A noite estava escura, e a chuva caía forte, como se nunca fosse parar.
Raios e trovões cortavam o céu, enquanto os galhos das árvores balançavam violentamente com a força do vento. A natureza exibia toda a sua fúria de maneira incansável. Julia estava acordada, sozinha no quarto, observando a tempestade implacável pela janela. Deitada em sua cama no quarto de hospital, sentia-se pequena diante da força da natureza. De repente, um raio caiu lá fora, iluminando todo o quarto. O clarão fez Julia sentir um arrepio subir pela nuca. — Que sensação estranha... — falou Julia, pensativa. — Parece que já vi isso antes... — Déjà vu. — Disse uma voz doce e feminina. — Quando temos a sensação de já ter visto ou vivido algo, chamamos de déjà vu. — concluiu. A mulher entrou no quarto, verificou se a janela estava bem fechada e, em seguida, virou-se para Julia com um sorriso amigável no rosto. — Eu sou a Pérola, sou nova aqui. Sou a enfermeira do turno da noite. Pérola tinha cabelos longos, loiros como fios de ouro, que deslizavam suavemente por seus ombros e brilhavam sob qualquer luz, sempre bem cuidados. Seus olhos grandes e azuis, quase como duas pedras de safira, transmitiam uma mistura de doçura e curiosidade, enquanto seu olhar parecia captar cada detalhe ao seu redor. O nariz pequeno e arredondado dava um toque jovial ao seu rosto, e seus lábios bem desenhados, sempre com um leve sorriso, mostravam uma personalidade acolhedora. Sua figura robusta transmitia força e confiança, mas também suavidade em seus gestos. Com 1,70 metro, Pérola se movia com uma postura que mesclava profissionalismo e leveza, característica de alguém que sabia a importância de estar sempre alerta, mas que também carregava a alegria de viver. Pérola era o tipo de pessoa que iluminava qualquer ambiente em que entrasse. Sua personalidade alegre e contagiante fazia com que todos ao redor se sentissem confortáveis, como se estivessem sendo acolhidos por uma velha amiga. Muito observadora, raramente deixava passar algo despercebido, especialmente quando se tratava de cuidar das pessoas. Ela tinha uma empatia natural que ia além do trabalho; cuidar era parte essencial de quem ela era. Pérola sentia uma profunda satisfação em ajudar, especialmente os idosos, cujas histórias e experiências ela adorava ouvir. Além disso, era muito atenta aos detalhes, do tom de voz de alguém até o menor sinal de desconforto, e sempre estava pronta para oferecer palavras de conforto ou simplesmente ouvir. No tempo livre, Pérola gostava de ler romances clássicos, praticar jardinagem e fazer bolos, habilidades que herdou de sua avó. Ela também adorava plantas e mantinha um pequeno jardim de ervas medicinais em casa, que usava para preparar chás especiais para amigos e colegas. Pérola se aproximou de Julia, ajeitando o cobertor sobre ela com cuidado. — Está com frio? Posso arrumar outro lençol, se precisar. — Não, está bom assim. — respondeu Julia, meio sem jeito. — Gosto do frio. Eu sou a Julia. — Prazer, Julia. Soube que anda meio esquecida… — disse Pérola, num tom brincalhão, com um sorriso no rosto. — As notícias correm rápido por aqui, né? — respondeu Julia, rindo também. — Bom, do jeito que você chegou, minha amiga, é um milagre estar aqui. Alguém lá em cima gosta muito de você. — Estava tão ruim assim? — perguntou Julia, curiosa. — Muito ruim. — respondeu balançando a cabeça positivamente. — Você passou por várias cirurgias e está aqui há umas duas semanas. Pérola segurou a mão de Julia e apertou levemente, como se quisesse testar algo. Julia, por sua vez, apertou de volta, demonstrando força. — Pode ter certeza de que todos aqui estavam torcendo pela sua recuperação. Ver um paciente tão guerreiro como você nos dá ânimo e traz mais fé. — Pode me contar o que aconteceu comigo? — perguntou Julia, com curiosidade no olhar. — Claro que sim! Só deixa eu verificar meus outros pacientes, e já volto, tudo bem? — Claro, obrigada. As duas trocaram um sorriso antes de Pérola sair do quarto, deixando Julia sozinha, perdida em seus pensamentos. Ela tentava, em vão, se lembrar de algo, qualquer coisa que preenchesse o vazio em sua mente. Demorou um tempo considerável até Pérola retornar. Quando entrou novamente no quarto, trazia dois potes pequenos nas mãos, exibindo um sorriso acolhedor. — Voltei! E, para me desculpar pela demora, trouxe pudim de leite. A paciente do 320, Bernadete, não parava de falar. Sempre as mesmas reclamações... uma chatice. Pérola colocou os dois potes na mesinha ao lado da cama e ajustou a posição de Julia, elevando levemente a cabeceira. — Bom, pelo menos a Bernadete está com a cabeça boa... — disse Julia, com a voz carregada de tristeza. — Aposto que ela também pode se mexer à vontade. — Na verdade, não. — respondeu Pérola com delicadeza. — Ela está com a clavícula quebrada, depois de uma queda. Pérola falou num tom gentil, mas firme, como se quisesse animar Julia, embora seu esforço não tivesse surtido efeito imediato. — Escuta aqui, Julia. Você passou por muita coisa. Tenha certeza de que a maioria das pessoas não aguentaria o que você enfrentou. — Pérola segurou a mão dela