Era a primeira noite de Pérola como enfermeira no hospital, e coincidentemente, Julia havia dado entrada naquela mesma noite chuvosa. A tempestade era semelhante à de agora: muita chuva e ventos fortes.
No hospital, o clima era de expectativa. Com temporais assim, era comum o registro de várias ocorrências. Árvores caíam, a pista ficava cheia de poças e a visibilidade nas estradas era quase zero, criando condições perfeitas para acidentes. Apesar disso, o hospital estava calmo no início da noite. Durante o dia, vários pacientes haviam recebido alta ou sido transferidos. Sendo um hospital especializado em traumas, ele era sempre a primeira opção para socorros emergenciais. Pérola havia acabado de verificar alguns pacientes ao lado da enfermeira-chefe, que fazia questão de lhe apresentar o hospital e os colegas atarefados. A apresentação foi breve, pois, ao chegarem à emergência, notaram que o espaço começava a se encher de médicos e equipes aguardando a movimentação que o temporal prometia trazer. — Pessoal, nosso primeiro acidente! É grave, quero todos atentos! — anunciou o chefe de cirurgia do hospital, sua voz forte e marcante ecoando pela sala. — Cadê meus cirurgiões de ortopedia e neuro? — Aqui, chefe! — responderam em uníssono, os dois médicos se destacando na multidão. — Ótimo. Vocês terão muito trabalho hoje. — afirmou, com um tom sério, enquanto os dois se aproximavam para ouvir as instruções. Mesmo com a conversa direcionada a eles, o chefe continuava falando em voz alta, garantindo que todos na sala entendessem a gravidade da situação. A tensão no ambiente era palpável, mas o clima de profissionalismo mantinha a equipe focada e pronta para agir. — Mulher, 28 anos, atropelada por uma van. O motorista perdeu o controle na chuva, mas, mesmo assim, a atingiu em cheio. A situação dela é bastante grave: perna e braço quebrados, fratura exposta. — O chefe fez uma pausa, olhando para os cirurgiões. — Preciso que a ortopedia e a neuro trabalhem juntos. Sabe lá Deus o que pode ter acontecido com essa mulher. — A última frase saiu mais baixa, quase como um desabafo. — Deus sabendo ou não, vamos fazer o nosso trabalho, chefe. — disse o neurocirurgião com firmeza. — Para mim está fácil, reconstruo ossos como mágica. — comentou a ortopedista, com um leve sorriso confiante. O neurocirurgião olhou para ela, a determinação nos olhos. — Pronta para trabalhar comigo novamente, doutora Martin? — Com toda certeza, doutor Cole. — respondeu ela, sem hesitar. A troca de palavras carregava um misto de profissionalismo e cumplicidade, enquanto ambos se preparavam para enfrentar mais um desafio juntos. Os dois apertaram as mãos com grandes sorrisos no rosto, uma atitude que fez o chefe cruzar os braços e balançar a cabeça positivamente, aprovando a interação. — Vamos mostrar o quanto esse hospital é bom. Cole, Martin, vou trabalhar com vocês hoje. — declarou o chefe, decidido. — O trio de ouro está de volta! — comemorou o doutor Cole, com entusiasmo. De longe, Pérola observava a cena. Apesar da aparente camaradagem, ela não pôde deixar de achar que os três tinham o ego um pouco elevado. — Eles se acham os bambambãs, né? — comentou Pérola para a chefe dos enfermeiros, cruzando os braços e observando o trio. — Eles não só se acham, como são deuses no que fazem. — respondeu a chefe, com um sorriso confiante. — Vai trabalhar com eles hoje, Pérola. Você vai ver do que são capazes. Depois me conta o que achou. — concluiu, piscando de forma descontraída. Pérola esboçou um sorriso leve, ainda intrigada, mas curiosa para descobrir se toda aquela confiança era justificada. O chefe passou várias orientações, montou a equipe e distribuiu as tarefas, deixando