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Capítulo IX - Camila

O som do trovão parecia retumbar por meu corpo, se concentrando em meu coração, ditando o ritmo que ele batia. Enquanto minha mente se enchia de imagens daquela noite, o frio do vento, o gelo das aguas cobrindo minhas pernas e as gotas grossas que molhavam todo o meu corpo.

Meu corpo tremia involuntariamente e as lágrimas pesadas rolavam por meu rosto. Eu tinha uma vaga noção de ter braços em volta de mim, me segurando firme e acariciando minhas costas, mas eu só conseguia me concentrar na imagem dos meus pais me olhando do outro lado da cratera, os rostos marcados da vida dura, as marcas de expressões profundas apesar da pouca idade.

Mesmo com tudo isso eles me olhavam conformados com o que estava prestes a acontecer, não havia medo ou desespero nos rostos deles quando me deram uma última olhada.

“Nós amamos você!” as últimas palavras da minha mãe se repetiam em um loop, eu desejava que aquilo pudesse me acalmar, mas não tinha esse efeito mais, só me trazia a solidão.

— Camila olha pra mim! — uma voz grossa se misturou em meus pensamentos e duas mãos agarraram meu rosto, erguendo minha cabeça. — Abre os olhos, se concentra na minha voz ursinha e abre os olhos.

A voz era tão insistente e estranhamente me passava uma confiança, a quantidade certa para me fazer abrir os olhos. Dei de cara com os olhos verdes, as sobrancelhas grossas e todas aquelas tatuagens cobrindo a pele clara.

— João Miguel. — sussurrei confusa, minha mente estava uma bagunça entre a noite que perdi meus pais e esse momento.

— Sou eu. — ele falou franzindo o cenho. — O que te deu?

— Nada, desculpa... eu não sei o que me deu. — gaguejei tentando me afastar dele, mas ele me puxou pelo cotovelo, me impedindo de seguir pra fora do beco.

— Tu começou a chorar e tremer garota, tá na cara que tem alguma coisa ai. Acho bom abrir o bico e falar de uma vez! — mesmo as palavras sendo duras e sua mão em meu braço sendo firme, eu não me intimidava, não sentia medo dele. Porque isso? O que tinha de errado comigo?

— Não acho que seja da sua conta. — tentei tirar meu braço do seu agarre, mas ele me segurou mais firme e me puxou, virando meu corpo para frente novamente e me desafiando com aqueles olhos.

— Você vai descobrir ursinha, que tudo o que rola nesse morro é sim da minha conta! — Miguel estava tão perto de mim que sua respiração batia contra o meu rosto.

Mas ao invés de recuar, de usar a razão e me afastar dele, o que eu fiz foi erguer meu rosto ainda mais, ficando mais próxima a ele e mostrando que não me intimidava com seus rosnados.

A mão se manteve firme em meu braço, mas os olhos dele vacilaram, desviando dos meus e se concentrando em minha boca. Não consegui me segurar e evitar encarar os lábios dele, cobertos pela barba loira. Eu me peguei pensando qual seria o sabor deles, se teriam o gosto do cigarro que ele jogou a pouco, ou outro sabor.

Minha respiração ficou descompassada quando ele se curvou ainda mais, nossos narizes se tocaram e eu fechei meus olhos. Esperei o toque da sua boca sobre a minha, mas não veio.

— É melhor tu ir embora. — ele falou me fazendo abrir os olhos. — Vai começar a chover e tu vai ter outro ataque ai.

Minha cara queimou de vergonha, não acredito que ele tinha acabado de me dispensar daquele jeito, depois de eu ter praticamente me jogado nos seus braços. Dei um puxão com meu braço e dessa vez ele me deixou ir, passou na minha frente saindo do beco.

— Idiota! — sussurrei baixo antes de sair de lá e dar de cara com Bianca e outro homem ouvindo as ordens de Miguel, infelizmente eu só peguei o final.

— Leva as duas em casa, antes de descer pra boca.

