O som do trovão parecia retumbar por meu corpo, se concentrando em meu coração, ditando o ritmo que ele batia. Enquanto minha mente se enchia de imagens daquela noite, o frio do vento, o gelo das aguas cobrindo minhas pernas e as gotas grossas que molhavam todo o meu corpo.
Meu corpo tremia involuntariamente e as lágrimas pesadas rolavam por meu rosto. Eu tinha uma vaga noção de ter braços em volta de mim, me segurando firme e acariciando minhas costas, mas eu só conseguia me concentrar na imagem dos meus pais me olhando do outro lado da cratera, os rostos marcados da vida dura, as marcas de expressões profundas apesar da pouca idade.
Mesmo com tudo isso eles me olhavam conformados com o que estava prestes a acontecer, não havia medo ou desespero nos rostos deles quando me deram uma última olhada.
“Nós amamos você!” as últimas palavras da minha mãe se repetiam em um loop, eu desejava que aquilo pudesse me acalmar, mas não tinha esse efeito mais, só me trazia a solidão.
— Camila olha pra mim! — uma voz grossa se misturou em meus pensamentos e duas mãos agarraram meu rosto, erguendo minha cabeça. — Abre os olhos, se concentra na minha voz ursinha e abre os olhos.
A voz era tão insistente e estranhamente me passava uma confiança, a quantidade certa para me fazer abrir os olhos. Dei de cara com os olhos verdes, as sobrancelhas grossas e todas aquelas tatuagens cobrindo a pele clara.
— João Miguel. — sussurrei confusa, minha mente estava uma bagunça entre a noite que perdi meus pais e esse momento.
— Sou eu. — ele falou franzindo o cenho. — O que te deu?
— Nada, desculpa... eu não sei o que me deu. — gaguejei tentando me afastar dele, mas ele me puxou pelo cotovelo, me impedindo de seguir pra fora do beco.
— Tu começou a chorar e tremer garota, tá na cara que tem alguma coisa ai. Acho bom abrir o bico e falar de uma vez! — mesmo as palavras sendo duras e sua mão em meu braço sendo firme, eu não me intimidava, não sentia medo dele. Porque isso? O que tinha de errado comigo?
— Não acho que seja da sua conta. — tentei tirar meu braço do seu agarre, mas ele me segurou mais firme e me puxou, virando meu corpo para frente novamente e me desafiando com aqueles olhos.
— Você vai descobrir ursinha, que tudo o que rola nesse morro é sim da minha conta! — Miguel estava tão perto de mim que sua respiração batia contra o meu rosto.
Mas ao invés de recuar, de usar a razão e me afastar dele, o que eu fiz foi erguer meu rosto ainda mais, ficando mais próxima a ele e mostrando que não me intimidava com seus rosnados.
A mão se manteve firme em meu braço, mas os olhos dele vacilaram, desviando dos meus e se concentrando em minha boca. Não consegui me segurar e evitar encarar os lábios dele, cobertos pela barba loira. Eu me peguei pensando qual seria o sabor deles, se teriam o gosto do cigarro que ele jogou a pouco, ou outro sabor.
Minha respiração ficou descompassada quando ele se curvou ainda mais, nossos narizes se tocaram e eu fechei meus olhos. Esperei o toque da sua boca sobre a minha, mas não veio.
— É melhor tu ir embora. — ele falou me fazendo abrir os olhos. — Vai começar a chover e tu vai ter outro ataque ai.
Minha cara queimou de vergonha, não acredito que ele tinha acabado de me dispensar daquele jeito, depois de eu ter praticamente me jogado nos seus braços. Dei um puxão com meu braço e dessa vez ele me deixou ir, passou na minha frente saindo do beco.
— Idiota! — sussurrei baixo antes de sair de lá e dar de cara com Bianca e outro homem ouvindo as ordens de Miguel, infelizmente eu só peguei o final.
— Leva as duas em casa, antes de descer pra boca.
— Não precisa que ninguém leve a gente em casa não. — falei me metendo entre eles e agarrando o braço da minha prima. — Anda Bianca, vamos pra casa, que o dia de hoje já deu tudo o que tinha de dar!
