– Não tem mais ninguém que possa te ajudar, Otto? – perguntou Katy em uma tarde.
– Não, somos só eu e ela. Julia foi adotada por um casal que não podia ter filhos, e eu sou filho único. – contou ele, com uma expressão distante. – Deixamos tudo para trás na Filadélfia para começarmos uma vida nova. Katy ficou em silêncio por um momento, sentindo o peso da situação. – Bom, agora tem a gente. Você também precisa descansar. – Estou sem cabeça para nada. – Otto disse, com um suspiro, olhando para as mãos, como se buscasse respostas. – E o trabalho, Otto? Desculpe perguntar. – Não tem problema. – Otto sorriu levemente, tentando esconder a tristeza. – Sou advogado, pedi para ficar afastado por uns dias. – Ele respirou fundo, pensativo. – Sei que vou ter que voltar... mas como com ela aqui? Katy o olhou com cuidado, suas palavras vindo com suavidade, mas também com firmeza. – Como eu disse, Otto, você agora tem a gente. Precisa trabalhar, descansar... Julia vai ficar aqui por um longo tempo. Pode não ter ninguém lá fora, mas pode ter certeza de que todos aqui vão te ajudar. Otto a olhou, os olhos carregados de gratidão, mas também de um vazio difícil de preencher. – Eu nem tenho como agradecer... Está sendo muito difícil para mim. – E vai ficar ainda mais difícil quando ela acordar. – Katy pousou a mão no ombro de Otto, com um gesto reconfortante. – Vai precisar de força e fé, Otto. Não vai ser fácil, mas você não está sozinho. Otto escutou as palavras de Katy com atenção, absorvendo cada uma delas, quando percebeu que o chefe estava parado na porta, com um sorriso de satisfação no rosto. – Katy tem razão, Otto. – disse o chefe, entrando no quarto com passos calmos, sua voz cheia de compreensão. – Se acha difícil agora, nem imagina o quão desafiador será quando ela acordar e começar a reabilitação. Otto o olhou, os olhos cansados, mas sua postura ainda tensa. O chefe deu um sorriso suave, como quem já havia presenciado tudo isso antes. – Soube que anda desanimado, já vi isso, cansei de ver, na verdade. – ele continuou, com um tom de firmeza e empatia. – Vamos ter fé, Otto. Sim, só mais um pouco. Otto respirou fundo, balançando a cabeça, como se tentasse organizar os pensamentos. – Eu sei que preciso descansar, trabalhar... Mas deixar ela aqui, sozinha, só parece tão errado. – ele murmurou, a voz baixa e cheia de preocupação. – Parece que você não ouviu a Katy. – respondeu o chefe, com um sorriso acolhedor. – Ela não estará sozinha. E este hospital será seu lar por um período. Todos aqui são dedicados, e se dizemos que você pode confiar, é porque garantimos que tudo fique bem. Katy se aproximou, com um olhar tranquilo e confiante. – Vá para casa, descanse. Volte aos poucos à rotina. – ela falou suavemente, tentando aliviar a tensão dele. – Olha, temos uma enfermeira nova, a Pérola. Ela foi designada especialmente para a Julia desde a cirurgia. Ela fica aqui à noite, sempre atenta a tudo o que acontece. Você pode vir durante o dia e, à noite, ir para casa despreocupado. Otto olhou para ela, o peso nos ombros um pouco mais leve, mas ainda assim relutante. – Isso vai me ajudar... eu sei que vai. – respondeu ele, ainda com a voz um pouco rouca, mas demonstrando um sinal de aceitação. Otto olhou para eles, ainda sentado na poltrona. Suas costas doíam, o pescoço também estava um pouco dolorido; dormir ali por dias realmente não era a melhor opção. Seus pés latejavam, resultado de tanto tempo usando sapatos apertados. Pensou em sua casa, que provavelmente estava bem empoeirada. Como receberia sua esposa naquelas condições? Ele sabia que teria que confiar nas palavras dos dois à sua frente. – É... acho que vocês têm razão. – disse finalmente, com um suspiro, sua voz mais tranquila. – Ela ficará bem, não se preocupe. Qualquer coisa, avisaremos você. – disse o chefe, com um sorriso tranquilo, tentando transmitir segurança. Otto assentiu, um sorriso sem jeito se formando em seu rosto. Levantou-se da poltrona, sentindo o peso da decisão, e foi embora. Desde então, Otto passava os dias no hospital, lendo livros e trabalhando no notebook para passar o tempo. À noite, ia para casa, confiando nos cuidados do hospital e nos profissionais que, ele agora sabia, estavam fazendo tudo o que podiam para cuidar de Julia. – Por isso ele não está aqui agora. – disse Julia, após ouvir toda a história. – Exato. E nas minhas folgas, outros enfermeiros ficam de olho em você. Então, você nunca ficou sozinha. Ah, e se olhar ali... – apontou para a janela que dava para a recepção. – Sempre vai ter alguém ali, então você nunca ficou só. – Legal. – Julia sorriu, agora mais tranquila. – Então, deixamos tudo para trás