Perdida em seus pensamentos, tentando imaginar como era sua vida, Julia acabou adormecendo. Pérola, após terminar de cuidar dos pacientes, retornou ao quarto como prometido. Aconchegou-se na poltrona e começou a preencher os prontuários.
Mesmo sendo muitos, conseguiu finalizá-los a tempo, encerrando seu turno com tudo em ordem. Já passava das 9 horas da manhã quando Julia despertou. Ainda sonolenta, virou-se e procurou por Pérola na poltrona, mas ela já não estava ali. Do lado de fora, os médicos, o chefe da equipe e Otto conversavam animadamente. Doutor Cole apertava a mão de Otto com firmeza, num gesto que demonstrava certa amizade. Ao perceberem que Julia os observava, acenaram e entraram no quarto. — Bom dia! — falaram todos ao mesmo tempo, animados. — Bom dia. — Julia respondeu com um sorriso. — Como está se sentindo hoje? — perguntou Dr. Cole. — Ainda sem memória. — respondeu de maneira amigável, mas logo seu tom mudou para um lamento. — A enfermeira Pérola ficou aqui esta noite. Conversamos bastante, mas ainda não consigo me lembrar de nada… Otto se aproximou, trazendo um buquê. Com um gesto carinhoso, beijou o rosto de Julia. — Sobre o que conversaram? — perguntou ele, curioso. — Ah, ela me contou sobre a noite em que cheguei, disse que decidimos começar uma vida nova… mas eu simplesmente não consigo lembrar de nada. — Julia suspirou. — É tão estranho… todo mundo sabe mais sobre mim do que eu mesma. Dr. Cole sorriu com suavidade. — Não se cobre tanto, Julia. As lembranças vão voltar aos poucos. — fez uma breve pausa, então acrescentou em tom animador: — Para te alegrar um pouco, tenho boas notícias. Os resultados dos exames estão ótimos! Agora é só aguardar mais um pouco para começar a reabilitação. Otto colocou o buquê ao lado da cama e se afastou um pouco enquanto Dr. Cole continuava ao lado de Julia. — E se não voltar? — A pergunta escapou em um tom hesitante, revelando seu medo. Dr. Cole a encarou com gentileza antes de responder: — É uma possibilidade… — disse com honestidade. — Mas vamos pensar positivo, está bem? Julia respirou fundo e forçou um pequeno sorriso. — Está bem… — respondeu, sem muita convicção. Dr. Cole assentiu, lançando-lhe um olhar tranquilizador antes de sair do quarto junto com os outros médicos. Assim que ficaram a sós, Otto pegou uma mochila que havia trazido. De dentro, tirou um notebook, deixando-o ao lado da cama de Julia. Depois, retirou alguns livros e um porta-retrato com uma foto dos dois em uma praia. Enquanto ele organizava os objetos pelo quarto, Julia o observava em silêncio, como se tentasse, de alguma forma, puxar da memória alguma lembrança daquela imagem. — Está com fome? — perguntou ele, quebrando o silêncio. — Sim. — Certo, já volto. Otto saiu apressado do quarto e demorou alguns minutos para retornar. Quando voltou, trazia consigo rosquinhas, cappuccino e um pedaço de torta de frango. Com cuidado, elevou a cama de Julia, colocou a comida na mesinha e, em seguida, sentou-se ao lado dela. Os dois começaram a comer em silêncio, mas havia algo reconfortante naquele momento compartilhado. Otto demonstrava delicadeza e calma em cada gesto. Era evidente o imenso carinho que sentia por Julia. Durante o dia, não se afastava dela, permanecendo sempre por perto. Apenas à noite se ausentava, cumprindo o acordo que havia feito com o chefe. — E se minha memória não voltar? — perguntou ela novamente. — O que vai ser da minha vida? Otto respirou fundo antes de responder. — Julia, por favor… — disse com calma. — Os médicos já te explicaram que essa é uma possibilidade, mas você não pode se prender a isso. Dê tempo ao tempo. — E se minha memória nunca voltar? Como podemos continuar juntos se eu nem lembro quem você é? — Seu tom saiu mais elevado, carregado de frustração. Otto manteve a voz firme, mas serena. — Eu