todos em posição de prontidão enquanto aguardavam ansiosamente a chegada da ambulância. Por conta do temporal lá fora, a espera foi mais longa do que o esperado. Quando o som da sirene finalmente ecoou, todos os que haviam sido chamados pelo chefe saíram apressados para a entrada da emergência. No entanto, ainda não era Julia. — Esse é o motorista da van. Está drogado e bêbado. A mulher está vindo logo atrás. E, para piorar, na van tinham mais cinco nas mesmas condições que ele. — informou o motorista da ambulância, enquanto cumprimentava o chefe. A ortopedista, sempre ágil, entrou na emergência e imediatamente chamou a segunda equipe para ajudar com o homem. Após organizarem o transporte do paciente para dentro, ela voltou para o lado do chefe, ajustando a postura e mantendo o foco. — Como está a situação, Kevin? — perguntou o chefe, a preocupação evidente em sua voz firme. — Somente a mulher está em estado grave, chefe. A coisa está feia... sinceramente, não sei se ela vai conseguir... — respondeu o motorista da ambulância, o tom grave de suas palavras aumentando a tensão no ar. — Tudo bem. — interrompeu o chefe, com um aceno rápido. — Obrigado, Kevin. Bom trabalho. Kevin assentiu e se afastou, deixando o chefe e a equipe focados no próximo desafio que se aproximava. O motorista da ambulância aguardou que seus colegas retornassem para se organizar. Assim que o paciente foi acomodado dentro do hospital, ele entrou novamente na ambulância e partiu para buscar os outros. Minutos depois, o som das sirenes voltou a ecoar na estrada da emergência, chamando a atenção de todos. A equipe já em alerta, se posicionou enquanto a ambulância estacionava. O motorista abriu rapidamente as portas traseiras, e uma maca foi retirada com cuidado. A mulher estava coberta por um cobertor grosso, usado para tentar manter o corpo aquecido contra o frio e a chuva incessante. Mesmo coberta, os ferimentos visíveis já contavam uma história de dor. Seu rosto tinha uma grande mancha roxa na lateral, provavelmente resultado do impacto. Acima da sobrancelha, um corte profundo sangrava discretamente, mas a equipe sabia que precisaria de pontos. — Rápido, levem direto para o centro cirúrgico! — ordenou o chefe, movimentando a equipe em sincronia. A maca foi empurrada com agilidade pelos corredores, o som dos passos e das rodas ecoando no ambiente tenso. Ao chegarem ao centro cirúrgico, retiraram o cobertor para avaliar a situação com mais clareza. O que viram confirmou os temores do chefe. As fraturas expostas chamavam atenção: um dos ossos da perna atravessava a pele em um ângulo assustador, enquanto o braço apresentava cortes profundos, resultado do impacto e do arrasto na pista molhada. A chuva, por mais intensa que fosse, havia limpado parte do sangue, revelando a gravidade dos machucados. O silêncio tomou conta da sala por alguns segundos, enquanto os olhos dos cirurgiões se encontravam em um acordo mútuo de determinação. O chefe respirou fundo, rompendo a pausa: — Vamos lá, pessoal. Nós sabemos o que fazer. E assim, com um misto de tensão e foco, a equipe começou a trabalhar, cientes de que cada segundo seria crucial.O primeiro a entrar em ação foi o doutor Cole, o neurocirurgião. Ele analisou a tomografia rapidamente antes de começar. A pressão intracraniana estava alta, um risco que não podia ser ignorado. Com movimentos firmes e precisos, realizou uma descompressão para aliviar a pressão, enquanto sua equipe o assistia com total atenção. O suor começava a aparecer em sua testa sob o brilho intenso das luzes cirúrgicas, mas Cole mantinha o foco.— Certo, isso deve estabilizar. Vamos verificar mais alguma coisa. — murmurou para si mesmo, enquanto inspecionava a área com cuidado.Após confirmar que não havia danos adicionais ao sistema nervoso central, Cole finalmente respirou aliviado. Ele se afastou da mesa cirúrgica e olhou para a doutora Martin, que já estava pronta para assumir a próxima etapa.Doutora Martin entrou em ação com a precisão de uma artesã. As fraturas expostas eram graves, mas não intimidavam a experiente ortopedista. Ela começou reconstruindo as estruturas ósseas da perna, util