e viemos para cá. – ela falou pensativa. – Então... onde estou? – York, Reino Unido – O quê?! – Julia exclamou, surpresa. – Que diabo vim fazer no Reino Unido? – Olha, eu não sei, mas eu soube que vocês decidiram começar uma vida nova. Que você estava tentando uma nova carreira e vieram para cá. – Carreira nova? – Julia continuou pensativa, tentando recordar algo. – Escritora. – Eu sou escritora? – ela perguntou, mais uma vez surpresa, tentando processar a informação. – Sim, você era colunista em um jornal local. – Uau! – exclamou Julia, com um sorriso no rosto. – Isso é muita coisa. – Sim. Ele estava bem preocupado com seu braço justamente por isso. – Pérola disse, levantando-se da cama. – Bom, já te contei bem mais do que prometi, preciso dar uma voltinha... quase esqueci da minha ronda, se a Katy descobre… Julia olhou para Pérola quase suplicando que ela não fosse, mesmo sabendo que a enfermeira tinha que trabalhar. – Não se preocupe, eu volto. Prometo fazer da poltrona meu trono. – Pérola disse, saindo com uma risada, deixando Julia sozinha com seus pensamentos. Julia ficou ali, refletindo sobre tudo o que acabara de descobrir. Ela era casada, morou na Filadélfia, era colunista em um jornal local e, de repente, havia decidido se mudar para começar uma nova carreira... escritora. Será que agora se lembraria de mais coisas? Ela pensou, a mente ainda girando com tantas novas informações.Perdida em seus pensamentos, tentando imaginar como era sua vida, Julia acabou adormecendo. Pérola, após terminar de cuidar dos pacientes, retornou ao quarto como prometido. Aconchegou-se na poltrona e começou a preencher os prontuários.Mesmo sendo muitos, conseguiu finalizá-los a tempo, encerrando seu turno com tudo em ordem.Já passava das 9 horas da manhã quando Julia despertou. Ainda sonolenta, virou-se e procurou por Pérola na poltrona, mas ela já não estava ali. Do lado de fora, os médicos, o chefe da equipe e Otto conversavam animadamente. Doutor Cole apertava a mão de Otto com firmeza, num gesto que demonstrava certa amizade.Ao perceberem que Julia os observava, acenaram e entraram no quarto.— Bom dia! — falaram todos ao mesmo tempo, animados.— Bom dia. — Julia respondeu com um sorriso.— Como está se sentindo hoje? — perguntou Dr. Cole.— Ainda sem memória. — respondeu de maneira amigável, mas logo seu tom mudou para um lamento. — A enfermeira Pérola ficou aqui esta noite
Com o clima tenso, os dois homens saíram do quarto, seguidos pelo diretor do hospital. O chefe dos cirurgiões, Marcos Garcia, permaneceu no quarto.— Vai ficar tudo bem. — disse Garcia, se aproximando de Otto, tentando oferecer alguma tranquilidade.Otto, visivelmente irritado e descontrolado, virou-se para ele.— Eles podem fazer isso? Minha esposa acabou de acordar! — Otto falou, o descontentamento evidente em sua voz.Garcia tentou manter a calma.— Otto, se acalme. Vamos ao refeitório, você precisa se acalmar. — disse ele com um tom suave, tentando controlar a situação.Otto, com os olhos marejados de lágrimas, respondeu entre soluços:— Calma como, Garcia? Ela nem sabe quem eu sou!— Calma, Otto, vamos. — Garcia insistiu, tocando no ombro dele, tentando guiá-lo para fora. — Você precisa se acalmar.Otto levantou-se rapidamente, enxugando as lágrimas com a mão, ainda visivelmente trêmulo.— Katy está lá fora, não se preocupe, eles não vão voltar tão cedo. — disse Garcia, tentando
Garcia e Otto, ao retornarem ao quarto, se depararam com a enfermeira-chefe e Julia abraçadas.— O que houve? — perguntou Otto, apreensivo.— Eu lembrei de uma voz — disse Julia, chorando.— Meu amor, que ótima notícia! — exclamou Otto, emocionado.Otto e Garcia se aproximaram das duas, que contaram o que havia acontecido. A felicidade tomou a todos.A notícia se espalhou pelo hospital. Pessoas envolvidas na cirurgia de Julia foram dar uma espiada; outras, que não participaram, mas estavam curiosas, fizeram o mesmo. Até a doutora Martin a visitou naquele dia, mais animada que o normal.— Agora vamos, deixem Julia descansar um pouco — disse Martin, colocando todos para fora e fechando a persiana para impedir a visão de quem passasse pelo corredor.— Obrigada, Martin, eu já estava ficando zonza — falou Julia, aliviada.— Você agora é uma pop star, tem que se acostumar — brincou Martin, piscando para ela.Martin fechou a porta ao sair, deixando o casal a sós.Otto segurou a mão de Julia