sempre vou ficar, Julia. Você lembrando ou não. Ela ficou em silêncio por um instante, absorvendo aquelas palavras. Então, Otto tentou aliviar a tensão: — Agora, me conta… sobre o que tanto conversou com a enfermeira? Enquanto tomavam café, Julia contou sobre a noite anterior. Falou de como Pérola havia sido gentil, da companhia agradável que ela proporcionava e de como sua presença a fazia se sentir um pouco menos perdida. Também compartilhou o que a enfermeira lhe dissera sobre seu passado e desabafou sobre a frustração de não ter nenhuma lembrança. — É estranho… — murmurou, pensativa. — Como se minha vida tivesse começado do nada. Otto a ouviu com atenção, sem interromper, apenas deixando que ela colocasse para fora o que sentia. — O que aconteceu para a gente largar tudo e querer recomeçar? — perguntou Julia, curiosa. Otto respirou fundo antes de responder. — Sempre falamos em viajar pelo mundo… Algumas coisas aconteceram e decidimos, enfim, fazer isso. — Sua voz era tranquila, mas carregava um peso. — Era um sonho nosso. Se eu soubesse que daria nisso… — lamentou, balançando a cabeça. Julia o observou com carinho. — A gente não podia imaginar, né? Não se culpe. — disse com doçura. Otto abaixou a cabeça, a tristeza evidente em seu rosto. — Eu pensei que podíamos esperar mais um pouco… Você estava começando algo novo, estava tão empolgada… Achei injusto dizer não. Julia segurou sua mão e a acariciou suavemente. — Olha, se era um sonho nosso, então não se lamente. Não tinha como a gente prever o que aconteceria. — Fez uma pausa e suspirou. — Só me preocupo em nunca me lembrar… Somos casados, e isso pode nos afetar. Você sabe. Otto apertou levemente a mão dela. — No momento, só me preocupo com você estar bem. O resto a gente resolve depois. — Mas eu estou bem… Quer dizer, estou viva. Otto desviou o olhar, sua expressão carregada de culpa. — É minha culpa… — murmurou, antes de começar a chorar. Nesse momento, dois homens entraram na sala. — Bom dia, Julia, correto? — perguntou um deles, com um tom sério e autoritário. Julia o olhou, confusa. — Sim. — Precisamos falar sobre o acidente. — Mas eu não me lembro de nada… — respondeu, com a voz baixa, ainda desorientada. — É necessário… — o homem insistiu, sem demonstrar muita empatia. Foi então que a porta se abriu novamente. Um homem entrou com uma postura firme, sua voz forte deixando claro que era uma figura importante no hospital. Ele era um negro alto, usando um jaleco, e estava acompanhado pelo chefe de cirurgia. Otto, que estava sentado ao lado de Julia, imediatamente se levantou, já visivelmente alterado. — Quem são vocês? — perguntou o homem, com os braços cruzados, encarando-os com desconfiança. — Sou o Black, e este é o Wilson. Somos da polícia. E você, quem é? — o policial respondeu, mantendo o tom sério. — Eu sou o doutor Alex Johnson, diretor deste hospital. E este é o doutor Marcos Garcia, chefe dos cirurgiões. — O tom de Alex foi elevado, marcando autoridade. — Quem permitiu a entrada de vocês no leito da minha paciente? — Somos da polícia e… — o policial começou, mas foi interrompido. — Isso não dá direito para que entrem aqui de qualquer forma. — Dr. Alex Johnson falou, sua voz firme, interrompendo-os. — Minha paciente tem apenas 24 horas que acordou de um trauma gravíssimo e ainda está muito debilitada. — Mas precisamos… — o policial insistiu, mas Alex o cortou novamente. — Precisa deixá-la em paz! — disse ele, apontando para a porta com um gesto claro de autoridade. — Vou ligar imediatamente para o tenente Smith. Ele precisa lembrar algumas coisas a seus homens.Com o clima tenso, os dois homens saíram do quarto, seguidos pelo diretor do hospital. O chefe dos cirurgiões, Marcos Garcia, permaneceu no quarto.