Os dias se passaram e nada de Julia acordar. Teve que passar por mais cirurgias, e a torcida por sua recuperação era grande, embora se dividisse no medo de seu corpo não mais aguentar.– Vamos, querida, acorde. – falou Cole certa vez em uma de suas visitas a Julia.– Parece que ela precisa de mais descanso. – falou Martin, pensativa, para Cole.– Vamos levá-la para fazer exames. Temos que descobrir se há algo de errado, talvez tenhamos deixado algo passar. – disse Cole, com o temor evidente em sua voz.– Vamos ver, então, se há algo de errado com ela. – respondeu Martin.E levaram Julia mais uma vez para fazer exames.Os resultados mostraram que estava tudo bem, então só restava aguardar.Diante da preocupação crescente, o chefe dos cirurgiões decidiu convocar uma reunião com os médicos e o marido da paciente. Ele queria explicar que o hospital tinha feito tudo ao seu alcance, mas que o tempo agora era o principal aliado.– Senhor Green, sei que esta situação é extremamente difícil. –
– Não tem mais ninguém que possa te ajudar, Otto? – perguntou Katy em uma tarde.– Não, somos só eu e ela. Julia foi adotada por um casal que não podia ter filhos, e eu sou filho único. – contou ele, com uma expressão distante. – Deixamos tudo para trás na Filadélfia para começarmos uma vida nova.Katy ficou em silêncio por um momento, sentindo o peso da situação.– Bom, agora tem a gente. Você também precisa descansar.– Estou sem cabeça para nada. – Otto disse, com um suspiro, olhando para as mãos, como se buscasse respostas.– E o trabalho, Otto? Desculpe perguntar.– Não tem problema. – Otto sorriu levemente, tentando esconder a tristeza. – Sou advogado, pedi para ficar afastado por uns dias. – Ele respirou fundo, pensativo. – Sei que vou ter que voltar... mas como com ela aqui?Katy o olhou com cuidado, suas palavras vindo com suavidade, mas também com firmeza.– Como eu disse, Otto, você agora tem a gente. Precisa trabalhar, descansar... Julia vai ficar aqui por um longo tempo.
Perdida em seus pensamentos, tentando imaginar como era sua vida, Julia acabou adormecendo. Pérola, após terminar de cuidar dos pacientes, retornou ao quarto como prometido. Aconchegou-se na poltrona e começou a preencher os prontuários.Mesmo sendo muitos, conseguiu finalizá-los a tempo, encerrando seu turno com tudo em ordem.Já passava das 9 horas da manhã quando Julia despertou. Ainda sonolenta, virou-se e procurou por Pérola na poltrona, mas ela já não estava ali. Do lado de fora, os médicos, o chefe da equipe e Otto conversavam animadamente. Doutor Cole apertava a mão de Otto com firmeza, num gesto que demonstrava certa amizade.Ao perceberem que Julia os observava, acenaram e entraram no quarto.— Bom dia! — falaram todos ao mesmo tempo, animados.— Bom dia. — Julia respondeu com um sorriso.— Como está se sentindo hoje? — perguntou Dr. Cole.— Ainda sem memória. — respondeu de maneira amigável, mas logo seu tom mudou para um lamento. — A enfermeira Pérola ficou aqui esta noite
