgan sorriu.

— Vamos. Toda ajuda será bem-vinda.

— Quem é essa? — Perguntou Nico ao ver Millena entrando no quarto.

— Vamos cuidar do seu irmão, eu a ensinei como cortar e moer ervas. Faça o que ela estiver fazendo.

Nico ficou ao lado da garota e pegou algumas plantas, seguindo o que ela dizia. O feiticeiro cuidou das ferramentas que seriam utilizadas e observou os dois, tão diferentes que era difícil acreditar fazerem parte do mesmo mundo. Millena era a razão pela qual Erensiel e ele se encontravam tão longe de casa com o intuito de esconder o seu nascimento daqueles que pretendiam moldá-la para objetivos malignos. O seu destino era tão misterioso quanto o dos irmãos, porém seria grandioso, capaz de decidir o rumo das maiores nações de Arcaidon. Entretanto, ela não precisava saber disso, não apenas sete anos após o seu nascimento.

A noite avançou e Morgan fez Leone ingerir as poções recém preparadas, cujas misturas ele se encarregou. Minutos depois, uma tosse irrompeu dos lábios ressecados do garoto. O feiticeiro partiu um pequeno galho e passou próximo ao nariz dele, fazendo Leone abrir os olhos no ato.

— Você? — Conseguiu articular. — C-cadê o meu irmão?

Nico surgiu no seu campo visual e segurou sua mão.

— Estou aqui, você vai ficar bem.

— Isso dói — ele chorou. — Não quero morrer.

— Não vai — garantiu. — Morgan está aqui, você viverá cem anos!

Millena se dirigiu ao feiticeiro.

— Era por eles que o senhor saía às vezes?

— Sim — ele assentiu. — Nem sempre, mas sim.

— O que Nico e eu somos?

— Até esta noite não eram nada um para o outro, agora tenho certeza de que serão grandes amigos — então notou algo estranho. — Como sabe o nome dele?

— Scarlia me contou.

Faria mais perguntas, mas o grito de Nico o sobressaltou. Convulsões se apoderaram de Leone, seus olhos brancos e espuma saindo da boca indicavam que a doença vencera a poção. Morgan afastou Nico e deitou o seu irmão de lado para que não se engasgasse. A crise durou poucos segundos, então Leone não se mexeu mais. Morgan verificou que os batimentos do garoto estavam mais fracos que antes. Se a poção não funcionara, não havia mais ao que recorrer.

— Morgan — chamou Millena, e teve que repetir três vezes para conseguir sua atenção. — Use a sua magia.

— Não, eu não posso.

— Use sua magia ou ele irá morrer! Salve-o agora.

Ele permaneceu sem reação.

— Scarlia? — A garota olhou ao redor como se procurasse alguém, aproximando-se por fim do leito de Leone. — Diga-me o que fazer.

Millena pronunciou palavras estranhas. Dos seus olhos emanou um brilho verde, a pausa entre cada trecho indicava que escutava as instruções de uma pessoa presente apenas para ela, alguém que ditava o encantamento. O feiticeiro se viu impressionado como nunca antes, mas Millena desabou como se algo a golpeasse.

— O que foi isso? — Perguntou Nico. — Ela o salvou? Como fez isso? O que vocês são?

O homem tinha tantas perguntas quanto a criança. Ajoelhou-se ao lado da garota e verificou se ela estava bem.

— Eu não consegui — sussurrou Millena. — A voz da Scarlia se perdeu, eu não o salvei.

— Era uma tarefa pesada demais — Morgan tentou reconfortá-la, apreensivo sobre o que aquilo podia significar. — Não cabia a você. A vida dele se esvaiu pela doença.

— Não pode ser — Nico ouviu tudo. — Você fez uma promessa.

— Nico, por favor.

— Faça alguma coisa por ele.

— Acalme-se.

— Eu não quero!

Com punhos cerrados e rosto encharcado, ele correu em direção a Morgan. A ilha inteira tremeu antes que o garoto alcançasse o feiticeiro. Um trovão estrondou com intensidade absurda, o lampejo trouxe o dia por um segundo através das frestas da janela. O calafrio de antes o alcançou novamente, com maior veemência. Escutou-se o som de árvores estalando e caindo. Seus batimentos aceleraram, o feiticeiro compreendeu quem o aguardava.

— Millena — chamou. — Ainda está com a pulseira que eu dei a você?

Ela assentiu, exibindo o pingente triangular.

— Não a tire agora. Nico, venha cá — ele ajudou o garoto a se sentar e transferiu a sua para ele. — Isso o pertence a partir desse momento. Deem as mãos e não soltem por nada, independente do que ouvirem lá fora.

— Por quê? O que o senhor vai fazer?

— Receberei o nosso convidado, minha querida — levantou-se. — Obedeçam e não saiam daqui.

Confusos e chorosos, Nico e Millena seguraram a mão um do outro.

