Acordei com trovões que estremeciam minha casa. Detestava chuvas porque elas costumavam destruir tudo o que tinha em volta.
Me levantei correndo da cama e encontrei meus pais já na sala, tentando ver a quantas estava a destruição.
— Precisamos sair daqui, não sabemos quanto tempo mais as barreiras vão aguentar. — meu pai falou apreensivo encarando a tempestade lá fora.
— Mas não temos pra onde ir José, nem mesmo dinheiro pra ficar em um hotelzinho.
Nós éramos uma família pobre ali do interior de São Paulo, meu pai trabalhava em uma fábrica ali perto e conseguíamos nos manter, eu trabalhava de babá para algumas mães do bairro, mas o dinheiro era pouco, afinal todo mundo ali era bem humilde.
— Podemos pedir abrigo na igreja. — disse dando uns passos a frente e alcançando os dois. — Padre Bento falou na missa de domingo que quem tivesse correndo e não tivesse para onde ir poderia se abrigar na igreja.
Meu pai me olhou por um minuto, eu sabia que o orgulho bobo de homem estava falando mais alto, ele não queria assumir que não podia cuidar da própria família. Mas ele precisava entender que nada daquilo era culpa dele e sim da natureza.
— Ela tem razão, meu bem. — minha mãe colocou a mão em seu ombro e eu o vi suspirar se dando por vencido.
Eu achava lindo o amor deles, um toque, um olhar e os dois se entendiam. Não que nunca houvesse brigas e discussões lá em casa, isso tinha, mas eles sabiam contornar os problemas juntos.
— Está bem, vamos pegar só o essencial e sair. A estrada está por um fio, vamos ter que ir andando.
Me apressei dentro do quarto peguei uma mochila e joguei duas mudas de roupa meus documentos, um porta retrato com meus pais e corri pra fora.
Mamãe já tinha juntado um punhado de comida em uma sacola de feira, meu pai já tinha pegado as roupas e os documentos, apenas o mais importante.
— Vamos logo! Se Deus quiser amanhã estaremos de volta em casa.
Saímos de lá correndo em meio a chuvarada, meu tênis tinha ficado encharcado só de pisar na estrada de barro. Mas foi aí que vimos que não éramos os únicos fugindo daquela barreira que poderia cair a qualquer instante.
Alguns vizinhos também saiam de casa levando malas e poucas coisas, nem adiantava usar o carro, pois sabíamos que as ruas estariam alagadas. Os pingos de chuva gelada me fizeram bater os dentes, minha roupa já estava molhada de mais.
Mas logo avistamos a cruz enorme da pequena paróquia que tinha na cidade, as luzes acesas diziam que o padre já estava esperando que seus fiéis fossem se abrigar ali.
Corri querendo chegar de pressa, não aguentava mais aquele frio que parecia congelar a alma. Atravessei a pequena dívida entre a estrada de terra para o asfalto, agora estava ainda mais perto.
Olhei para trás procurando meus pais, o barulho dos trovões e de toda a água não deixava que escutaremos direito o que estava acontecendo. Forcei os olhos entre a escuridão e os pingos d'água e avistei todos parados olhando a estrada.
Voltei correndo, querendo saber o que teria acontecido e me assustei com o buraco que tinha se formado, parte da estrada de terra tinha sido engolida, sumindo em meio a toda água.
— Mãe! Pai! Pulem que vocês conseguem!
Seguindo meu conselho vi outras pessoas fazendo o mesmo, pulando o pequeno buraco e conseguindo pisar do outro lado.
— Filha corra para a igreja! — papai gritou e o barulho de árvores se quebrando encheu nossos ouvidos.
Todos pararam paralisados com o barulho assustador da enxurrada de água, barro e árvores descendo por ali.
Encarei meus pais de olhos arregalados e tive a vaga noção da gritaria a nossa volta ter aumentado.
— Nós amamos você! — foi tudo o que ela disse antes de serem engolidos por aquela avalanche e serem carregados para longe.
— NÃO! — gritei chocada e senti mãos me puxarem tentando me tirar dali.
Eu lutei contra aquilo, não queria sair, queria ir com meus pais. Mas o aperto se tornou ainda maior e eu fui arrancada do chão e carregada para a igreja.
Eu estava em estado de choque, não sei se tremia agora por ter perdido meus pais ou pelo frio. Não conseguia mais nem raciocinar. Pessoas se amontaram a minha volta, perguntando como eu estava, mas eu não tinha ideia de como me sentia. Meu mundo tinha desmoronado.
Uma semana depois...
Eu tinha saltado do ônibus e procurei em volta por um táxi como minha tia tinha dito que eu encontraria.
As palavras dela ainda estavam vivas em minha mente.