— Não precisa que ninguém leve a gente em casa não. — falei me metendo entre eles e agarrando o braço da minha prima. — Anda Bianca, vamos pra casa, que o dia de hoje já deu tudo o que tinha de dar!

Comecei a puxar ela e mesmo mancando e sentindo uma dor dos infernos, eu marchei pra longe.

— Mina teimosa da porra. — ouvi ele falar, mas continuei andando, querendo colocar a maior distância entre nós dois.

Mas só de pensar que teria que vê-lo todos os dias de agora em diante, meu corpo queimava de vergonha. Que merda, onde eu estava com a cabeça pra me aproximar ainda mais dele? Já não bastava a cena de mais cedo com o irmão?

— Eita garota, que bicho te mordeu? — eu ignorei Bianca reclamando e continuei andando. — Vai me derrubar assim.

— Só quero chegar logo em casa, antes que essa chuva comece. — aquela era uma meia verdade, mas quem se importa.

Ela ficou me seguiu em silêncio, não disse mais nada até chegarmos em casa. Eu sabia que era porque ela respeitava minha dor, minha prima mesmo não me conhecendo bem conseguia ser um amor comigo.

Só de lembrar da cena que fiz naquela viela eu quero socar minha cara, tanta gente com quem eu poderia ter perdido o controle e tinha que ser justamente com o brutamonte idiota.

Quando Bianca abriu o portão eu olhei de lado antes de entrar, e surpresa me tomou quando notei o cara lá, o mesmo que Miguel tinha mandado nos trazer em casa. Pelo visto não importou eu ter dito que não precisava, ele fez o homem nos seguir até aqui.

— Quem é aquele?

— Aquele é os olhos e ouvidos do Miguel, o cão fiel dele. — ela respondeu olhando para o homem e acenando descaradamente. — Bruno, trabalhou com o pai dele também, podia ter assumido o morro quando o Pezão morreu, mas Miguel acabou assumindo tudo.

O homem continuou lá, esperando que entrássemos e não sei por que, um arrepio subiu pela minha coluna arrepiando minha nuca. Não sabia se aquilo era bom ou não, mas eu ia ficar de olhos abertos perto daquele ali.

— Que bom que chegaram antes da chuva. — tia Nalva falou e eu vi o olhar de compaixão dela.

Mas preferi sorrir fingindo ser forte e me deitei na cama improvisada no quarto. Eu só não tinha ideia que seria uma noite de inferno, cada vez que um relâmpago rompia os céus, ou um trovão soava, eu tremia em baixo das cobertas, tremia e chorava em silêncio. Abraçando meu próprio corpo e tentando me acalmar.

 Dormi menos de quatro horas, só consegui pegar no sono muito tempo depois que a chuva parou. Quando acordei sentia como se um caminhão tivesse passado em cima de mim, sono era o que não me faltava quando sentei a mesa e peguei a xícara de café.

— Você tá bem filha? Parece detonada.

Sorri com as palavras da minha tia, detonada era uma palavra pra descrever como me sentia. Meu ataque durante a noite, com o resto do dia agitado, consumiu todas as minhas energias, tanto que eu apostava que podia dormir por um dia inteiro.

— Estou bem tia, pronta pra quando Juninho chegar. — falei bebericando meu café preto.

— Chegar? Ele não vai ficar aqui não Camila, você é que vai passar o dia na casa deles.

— O que? — perguntei antes de engasgar com o café. Não podia ser, não podia! Como eu ficaria na casa daqueles dois o dia inteiro?

Tossi como uma condenada e minha tia ergueu meus braços, dando tapinha em minha costas. Como se aquilo fosse resolver, quando na verdade era minha garganta que parecia fechada, duvidava que passaria sequer um gole de água.

— E é bom se apressar, porque Miguel já mandou uma mensagem avisando que queria você lá assim que acordasse.

Merda, merda, merda! Eu estava ferrada, estava muitíssimo ferrada! Onde eu estava com a cabeça ontem? O que tinha me dado?

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