— Vai ficar tudo bem. — disse Garcia, se aproximando de Otto, tentando oferecer alguma tranquilidade.Otto, visivelmente irritado e descontrolado, virou-se para ele.— Eles podem fazer isso? Minha esposa acabou de acordar! — Otto falou, o descontentamento evidente em sua voz.Garcia tentou manter a calma.— Otto, se acalme. Vamos ao refeitório, você precisa se acalmar. — disse ele com um tom suave, tentando controlar a situação.Otto, com os olhos marejados de lágrimas, respondeu entre soluços:— Calma como, Garcia? Ela nem sabe quem eu sou!— Calma, Otto, vamos. — Garcia insistiu, tocando no ombro dele, tentando guiá-lo para fora. — Você precisa se acalmar.Otto levantou-se rapidamente, enxugando as lágrimas com a mão, ainda visivelmente trêmulo.— Katy está lá fora, não se preocupe, eles não vão voltar tão cedo. — disse Garcia, tentando
Garcia e Otto, ao retornarem ao quarto, se depararam com a enfermeira-chefe e Julia abraçadas.— O que houve? — perguntou Otto, apreensivo.— Eu lembrei de uma voz — disse Julia, chorando.— Meu amor, que ótima notícia! — exclamou Otto, emocionado.Otto e Garcia se aproximaram das duas, que contaram o que havia acontecido. A felicidade tomou a todos.A notícia se espalhou pelo hospital. Pessoas envolvidas na cirurgia de Julia foram dar uma espiada; outras, que não participaram, mas estavam curiosas, fizeram o mesmo. Até a doutora Martin a visitou naquele dia, mais animada que o normal.— Agora vamos, deixem Julia descansar um pouco — disse Martin, colocando todos para fora e fechando a persiana para impedir a visão de quem passasse pelo corredor.— Obrigada, Martin, eu já estava ficando zonza — falou Julia, aliviada.— Você agora é uma pop star, tem que se acostumar — brincou Martin, piscando para ela.Martin fechou a porta ao sair, deixando o casal a sós.Otto segurou a mão de Julia
Julia despertou e viu que Otto ainda estava lá. Ficou feliz em saber que não estaria só naquela noite. Ao olhar pela janela, viu o céu negro; não se podiam ver as estrelas, porém não chovia.Esticou o braço, pegou um dos livros que estavam ao lado da cama e o analisou, como se olhar algo de que gostasse pudesse fazer alguma lembrança retornar. Respirou fundo, lembrando-se de que precisava ter paciência.— Não seja ansiosa, tenha calma... Está indo bem — falou para si mesma.Apoiou o livro no braço engessado e começou a ler.Já havia se passado um bom tempo quando Otto despertou, mas ela nem percebeu, imersa na leitura. Ele ficou em silêncio, apenas observando-a. Havia algo hipnotizante na forma como seus olhos percorriam as páginas, como franzia levemente a testa quando encontrava algo que exigia mais atenção.Otto sentiu o peito aquecer. Seu amor por Julia era avassalador, uma força silenciosa que o dominava por completo. Não era apenas afeição ou carinho — era devoção. Tudo nela o f
Os dias foram passando, e a melhora de Julia era evidente. Seu corpo se fortalecia a cada dia, mesmo que sua memória ainda não tivesse voltado.Movimentos simples, como pentear o cabelo e levar a comida à boca, que antes pareciam impossíveis, agora eram parte de sua rotina. Cada pequena conquista era celebrada.— Em breve, você terá alta, mas precisará continuar com a reabilitação — disse o doutor Cole.— Aluguei uma casa aqui perto. Achei que seria o melhor para ela — respondeu Otto.— Isso vai ajudar muito! — Cole se aproximou e apertou a mão de Otto. — Vocês não precisam mais de mim, mas, mesmo assim, virei vê-la de vez em quando. Otto, sua dedicação faz toda a diferença.— Ela é o que eu tenho de mais precioso, Cole — disse Otto, com firmeza.O doutor Cole saiu do quarto, mas o dia continuou trazendo visitas para Julia. Entre elas, os policiais Black e Wilson. Dessa vez, a postura deles parecia diferente — mais amigável, talvez até mais receptiva.— Bom dia — disseram os dois ao e