Quando o feiticeiro deixou o interior da cabana, deparou-se com Erensiel no local em que pousara, observando o fogo lambendo as árvores em que o raio caíra. Uma figura alta e encapuzada saltou sobre as chamas, ficando a poucos metros dos dois. Ela empunhava um longo machado em formato de morcego, cujas lâminas duplas eram as asas semiabertas da criatura. Conheciam o possuidor daquela arma: Frarga, servo de Analesia.

— Encontra-se então o rato encurralado — disse ele, baixando o capuz negro e revelando orelhas pontudas, olhos e cabelo em tons prateados.

Erensiel colocou-se em posição de ataque.

— Calma — alertou Morgan.

— Olha até onde você chegou para fracassar... — zombou Frarga. — Uma terra sem paz e perdida em ilusões, não é mesmo? Agora, entregue-me a criança.

— Não. Recupere sua razão. Acha mesmo que Analesia irá recompensá-lo?

— Satisfaz-me apenas servi-la — aproximava-se devagar. — E você deveria fazer o mesmo.

— Não me conhece mais para me fazer uma proposta dessas.

— Vi pessoas viverem tempo o suficiente para se tornarem aquilo que não queriam — ele sorriu. — Eu sou um grande exemplo, precisei somente ver a verdade por trás de tudo, afinal.

— Qualquer mentira dita apenas uma vez pela boca da deusa da morte se torna verdade para quem é tolo.

— Eis o sábio ou o tolo dos tolos? Servindo-a, a morte não o preocuparia.

— Não preocupa.

— A sua, não, mas vejo que a de alguém, sim.

Os olhos do morcego ganharam um brilho vermelho.

— Que pena... — Frarga suspirou. — Gostaria de resolver isso sem luta.

— Haverá hoje, assim como amanhã. Assim como na guerra que está por vir.

— Parece que vou ter que conviver com isso — investiu com velocidade surpreendente, porém Morgan se antecipou.

— Insva sworti!

Com a mesma intensidade que a magia fluía, a eletricidade percorreu seu corpo e se concentrou no braço direito, um raio partindo na direção do elfo. Frarga se protegeu no último momento, o machado absorvendo toda a energia do ataque.

— Erensiel, mantenha-o afastado.

O infistri bateu as asas e agarrou Frarga, adentrando em meio às árvores, cujas chamas as devoravam com voracidade.

Morgan, em um relance, notou Millena espiando por uma brecha na porta.

— Não fique aí! — Gritou. — Faça o que eu ordenei!

A porta se fechou após uma rápida hesitação.

Ele olhou para a floresta e se concentrou em um ponto fixo à sua frente, um pequeno brilho azul surgiu flutuando diante de si. Uma luz intensa emanava dele à medida que crescia, revelando ser uma pedra. Como que de uma semente, dela brotaram raízes que cresceram enrolando-se umas nas outras até tocarem o chão, formando um cajado. O feiticeiro segurou o artefato com as duas mãos.

— Cisásfen — disse, fazendo o cajado se incendiar em um fogo azul. — Mestre, ele enfim nos encontrou. Faça com que tudo não tenha sido...

— Sim — uma voz ecoou em sua mente. — Eu compreendo. Dar-lhe-ei forças para prosseguir.

O fogo se tornou mais forte, Morgan permaneceu segurando, suportando aquele poder imenso. Quando terminado, Cisásfen disse:

— Será o bastante para o meu portal ser aberto para você e Millena. O infistri poderá retornar voando. Enquanto aos garotos, é cedo demais para tê-los conosco.

— Senhor, eu não irei. Um deles está morto. Não permitirei que Frarga leve o outro. Ele irá no meu lugar.

— Não. Você precisa me obedecer, não importa o que aconteça. Deixe essa criança.

— Perdoe-me, mestre — sua respiração pesava tanto quanto sua decisão —, mas não esta noite.

De súbito, puxou o cajado e acertou o machado que fora arremessado na sua direção.

— Você perdeu um grande amigo — Frarga exprimiu entredentes, saindo ferido da floresta. Assim como as árvores ardiam em chamas, seu olhar ardia em fúria.

— Erensiel... — o fogo azul se apagava entre suas mãos.

— Não me referi àquela fera.

Como se ganhasse vida, o morcego se ergueu batendo as asas, retornando de onde caíra. Recuperou a forma metálica ao ser empunhado por Frarga.

— Me referi a mim! — Bradou ele.

Morgan cravou o cajado no chão.

— Não se perde coisas inexistentes.

O cajado se incendiou novamente, um fogo alto e dourado dessa vez. Podia sentir o mesmo calor de anos atrás ressurgir, invadindo até a alma.

— Você não vai escapar de mim — as asas do morcego se modificavam, o machado passava a ser uma lança.

— Não, não vou, mas você não está aqui por minha causa.

O brilho dourado surgiu de dentro da cabana.

— Boa viagem, amigos — Morgan fechou os olhos.

— Não! — Frarga arremessou a lança.

No mesmo instante, o brilho que deixava a cabana se intensificou e desapareceu em um piscar. Muito distante dali, duas crianças se viram perdidas, sem nada para chamar de lar.

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