novamente. — Segurei sua mão, apertei, e você correspondeu. Isso é força. — sentou-se na beira da cama, encarando-a com seriedade. — Você só precisa de um pouco mais de fé e paciência. Julia ouviu atentamente cada palavra. Sentiu-se tocada e, ao mesmo tempo, ligeiramente culpada por reclamar. Pérola tinha razão. Por muito menos, outras pessoas perdiam a vida. E ali estava ela, mesmo sem poder se mexer, viva e consciente. Talvez fosse hora de reconhecer sua força e valorizar a chance que tinha. — Me desculpe... — lamentou Julia, com a voz baixa. — Tudo bem. Vamos com calma, um dia de cada vez, combinado? — respondeu Pérola com um sorriso encorajador. — Agora, abre a boca e deixa eu te contar como você chegou aqui. Com um ar divertido, Pérola começou a dar o pudim a Julia como quem alimenta uma criança com papinha. Julia não conseguiu conter o riso diante do jeito carinhoso da enfermeira. — Assim está melhor! — disse Pérola, rindo junto com ela, enquanto enchia outra colher. — Bom, deixa eu te contar… E então, Pérola começou a narrar a história do que havia acontecido, seu tom de voz suave e envolvente, enquanto as duas compartilhavam o momento.Era a primeira noite de Pérola como enfermeira no hospital, e coincidentemente, Julia havia dado entrada naquela mesma noite chuvosa. A tempestade era semelhante à de agora: muita chuva e ventos fortes.No hospital, o clima era de expectativa. Com temporais assim, era comum o registro de várias ocorrências. Árvores caíam, a pista ficava cheia de poças e a visibilidade nas estradas era quase zero, criando condições perfeitas para acidentes.Apesar disso, o hospital estava calmo no início da noite. Durante o dia, vários pacientes haviam recebido alta ou sido transferidos. Sendo um hospital especializado em traumas, ele era sempre a primeira opção para socorros emergenciais.Pérola havia acabado de verificar alguns pacientes ao lado da enfermeira-chefe, que fazia questão de lhe apresentar o hospital e os colegas atarefados. A apresentação foi breve, pois, ao chegarem à emergência, notaram que o espaço começava a se encher de médicos e equipes aguardando a movimentação que o temporal prom
O primeiro a entrar em ação foi o doutor Cole, o neurocirurgião. Ele analisou a tomografia rapidamente antes de começar. A pressão intracraniana estava alta, um risco que não podia ser ignorado. Com movimentos firmes e precisos, realizou uma descompressão para aliviar a pressão, enquanto sua equipe o assistia com total atenção. O suor começava a aparecer em sua testa sob o brilho intenso das luzes cirúrgicas, mas Cole mantinha o foco.— Certo, isso deve estabilizar. Vamos verificar mais alguma coisa. — murmurou para si mesmo, enquanto inspecionava a área com cuidado.Após confirmar que não havia danos adicionais ao sistema nervoso central, Cole finalmente respirou aliviado. Ele se afastou da mesa cirúrgica e olhou para a doutora Martin, que já estava pronta para assumir a próxima etapa.Doutora Martin entrou em ação com a precisão de uma artesã. As fraturas expostas eram graves, mas não intimidavam a experiente ortopedista. Ela começou reconstruindo as estruturas ósseas da perna, util
Os dias se passaram e nada de Julia acordar. Teve que passar por mais cirurgias, e a torcida por sua recuperação era grande, embora se dividisse no medo de seu corpo não mais aguentar.– Vamos, querida, acorde. – falou Cole certa vez em uma de suas visitas a Julia.– Parece que ela precisa de mais descanso. – falou Martin, pensativa, para Cole.– Vamos levá-la para fazer exames. Temos que descobrir se há algo de errado, talvez tenhamos deixado algo passar. – disse Cole, com o temor evidente em sua voz.– Vamos ver, então, se há algo de errado com ela. – respondeu Martin.E levaram Julia mais uma vez para fazer exames.Os resultados mostraram que estava tudo bem, então só restava aguardar.Diante da preocupação crescente, o chefe dos cirurgiões decidiu convocar uma reunião com os médicos e o marido da paciente. Ele queria explicar que o hospital tinha feito tudo ao seu alcance, mas que o tempo agora era o principal aliado.– Senhor Green, sei que esta situação é extremamente difícil. –
– Não tem mais ninguém que possa te ajudar, Otto? – perguntou Katy em uma tarde.– Não, somos só eu e ela. Julia foi adotada por um casal que não podia ter filhos, e eu sou filho único. – contou ele, com uma expressão distante. – Deixamos tudo para trás na Filadélfia para começarmos uma vida nova.Katy ficou em silêncio por um momento, sentindo o peso da situação.– Bom, agora tem a gente. Você também precisa descansar.– Estou sem cabeça para nada. – Otto disse, com um suspiro, olhando para as mãos, como se buscasse respostas.– E o trabalho, Otto? Desculpe perguntar.– Não tem problema. – Otto sorriu levemente, tentando esconder a tristeza. – Sou advogado, pedi para ficar afastado por uns dias. – Ele respirou fundo, pensativo. – Sei que vou ter que voltar... mas como com ela aqui?Katy o olhou com cuidado, suas palavras vindo com suavidade, mas também com firmeza.– Como eu disse, Otto, você agora tem a gente. Precisa trabalhar, descansar... Julia vai ficar aqui por um longo tempo.