— Quando chegar na rodoviária procure um táxi e diga para ele te trazer até o Morro do Adeus, eles sabem onde é!
— Ei gata nem pense em pegar o celular e dar bobeira, nem ficar com a bolsa dando sopa ali, porque tá cheio de trombadinha por aí! — foi minha prima quem gritou interrompendo a mãe dela e eu tentei manter aquilo em mente.
Trouxe a mochila para a frente do corpo e reparei em volta melhor, não queria que o perdesse o pouco que tinha. As pessoas passavam com pressa, esbarrando em mim não pediam desculpas e ainda me olhavam de cara feia.
O calor também não estava ajudando, a blusa de moletom que eu usava e a calça jeans, tinham sido perfeitas para a viagem no ar-condicionado do ônibus, mas ali eu estava cozinhando.
Encontrei um táxi e corri até ele desesperada, já estava começando a me arrepender de ter dito que ia até o morro sozinha.
— Bom dia.
— Bom dia, pra onde moça.
— Morro do Adeus. — suspirei, aquele nome era tão perfeito para como eu estava me sentindo naquele momento.
— Você não é daqui, não é menina? — o homem barbudo, usando regata e óculos de sol me perguntou.
— Está tão na cara assim? Eu sou de São Paulo.
— Ahh logo vi, o sotaque diferente te entrega! — eu duvidava que eu tinha sotaque, eles é quem puxavam o "s". — Mas a cara de perdida também. Sabe bem onde tá se metendo indo pra aquele morro?
Não, eu não tinha ideia. Quando minha tia falou onde morava eu procurei tudo sobre o lugar. Não era de todo feio, mas o que as pessoas diziam sobre lá não era nada agradável.
— Não, eu nunca conheci o Rio, mas minha tia mora lá e eu vou viver com ela agora.
— Pois então boa sorte, porque você vai precisar!
Eu ia precisar mesmo, de muita sorte pra continuar bem nesse mundo depois de tudo.
Quando chegamos ele me deixou na ponta do morro e perguntou se eu queria que ele esperasse minha tia. Mas eu tinha herdado o orgulho do meu pai e neguei, além do que não tinha dinheiro suficiente pra ficar segurando o homem ali com o taxímetro rodando.
Pesquei o celular na bolsa e olhei bem em volta antes de ligar pra ela.
— Eai Cami, já chegou? Mamãe foi no mercadinho comprar umas coisas.
— Estou aqui na entrada do morro onde o táxi me deixou.
— Beleza, me espera aí que eu estou descendo! Não sai da entrada e cuidado!
Bianca desligou tão rápido que eu me espantei. Mas enfiei o celular de volta na bolsa e comecei a olhar o lugar, os carros passavam avoados na avenida, as motos subiam e desciam assim como as pessoas.
Eu sentia que todos os olhos estavam em mim e não sabia se aquilo era coisa da minha cabeça, ou se eu estava mesmo sendo vigiada. Torci para que Bianca fosse rápida.
— Ei morena, tá fazendo o que parada aí? — um garoto se aproximou de mim e eu engoli em seco e apertei os braços em volta da minha mochila. — Tu não ouviu eu falar não? Ou é surda?
— E... eu... eu estou esperando uma amiga. — respondi quando outro apareceu ao lado me cercando.
Tentei dar um passo para trás e senti minhas costas baterem no muro de uma casa.
— Iiii ala, ela fala toda certinha! Certeza que é patricinha do asfalto!
— Anda, mostra aí o que tem na mochila! — o primeiro deles colocou a mão na minha bolsa e eu puxei com força, ignorando a dor quando meu cotovelo acertou a parede atrás de mim.
— Não tenho nada, só roupa! — tentei soar firme, mas nunca nos meus vinte anos algo assim tinha acontecido comigo.
— Tá pensando que tá onde pati? A gente manda aqui e estamos pedindo a mochila!
Eu deveria ser esperta e correr pra longe dali, ou gritar por socorro, mas as pessoas que passavam pareciam não se importar com o que estava acontecendo comigo.
Quando ele segurou a alça da mochila outra vez eu acertei um chute bem no meio das bolas dele e corri! Corri entrando no morro e ignorando os gritos atrás de mim.
Eu nem sabia para onde ir, corri como se minha vida dependesse disso.
— A gente vai te pegar piranha!
Eu entrei em um beco tentando despistar eles e corri subindo mais um pouco, virei em tantos buracos que nem sabia mais como voltaria.
— Você vai pagar filha da puta! — o garoto falou atrás de mim e eu olhei para ele sem parar de correr.
Toda a raiva que ele mostrava eu sabia que estaria morta se ele me pegasse, ou coisa pior.