Comecei a puxar ela e mesmo mancando e sentindo uma dor dos infernos, eu marchei pra longe.
— Mina teimosa da porra. — ouvi ele falar, mas continuei andando, querendo colocar a maior distância entre nós dois.
Mas só de pensar que teria que vê-lo todos os dias de agora em diante, meu corpo queimava de vergonha. Que merda, onde eu estava com a cabeça pra me aproximar ainda mais dele? Já não bastava a cena de mais cedo com o irmão?
— Eita garota, que bicho te mordeu? — eu ignorei Bianca reclamando e continuei andando. — Vai me derrubar assim.
— Só quero chegar logo em casa, antes que essa chuva comece. — aquela era uma meia verdade, mas quem se importa.
Ela ficou me seguiu em silêncio, não disse mais nada até chegarmos em casa. Eu sabia que era porque ela respeitava minha dor, minha prima mesmo não me conhecendo bem conseguia ser um amor comigo.
Só de lembrar da cena que fiz naquela viela eu quero socar minha cara, tanta gente com quem eu poderia ter perdido o controle e tinha que ser justamente com o brutamonte idiota.
Quando Bianca abriu o portão eu olhei de lado antes de entrar, e surpresa me tomou quando notei o cara lá, o mesmo que Miguel tinha mandado nos trazer em casa. Pelo visto não importou eu ter dito que não precisava, ele fez o homem nos seguir até aqui.
— Quem é aquele?
— Aquele é os olhos e ouvidos do Miguel, o cão fiel dele. — ela respondeu olhando para o homem e acenando descaradamente. — Bruno, trabalhou com o pai dele também, podia ter assumido o morro quando o Pezão morreu, mas Miguel acabou assumindo tudo.
O homem continuou lá, esperando que entrássemos e não sei por que, um arrepio subiu pela minha coluna arrepiando minha nuca. Não sabia se aquilo era bom ou não, mas eu ia ficar de olhos abertos perto daquele ali.
— Que bom que chegaram antes da chuva. — tia Nalva falou e eu vi o olhar de compaixão dela.
Mas preferi sorrir fingindo ser forte e me deitei na cama improvisada no quarto. Eu só não tinha ideia que seria uma noite de inferno, cada vez que um relâmpago rompia os céus, ou um trovão soava, eu tremia em baixo das cobertas, tremia e chorava em silêncio. Abraçando meu próprio corpo e tentando me acalmar.
Dormi menos de quatro horas, só consegui pegar no sono muito tempo depois que a chuva parou. Quando acordei sentia como se um caminhão tivesse passado em cima de mim, sono era o que não me faltava quando sentei a mesa e peguei a xícara de café.
— Você tá bem filha? Parece detonada.
Sorri com as palavras da minha tia, detonada era uma palavra pra descrever como me sentia. Meu ataque durante a noite, com o resto do dia agitado, consumiu todas as minhas energias, tanto que eu apostava que podia dormir por um dia inteiro.
— Estou bem tia, pronta pra quando Juninho chegar. — falei bebericando meu café preto.
— Chegar? Ele não vai ficar aqui não Camila, você é que vai passar o dia na casa deles.
— O que? — perguntei antes de engasgar com o café. Não podia ser, não podia! Como eu ficaria na casa daqueles dois o dia inteiro?
Tossi como uma condenada e minha tia ergueu meus braços, dando tapinha em minha costas. Como se aquilo fosse resolver, quando na verdade era minha garganta que parecia fechada, duvidava que passaria sequer um gole de água.
— E é bom se apressar, porque Miguel já mandou uma mensagem avisando que queria você lá assim que acordasse.
Merda, merda, merda! Eu estava ferrada, estava muitíssimo ferrada! Onde eu estava com a cabeça ontem? O que tinha me dado?