— Eu não sabia como contar… Fiquei pensando o tempo todo em como você reagiria — Otto disse, entrando no quarto, a voz carregada de hesitação.Julia, tomada pela raiva e pela dor, atirou o livro que estava em seu colo para longe, fazendo-o cair no chão com um som seco.— Eu quase morri, Otto! Por causa de um bêbado desgraçado! — Ela não conseguiu esconder a frustração que transbordava.Ele se aproximou, a expressão de preocupação crescendo, tentando encontrar palavras que a acalmassem.— Julia, por favor, se acalme. Eles estão presos. Já estão pagando pelo que fizeram...Ela o interrompeu, o peito subindo e descendo rapidamente enquanto as palavras saíam com a dor de uma ferida aberta.— Eu quase morri, Otto! Eu quase morri! Você sabe disso!Otto, sem saber o que mais dizer, sentou-se na cama e a puxou para um abraço, tentando envolver a dor dela com seu próprio corpo, desejando que pudesse fazer tudo desaparecer.— Me desculpe, você devia saber por mim... — Otto disse, a voz carregad
Julia ligou a TV e tentou se distrair com a programação, mas a inquietação crescia. Começava a achar que Otto não voltaria mais ao quarto. O cansaço, no entanto, venceu suas preocupações, e ela acabou pegando no sono enquanto esperava.Um tempo depois, despertou. Piscaram algumas vezes antes de perceber que Otto estava ali, sentado na poltrona, com os olhos fixos no notebook.Ela o observou em silêncio. O rosto fino, a pele clara, os olhos azuis atentos à tela. O nariz afilado e os lábios pequenos, porém bem desenhados. A barba por fazer lhe dava um ar despreocupado, mas não o deixava menos bonito. Os cabelos castanhos claros estavam penteados para o lado, sempre alinhados. Alto e forte, parecia cuidar bem da saúde.Otto tirou os olhos do notebook e os fixou em Júlia, que ainda o observava. O silêncio entre eles se alongou, carregado de algo que nenhum dos dois conseguia nomear. Então, Julia decidiu desabafar.— Não sei se estou ficando louca ou sendo injusta com você. — Baixou o olha
Otto passou mais uma noite ao lado de Julia. Mostrou fotos, relembrou passeios, festas e momentos especiais que compartilharam. Falou também sobre Zoe—seus olhos brilhavam ao mencionar a garotinha, e isso tocou Julia de uma forma que ela não soube explicar.Ainda hesitante, ela tentou manter certa distância, mas as palavras da enfermeira ecoavam em sua mente. Estava sem memória, e a única pessoa ao seu lado era Otto. Confiar nele parecia ser sua melhor opção.Aos poucos, permitiu que ele se aproximasse. Havia algo reconfortante em seu toque suave, cuidadoso, como se quisesse protegê-la de tudo.Julia passou a observá-lo melhor. Não seu físico, mas seu jeito. Otto era carinhoso, atencioso. Quando falava sobre os momentos que viveram juntos, seus olhos se iluminavam, e dava para sentir, em cada palavra, o que ele sentia por ela. Isso a deixou sem jeito—não se lembrava de nada, e seus sentimentos eram uma completa bagunça.Quando mencionava a filha,
Não demorou para o dia amanhecer, e logo a rotina do hospital começou.Otto passou o dia ao lado de Julia, mas à noite ia embora. Assim os dias foram se repetindo.Julia estava se recuperando bem. A reabilitação era difícil, mas ela não desanimava. Os médicos haviam avisado que seria um processo doloroso e desafiador, mas, apesar da dor e da falta de ânimo em alguns momentos, ela continuava firme, focada em sua melhora.As semanas se passaram, e Julia já estava acostumada à rotina e às pessoas do hospital. Seu laço de amizade com Pérola crescia, assim como com outros pacientes e funcionários.Otto permanecia ao lado dela. Nos dias mais difíceis, a encorajava, incentivava e acolhia. Sempre a presenteava — fosse com flores, chocolates ou pequenos mimos — para animá-la e tornar o processo um pouco mais leve.A cada dia, Julia se sentia mais querida e amada por ele, e, pouco a pouco, novos sentimentos começaram a surgir.No início, t