Então eu esbarrei em alguma coisa dura e cai no asfalto com força.
— Posso saber por que estão perseguindo a garota? — uma voz grossa soou e eu ergui as costas e forcei os olhos tentando ver quem era.
— Que isso estão brincando de pega-pega agora? — outro homem falou e eu finalmente foquei na imagem a minha frente.
Dois homens loiros altos e fortes estavam parados de braços cruzados a minha frente.
Um deles tinha o cabelo raspado e era cheio de tatuagens, até mesmo na bochecha, a barba clara dava mais charme a ele mesmo que sua expressão gritasse perigo.
O outro tinha um boné na cabeça, os fios mais longos do cabelo escapavam pelo fecho e também tinha uma barba clara, mas esse não tinha nenhuma tatuagem, ao menos nenhum aparente.
— Fala agora vadia porque estava correndo!
O dia já tinha começado perfeito, pra não dizer outra coisa. Meu irmão tinha descoberto umas furadas na contabilidade do morro.Ele me mostrou toda aquela papelada logo cedo me enchendo a cabeça com os problemas que eu teria que resolver.— Tá na cara que estão fazendo caixa dois, irmão. Não tem outra explicação. — João Vitor falou.Ele era mais novo que eu dois anos, ele era o cérebro da família, enquanto eu sou os músculos.— Sim, o foda é descobrir quem tá metido nisso. Não posso chegar lá na boca acusando geral, sabe que isso acabaria comigo.Se eu começasse a apontar o dedo pra todo lado não ia sobrar um parceiro que me apoiasse quando eu precisasse, duvidar de geral era perigoso e meu pai tinha me ensinado aquilo.— Eu sei, eu sei! — ele jogou mais um papel na minha frente e se virou pro fogão. — Mas você tem que dar um jeito nisso, ou vai ficar no prejuízo.Cocei minha cabeça sabendo que ia ser um longo dia.— Porra, nem em uma quinta-feira a gente tinha sossego!Eu estava afim
Que garota era aquela? Eu estava sentindo até agora os tapas dela em meu peito e claro que quando fui embora soltei uma gracinha pra ela.— Adorei sentir suas garras, mas seria melhor se colocasse elas para fora em outro momento. — vi Bianca arregalar os olhos e rir enquanto a prima parecia não entender sobre o que eu falava.Sai de lá seguindo Miguel e pelo humor dele hoje eu sabia que a briga ia ser feia com os meninos, me surpreendeu ele não ter gritado com a pobre menina.Camila. Ouvi Bianca a chamar assim, nome bonito e ela ainda mais. Quando se jogou em cima de mim eu adorei sentir os tapas dela e o corpo se sacudindo contra o meu, deu pra sentir que por trás do moletom que ela usava tinha um corpo cheio de curvas.O que eu podia fazer? Sou homem e estou longe de ser do tipo santinho. Eu gosto de sexo e de mulher bonita, Camila é os dois.Faço uma nota mental de enviar uma mensagem pra Bianca e pedir pra ela levar a prima no baile amanhã. A garota era nova no Rio de Janeiro, eu
Ainda estava em estado de choque, depois de tudo o que aconteceu não era pra menos.Ouvi minha prima tagarelar pelo caminho todo, sobre quem eram aqueles homens, cada um deles. Os dois garotos que correram atrás de mim, mas que nem dei importância para sua explicação.Mas então ela chegou no tatuado com marra de assustador, e que pelo jeito as pessoas tem mesmo medo dele. João Miguel, o chefe do morro, quem mandava em tudo, o mais perigoso. O nome de anjo não parecia combinar com ele, quando a cara parecia do próprio capeta.Mas diferente do que eu deveria sentir ao vê-lo, eu não me intimidei, não fiquei com medo ou mesmo senti repulsa. Ele era lindo e dava pra ver, mesmo com todas aquelas tatuagens ele era de tirar o fôlego.Nunca tinha visto um homem como aquele, todo másculo, com a expressão fechada, as sobrancelhas grossas franzidas e coberto de tatuagens.Ela me disse que ele era muito cobiçado por todas as meninas do morro. Mas o galinha era na verdade o irmão do meio. João Vito
Meu coração estava batendo disparado, por muito pouco Juninho não foi atropelado, eu tinha medo de imaginar o que ia acontecer com ele se aquela moto tivesse acertado nele.Apertei ainda mais os braços em volta do seu corpinho e o ouvi resmungar que estava esmagando. Mas que se foda, eu ia esmagar se isso fosse tirar o medo de dentro de mim.Depois de perder meu pai e minha mãe, me apeguei de mais a família, não aguentaria perder nenhum dos dois.Assisti Vitor se afastar com a garota no colo. E a vi olhando pro meu irmão, preocupada com o pequeno em meu colo. Mas ele estava bem, quem tinha se ralado toda foi ela.Porra, não acreditava que agora tinha que agradecer aquela maluca.— O dona Isabel, o que estava pensando em deixar o moleque sair assim na rua? — questionei a velha entrando na mercearia.— Aí meu filho, me desculpa! Eu pedi pra Nina olhar ele enquanto eu fechava a compra de um cliente.Olhei pra garota de cabeça avoada que me encarava com um sorriso sem graça. Que se foda,