Estava me sentindo um caco quando cheguei em casa já de manhã, alguns amigos advogados me chamaram pra inauguração de uma boate. Tinha me cansado de tentar arrastar Miguel para uma dessas festas, mas ele se recusava. Dizia que era pra evitar pessoas esnobes, mas eu sabia bem que ele não queria era evitar algum encontro indesejado com a polícia, ali no morro tínhamos segurança, mas já no asfalto a conversa era outra.Passei a noite na balada e de lá fui para o motel com uma morena, não tinha conseguido tirar Camila da cabeça e acabei me agarrando com a mulher mais parecida com ela. Sabia que aquilo era fodido de mais, mas não consegui evitar, minha mente ficava a todo momento criando cenas com ela e em minha cama, me chupando, cavalgando em cima de mim, gemendo meu nome, por isso precisei tentar suprir minha vontade dela com outra.— Bom dia. — falei entrando em casa e vendo Miguel entregando a mamadeira pra Juninho. — Já acordado.Bufei sabendo que Miguel ia sair e eu teria que cuidar
Quando cheguei na casa de Juninho pela manhã, achei que encontraria o menino dormindo ainda, mas ao invés disso dei de cara com ele terminando a primeira mamadeira do dia, enquanto assistia um desenho na televisão.— Bom dia, chegou bem na hora. — Miguel cumprimentou não demorando o olhar em mim.— Bom dia, bom dia lindinho. — falei apertando a bochecha fofinha, mas os olhos dele nem se desviaram da tela. — Minha tia avisou que você precisava de mim o mais rápido possível. — ele se afastou voltando para o irmão. — Não sabia que eu teria que cuidar dele aqui, na sua casa.— Aqui é mais seguro que na casa da tua tia. Vou ter que sair agora de manhã, resolver umas tretas que apareceram aí. Vem vou te mostrar a casa. — ele se virou seguindo pelo corredor antes mesmo de ver se eu o seguia.Dei passos apressados atrás dele, que começou a me mostrar os cômodos. A casa não era pequena como a de tia Nalva, além da sala havia três quartos, um para cada um deles, uma varanda e a cozinha.— Junin
Estava conversando com os chefes dos outros morros, resolvendo as tretas que eram da conta de todos nós.O complexo eram várias favelas unidas e sempre mantemos assim. Nós fomos "pacificados" há uns anos atrás, recebíamos até turistas agora, uns subiam pra ver a vida aqui, outros querendo usar o teleférico e ter uma vista top do Rio.Mas essa merda era coisa só pra iludir quem estava de fora, quem morava dentro da comunidade sabia que esses polícias não estavam nem aí pra pacificação. No começo o povo da comunidade toda acreditou, mas depois que muita gente inocente começou a morrer, a ser levada pra depor e nunca mais voltar, a apanhar sem motivo, aí eles viram que não tinha esse negócio de pacífico no nosso mundo.O problema é que polícia é gente e qualquer pessoa pode ser corrompido, o que eles queriam era dinheiro. E depois de ver que bater de frente não ia resolver, começamos a pagar aí pra eles um valor, a gente trabalhava em paz, eles saiam como herói e o povo da comunidade fic
As palavras de Miguel rondavam minha mente, eu nunca pensei que poderia me sentir tão mal assim por algo que as pessoas falassem de mim, mas cada palavra dele, me diminuindo, colocando pra baixo e querendo mostrar qual era o meu lugar, foram como uma faca cravando cada vez mais fundo em meu coração.Depois do banho peguei Juninho e fui para a cozinha fazer o almoço dele, o menino tinha sido tão fofo quando viu que eu estava chorando, ele apoiou as mãos em meu rosto e ficou acariciando minhas bochechas querendo que eu me acalmasse. Era bom ver que ao menos um dos homens daquela família tinha um coração.Por sorte não vi nenhum dos dois mais velhos, não sabia como lidaria com nenhum deles. Ouvir que Vitor passou a noite com outra garota não deveria ter me feito tão mal, mas fez. Mesmo que Bianca tivesse me contado sobre a má fama dele, saber que ele dormiu com outra e poucas horas depois estava me beijando fez eu me sentir ainda pior.Esperei Juninho dormir depois das duas da tarde, par