Perdida em seus pensamentos, tentando imaginar como era sua vida, Julia acabou adormecendo. Pérola, após terminar de cuidar dos pacientes, retornou ao quarto como prometido. Aconchegou-se na poltrona e começou a preencher os prontuários.Mesmo sendo muitos, conseguiu finalizá-los a tempo, encerrando seu turno com tudo em ordem.Já passava das 9 horas da manhã quando Julia despertou. Ainda sonolenta, virou-se e procurou por Pérola na poltrona, mas ela já não estava ali. Do lado de fora, os médicos, o chefe da equipe e Otto conversavam animadamente. Doutor Cole apertava a mão de Otto com firmeza, num gesto que demonstrava certa amizade.Ao perceberem que Julia os observava, acenaram e entraram no quarto.— Bom dia! — falaram todos ao mesmo tempo, animados.— Bom dia. — Julia respondeu com um sorriso.— Como está se sentindo hoje? — perguntou Dr. Cole.— Ainda sem memória. — respondeu de maneira amigável, mas logo seu tom mudou para um lamento. — A enfermeira Pérola ficou aqui esta noite
Com o clima tenso, os dois homens saíram do quarto, seguidos pelo diretor do hospital. O chefe dos cirurgiões, Marcos Garcia, permaneceu no quarto.— Vai ficar tudo bem. — disse Garcia, se aproximando de Otto, tentando oferecer alguma tranquilidade.Otto, visivelmente irritado e descontrolado, virou-se para ele.— Eles podem fazer isso? Minha esposa acabou de acordar! — Otto falou, o descontentamento evidente em sua voz.Garcia tentou manter a calma.— Otto, se acalme. Vamos ao refeitório, você precisa se acalmar. — disse ele com um tom suave, tentando controlar a situação.Otto, com os olhos marejados de lágrimas, respondeu entre soluços:— Calma como, Garcia? Ela nem sabe quem eu sou!— Calma, Otto, vamos. — Garcia insistiu, tocando no ombro dele, tentando guiá-lo para fora. — Você precisa se acalmar.Otto levantou-se rapidamente, enxugando as lágrimas com a mão, ainda visivelmente trêmulo.— Katy está lá fora, não se preocupe, eles não vão voltar tão cedo. — disse Garcia, tentando
Garcia e Otto, ao retornarem ao quarto, se depararam com a enfermeira-chefe e Julia abraçadas.— O que houve? — perguntou Otto, apreensivo.— Eu lembrei de uma voz — disse Julia, chorando.— Meu amor, que ótima notícia! — exclamou Otto, emocionado.Otto e Garcia se aproximaram das duas, que contaram o que havia acontecido. A felicidade tomou a todos.A notícia se espalhou pelo hospital. Pessoas envolvidas na cirurgia de Julia foram dar uma espiada; outras, que não participaram, mas estavam curiosas, fizeram o mesmo. Até a doutora Martin a visitou naquele dia, mais animada que o normal.— Agora vamos, deixem Julia descansar um pouco — disse Martin, colocando todos para fora e fechando a persiana para impedir a visão de quem passasse pelo corredor.— Obrigada, Martin, eu já estava ficando zonza — falou Julia, aliviada.— Você agora é uma pop star, tem que se acostumar — brincou Martin, piscando para ela.Martin fechou a porta ao sair, deixando o casal a sós.Otto segurou a mão de Julia
Julia despertou e viu que Otto ainda estava lá. Ficou feliz em saber que não estaria só naquela noite. Ao olhar pela janela, viu o céu negro; não se podiam ver as estrelas, porém não chovia.Esticou o braço, pegou um dos livros que estavam ao lado da cama e o analisou, como se olhar algo de que gostasse pudesse fazer alguma lembrança retornar. Respirou fundo, lembrando-se de que precisava ter paciência.— Não seja ansiosa, tenha calma... Está indo bem — falou para si mesma.Apoiou o livro no braço engessado e começou a ler.Já havia se passado um bom tempo quando Otto despertou, mas ela nem percebeu, imersa na leitura. Ele ficou em silêncio, apenas observando-a. Havia algo hipnotizante na forma como seus olhos percorriam as páginas, como franzia levemente a testa quando encontrava algo que exigia mais atenção.Otto sentiu o peito aquecer. Seu amor por Julia era avassalador, uma força silenciosa que o dominava por completo. Não era apenas afeição ou carinho — era devoção. Tudo nela o f