Julia despertou e viu que Otto ainda estava lá. Ficou feliz em saber que não estaria só naquela noite. Ao olhar pela janela, viu o céu negro; não se podiam ver as estrelas, porém não chovia.Esticou o braço, pegou um dos livros que estavam ao lado da cama e o analisou, como se olhar algo de que gostasse pudesse fazer alguma lembrança retornar. Respirou fundo, lembrando-se de que precisava ter paciência.— Não seja ansiosa, tenha calma... Está indo bem — falou para si mesma.Apoiou o livro no braço engessado e começou a ler.Já havia se passado um bom tempo quando Otto despertou, mas ela nem percebeu, imersa na leitura. Ele ficou em silêncio, apenas observando-a. Havia algo hipnotizante na forma como seus olhos percorriam as páginas, como franzia levemente a testa quando encontrava algo que exigia mais atenção.Otto sentiu o peito aquecer. Seu amor por Julia era avassalador, uma força silenciosa que o dominava por completo. Não era apenas afeição ou carinho — era devoção. Tudo nela o f
Os dias foram passando, e a melhora de Julia era evidente. Seu corpo se fortalecia a cada dia, mesmo que sua memória ainda não tivesse voltado.Movimentos simples, como pentear o cabelo e levar a comida à boca, que antes pareciam impossíveis, agora eram parte de sua rotina. Cada pequena conquista era celebrada.— Em breve, você terá alta, mas precisará continuar com a reabilitação — disse o doutor Cole.— Aluguei uma casa aqui perto. Achei que seria o melhor para ela — respondeu Otto.— Isso vai ajudar muito! — Cole se aproximou e apertou a mão de Otto. — Vocês não precisam mais de mim, mas, mesmo assim, virei vê-la de vez em quando. Otto, sua dedicação faz toda a diferença.— Ela é o que eu tenho de mais precioso, Cole — disse Otto, com firmeza.O doutor Cole saiu do quarto, mas o dia continuou trazendo visitas para Julia. Entre elas, os policiais Black e Wilson. Dessa vez, a postura deles parecia diferente — mais amigável, talvez até mais receptiva.— Bom dia — disseram os dois ao e
— Eu não sabia como contar… Fiquei pensando o tempo todo em como você reagiria — Otto disse, entrando no quarto, a voz carregada de hesitação.Julia, tomada pela raiva e pela dor, atirou o livro que estava em seu colo para longe, fazendo-o cair no chão com um som seco.— Eu quase morri, Otto! Por causa de um bêbado desgraçado! — Ela não conseguiu esconder a frustração que transbordava.Ele se aproximou, a expressão de preocupação crescendo, tentando encontrar palavras que a acalmassem.— Julia, por favor, se acalme. Eles estão presos. Já estão pagando pelo que fizeram...Ela o interrompeu, o peito subindo e descendo rapidamente enquanto as palavras saíam com a dor de uma ferida aberta.— Eu quase morri, Otto! Eu quase morri! Você sabe disso!Otto, sem saber o que mais dizer, sentou-se na cama e a puxou para um abraço, tentando envolver a dor dela com seu próprio corpo, desejando que pudesse fazer tudo desaparecer.— Me desculpe, você devia saber por mim... — Otto disse, a voz carregad
Julia ligou a TV e tentou se distrair com a programação, mas a inquietação crescia. Começava a achar que Otto não voltaria mais ao quarto. O cansaço, no entanto, venceu suas preocupações, e ela acabou pegando no sono enquanto esperava.Um tempo depois, despertou. Piscaram algumas vezes antes de perceber que Otto estava ali, sentado na poltrona, com os olhos fixos no notebook.Ela o observou em silêncio. O rosto fino, a pele clara, os olhos azuis atentos à tela. O nariz afilado e os lábios pequenos, porém bem desenhados. A barba por fazer lhe dava um ar despreocupado, mas não o deixava menos bonito. Os cabelos castanhos claros estavam penteados para o lado, sempre alinhados. Alto e forte, parecia cuidar bem da saúde.Otto tirou os olhos do notebook e os fixou em Júlia, que ainda o observava. O silêncio entre eles se alongou, carregado de algo que nenhum dos dois conseguia nomear. Então, Julia decidiu desabafar.— Não sei se estou ficando louca ou sendo injusta com você. — Baixou o olha
Otto passou mais uma noite ao lado de Julia. Mostrou fotos, relembrou passeios, festas e momentos especiais que compartilharam. Falou também sobre Zoe—seus olhos brilhavam ao mencionar a garotinha, e isso tocou Julia de uma forma que ela não soube explicar.Ainda hesitante, ela tentou manter certa distância, mas as palavras da enfermeira ecoavam em sua mente. Estava sem memória, e a única pessoa ao seu lado era Otto. Confiar nele parecia ser sua melhor opção.Aos poucos, permitiu que ele se aproximasse. Havia algo reconfortante em seu toque suave, cuidadoso, como se quisesse protegê-la de tudo.Julia passou a observá-lo melhor. Não seu físico, mas seu jeito. Otto era carinhoso, atencioso. Quando falava sobre os momentos que viveram juntos, seus olhos se iluminavam, e dava para sentir, em cada palavra, o que ele sentia por ela. Isso a deixou sem jeito—não se lembrava de nada, e seus sentimentos eram uma completa bagunça.Quando mencionava a filha,