— Ainda não acredito que você se jogou na frente da moto, sem nem conhecer meu irmão.Estava carregando a heroína gostosa no meu colo, podia facilmente me acostumar em ter aquele corpão dela em meus braços sempre.Claro que eu preferia que as circunstâncias fossem outras, primeiro brigando e agora ela toda machucada, não eram nada favoráveis.— Ele é uma criança, não me interessa quem ele é. — ela se remexeu em meu colo, parecendo envergonhada por ter minhas mãos sobre ela. — Já falei que eu posso andar sozinha! — protestou novamente.— E eu já disse que é um prazer carregá-la, ursinha.Ela desviou o olhar, aposto que com as bochechas pegando fogo. Dava pra ver toda inocência e timidez transbordando daquele rosto angelical, mas era quase um pecado quando vinha acompanhado de um corpo de parar o trânsito.— Você sabe que me chamo Camila e não ursinha. — sorri com sua irritação quanto ao apelido.— E você sabe que se passar o braço em volta do meu pescoço vai ficar mais confortável. — p
Babá, aquela palavra se repetia em minha mente desde que saiu da boca de Miguel. Não era uma má ideia e muito menos um mau emprego, eu estava acostumada a cuidar de crianças, muitas vezes mais de uma de uma só vez. Mas depois de saber quem eles eram e o que faziam, não sabia se seria a opção mais segura.Se isso não bastasse João Vitor quase tinha me beijado, meu rosto queima só de lembrar que poderíamos ter sido pegos pela minha tia. Ainda conseguia sentir seu toque quente, o dedo traçando um caminho em meu lábio inferior e sua voz rouca dizendo que ia me beijar.Eu não sou puritana nem nada, mas minhas experiências com homens podem ser resumidas a zero, tirando dois garotos que beijei no ensino médio não havia mais nada. Eu vivia para minha casa e a igreja, não fazia nada além de sair com minha mãe e a cidade onde eu morava era tão pequena que todos nós se conheciam, o que dificultava toda a coisa da paquera.Fiquei ansiosa esperando o beijo dele, mas o irmão que tem cara de poucos
Sai da casa de dona Nalva com Juninho no colo e Vitor atrás de mim, resmungando sem parar. Eu sabia que o safado estava querendo pegar a mina, ele fez questão de deixar bem claro tocando ela daquele jeito.— Precisava colocar ela de babá do Juninho porra? Como que fica agora eu levar ela pra cama e ficar esbarrando nela dentro de casa?— Isso nunca te impediu antes, você já pegou mais minas desse morro do que consegue lembrar.— É, mas nenhuma dela estava dentro de casa, a garota vai começar a ter ideia errada. — ele passou na frente abrindo o portão de casa. — Você tinha de ver, ela toda sem jeito quando quase a beijei.— Quase? Desde quando tu fica no quase? — eu sabia bem a fama do safado, bem antes de completar dezesseis anos ele já tinha levado a filha de muita gente pra cama.— Desde que você e a dona Nalva viraram empata foda, estava já pertinho daquela boca carnuda e você chega gritando.Não consegui evitar de sorrir, era bem feito que ele tivesse pagado de otário e não conseg
O som do trovão parecia retumbar por meu corpo, se concentrando em meu coração, ditando o ritmo que ele batia. Enquanto minha mente se enchia de imagens daquela noite, o frio do vento, o gelo das aguas cobrindo minhas pernas e as gotas grossas que molhavam todo o meu corpo.Meu corpo tremia involuntariamente e as lágrimas pesadas rolavam por meu rosto. Eu tinha uma vaga noção de ter braços em volta de mim, me segurando firme e acariciando minhas costas, mas eu só conseguia me concentrar na imagem dos meus pais me olhando do outro lado da cratera, os rostos marcados da vida dura, as marcas de expressões profundas apesar da pouca idade.Mesmo com tudo isso eles me olhavam conformados com o que estava prestes a acontecer, não havia medo ou desespero nos rostos deles quando me deram uma última olhada.“Nós amamos você!” as últimas palavras da minha mãe se repetiam em um loop, eu desejava que aquilo pudesse me acalmar, mas não tinha esse efeito mais, só me trazia a solidão.— Camila olha p