Com o clima tenso, os dois homens saíram do quarto, seguidos pelo diretor do hospital. O chefe dos cirurgiões, Marcos Garcia, permaneceu no quarto.— Vai ficar tudo bem. — disse Garcia, se aproximando de Otto, tentando oferecer alguma tranquilidade.Otto, visivelmente irritado e descontrolado, virou-se para ele.— Eles podem fazer isso? Minha esposa acabou de acordar! — Otto falou, o descontentamento evidente em sua voz.Garcia tentou manter a calma.— Otto, se acalme. Vamos ao refeitório, você precisa se acalmar. — disse ele com um tom suave, tentando controlar a situação.Otto, com os olhos marejados de lágrimas, respondeu entre soluços:— Calma como, Garcia? Ela nem sabe quem eu sou!— Calma, Otto, vamos. — Garcia insistiu, tocando no ombro dele, tentando guiá-lo para fora. — Você precisa se acalmar.Otto levantou-se rapidamente, enxugando as lágrimas com a mão, ainda visivelmente trêmulo.— Katy está lá fora, não se preocupe, eles não vão voltar tão cedo. — disse Garcia, tentando
Garcia e Otto, ao retornarem ao quarto, se depararam com a enfermeira-chefe e Julia abraçadas.— O que houve? — perguntou Otto, apreensivo.— Eu lembrei de uma voz — disse Julia, chorando.— Meu amor, que ótima notícia! — exclamou Otto, emocionado.Otto e Garcia se aproximaram das duas, que contaram o que havia acontecido. A felicidade tomou a todos.A notícia se espalhou pelo hospital. Pessoas envolvidas na cirurgia de Julia foram dar uma espiada; outras, que não participaram, mas estavam curiosas, fizeram o mesmo. Até a doutora Martin a visitou naquele dia, mais animada que o normal.— Agora vamos, deixem Julia descansar um pouco — disse Martin, colocando todos para fora e fechando a persiana para impedir a visão de quem passasse pelo corredor.— Obrigada, Martin, eu já estava ficando zonza — falou Julia, aliviada.— Você agora é uma pop star, tem que se acostumar — brincou Martin, piscando para ela.Martin fechou a porta ao sair, deixando o casal a sós.Otto segurou a mão de Julia
Julia despertou e viu que Otto ainda estava lá. Ficou feliz em saber que não estaria só naquela noite. Ao olhar pela janela, viu o céu negro; não se podiam ver as estrelas, porém não chovia.Esticou o braço, pegou um dos livros que estavam ao lado da cama e o analisou, como se olhar algo de que gostasse pudesse fazer alguma lembrança retornar. Respirou fundo, lembrando-se de que precisava ter paciência.— Não seja ansiosa, tenha calma... Está indo bem — falou para si mesma.Apoiou o livro no braço engessado e começou a ler.Já havia se passado um bom tempo quando Otto despertou, mas ela nem percebeu, imersa na leitura. Ele ficou em silêncio, apenas observando-a. Havia algo hipnotizante na forma como seus olhos percorriam as páginas, como franzia levemente a testa quando encontrava algo que exigia mais atenção.Otto sentiu o peito aquecer. Seu amor por Julia era avassalador, uma força silenciosa que o dominava por completo. Não era apenas afeição ou carinho — era devoção. Tudo nela o f
Os dias foram passando, e a melhora de Julia era evidente. Seu corpo se fortalecia a cada dia, mesmo que sua memória ainda não tivesse voltado.Movimentos simples, como pentear o cabelo e levar a comida à boca, que antes pareciam impossíveis, agora eram parte de sua rotina. Cada pequena conquista era celebrada.— Em breve, você terá alta, mas precisará continuar com a reabilitação — disse o doutor Cole.— Aluguei uma casa aqui perto. Achei que seria o melhor para ela — respondeu Otto.— Isso vai ajudar muito! — Cole se aproximou e apertou a mão de Otto. — Vocês não precisam mais de mim, mas, mesmo assim, virei vê-la de vez em quando. Otto, sua dedicação faz toda a diferença.— Ela é o que eu tenho de mais precioso, Cole — disse Otto, com firmeza.O doutor Cole saiu do quarto, mas o dia continuou trazendo visitas para Julia. Entre elas, os policiais Black e Wilson. Dessa vez, a postura deles parecia diferente — mais amigável, talvez até mais receptiva.— Bom dia — disseram os dois ao e