Eu estava com uma puta dor de cabeça quando acordei, passei boa parte da tarde me revirando na cama, tentando dormir enquanto minha mente se negava a desligar, ficava voltando desde o momento em que finalmente tive aquela boca gostosa contra a minha, e o inferno de momento quando meu irmão me contou tudo.Se tinha uma coisa que eu gostava de manter simplificada na minha vida era o quesito mulheres, todo o resto já era complicado, ter me formado no que meu pai queria só pra ajudar nas coisas ilegais, ajudar criminosos e ser um.Eram várias coisas confusas e fodidas na minha vida, quem passava por minha cama tinha que ser o mais simples possível. Não queria ter que lidar com uma garota que surtava sem mais nem menos, também não queria ter relacionamentos, gostava da minha liberdade.Mas em contrapartida tinha aquela garota com os lábios carnudos e doce, porra sim, ela tinha um gosto doce e o gemido que soltou quando enfiei a língua em sua boca me deixou duro como pedra.Eu queria ter ti
O baile estava lotado como sempre e eu gostava daquele jeito, geral se divertindo, dançando, bebendo e se pegando. Estava no camarote, era como uma varanda enorme, muitos queriam subir até ali, principalmente as garotas que sempre ficavam tentando chamar atenção.Mas essa noite não estava parecendo a mesma coisa, nem Vitinho estava no clima, parecia mais ocupado em conversar com o amigo racker do que nas garotas rebolando na batida do funk.— Está distraído hoje. — Dany falou deslizando as unhas afiadas por meu pescoço. — Quer uma ajudinha?Eu tinha ido buscar ela com outras ideias, era a pessoa perfeita pra tirar todo o estresse dessa semana de cão e pra me fazer parar de pensar em lábios carnudos, olhos castanhos e uma pele negra macia de mais, vulgo Camila.Mas mesmo com ela ali no meu colo, sacudindo a bunda no ritmo da música, isso não me animava para nada. Meu pensamento estava toda hora voltando pra aquela garota e eu me perguntando o que ela deve tá fazendo.— Mais tarde gata.
Não sei bem em que momento peguei no sono ao lado de Juninho, me deitei ali para fazer um cafuné até que ele dormisse, mas fiquei tão envolvida com as vagas de emprego que adormeci ali mesmo, com o celular em cima da minha barriga.Acordei com algumas vozes e passos pela casa, com certeza os dois tinham chegado, mas não ia me arriscar a sair e dar de cara com nenhum deles, muito menos com a mulher linda que ele trouxe mais cedo.Graças a Deus o barulho acabou bem rápido, eu me aconcheguei mais na cama junto com Juninho e tentei voltar a dormir, mas minha mente parecia bem acordada, era em torno de seis da manhã o que explicaria a falta de sono, eu costumava acordar bem cedo.Desbloqueei meu celular e vi mensagens de Bianca, um monte delas mostrando o desespero dela.Bia: primaaaaaaBia: Camila, responde sua vaca!Bia: pelo menos lê mulher!Bia: tá bom, mas fica avisada se qualquer um deles perguntar do trampo diz que arrumei sim, que vai trabalhar comigo na loja.Bia: eu abri a boca e
Acordei já tarde e demorei a perceber o que tinha feito eu acordar, até que os gritos de Miguel recomeçaram, me dando a resposta que eu precisava.Me levantei correndo jogando a coberta pro lado e colocando uma cueca e calça as pressas. Miguel não gostava de gritar dentro de casa, não queria Juninho vendo aquilo.— Você não manda em mim! — ouvi Camila gritar quando sai no corredor. — Eu não quero ficar aqui e o dinheiro que estão me oferecendo é muito bom, além das gorjetas...— Tu não vai trabalhar na Rubi porra! — o que? Camila queria trabalhar na boate? — Não sei onde Dany estava com a cabeça de te dar essa ideia idiota.— A garota precisava de um trampo, só estou ajudando ela...— Ajudando levando a mina pra tirar a roupa em troca de dinheiro? — Miguel estava puto pelo tom.Passei pela sala e vi Juninho ignorando tudo, tomando sua mamadeira e assistindo. Quando cheguei na porra da cozinha vi os três se fuzilando com os olhos.— Você bem que gosta de dar dinheiro pras meninas de lá