Pude perceber o momento exato em que o homem no meu quarto notou minha presença. Assim que as palavras deixaram meus lábios todo o corpo dele parou de uma forma que deveria ser impossível. Nenhum ser vivo consegue ficar tão imovel como ficou naquele momento, nem seu peito se movia com respiração, ou seus olhos vagueavam como estava fazendo antes. Ele parecia um animal, um predador prestes a atacar.
Os segundos que estranho passou parado foram o suficiente para que eu prestasse mais atenção a sua fisionomia, ele estava agachado mas podia dizer que suas pernas eram longas então ele deveria ser alto. Nem seu cabelo curto e prateado se movia com o vento que entrava pela janela e gelava meus ossos. Os olhos dele estavam vidrados na parede oposta, eu dei um passo a frente para tentar me colocar à frente dele e conseguir enxergá-lo melhor, mas então ele se moveu.
Foi muito rápido. Impossivelmente veloz. O tempo que demorei para dar um passo ele já estava de pé na minha frente com toda sua altura sobre mim. Então seus olhos se tornaram tudo que eu podia ver. Era um dourado único, como ouro derretido escorrendo na forja de uma aliança, brilhava como se tivesse acabado de ser polido.
Seu rosto estava ferido, alguns pequenos arranhões com sangue os marcando. Sua barriga não parecia tão ferida quanto antes, embora tivesse sangue manchando o tecido de sua camisa ele parecia se mover bem demais para ter algum ferimento ali.
Enquanto eu estava muito consciente do corpo dele tão perto do meu naquele momento, eu não conseguia sentir o meu próprio. Estava anestesiada.
Ou hipnotizada.
— Quem é você? — Ele perguntou. A voz grave e baixa, mas que parecia o rugido de um leão.
— Perguntei primeiro.
De onde vinha a coragem para ser petulante numa hora dessas eu não sabia, mas eu realmente não tinha noção do perigo.
— Não respondo a você.
— Então saia do meu quarto.
Ele apenas continuou me encarando. Era estranho, ele também parecia hipnotizado, só que eu sabia que minha aparência não poderia causar o mesmo impacto que a dele.
— Saia você.
A audácia do desgraçado.
— Você invadiu a minha casa, meu quarto, eu nem sei quem você é, mas tenho que sair para te deixar confortável?
— Sim.
Quem quer que fosse, esse cara não entendia ironia ou sarcasmo.
— Não — respondi cruzando os braços e batendo o pé.
Ele atravessou os dois passos que nos separavam e eu achei que fosse morrer bem ali. Que lástima, morrer na mão de um desconhecido dentro da própria casa porque fui burra demais para sair correndo antes. E tudo antes de conseguir da TedioTown.
Mantive a pose firme embora minhas pernas quisessem começar a tremer. Ele inclinou o rosto na minha direção, a boca entreaberta e… fungou. Como um cachorrinho.
— Que merda você tá fazendo? — perguntei indignada com o nariz dele tão próximo do meu pescoço.
Quando ele se afastou novamente pareceu perturbado, tanto quanto aquele rosto que parecia de mármore poderia se perturbar. Os olhos dourados arregalados, as sobrancelhas franzidas.
— O cheiro — foi tudo que ele falou.
Entendi. Ele era um maluco. Um muito bonito, porém apenas um fugitivo do hospício provavelmente.
— Olha, eu não sei como veio parar aqui, mas você precisa voltar para onde saiu. Você lembra onde era?
Dentes brancos e muito afiados. Ele ergueu os lábios os mostrando para mim e se aproximou novamente, mas dessa vez sua voz não soou tão firme:
— Não vou voltar para lá, você não pode me obrigar a voltar.
Merda. Onde eu me meti.
Toquei seu braço para tentar acalmá-lo e se jogou para longe, no mesmo momento uma parto bateu e ouvi passos no andar debaixo.
— Cali — a voz da minha mãe ecoou — já chegou?
Eu deveria responder logo que sim, mas temi que ela encontrasse o homem no meu quarto e ele pudesse fazer algo com ela. Ou nós duas.
— Eu to no meu quarto — respondi sem me mover, o estranho arregalou os olhos e tomei outra decisão ruim — Não quero jantar, estou cansada da escola. Amanhã de manhã conversamos.
Fechei a porta do meu quarto e girei a tranca. Pronto, agora estava trancada com um maluco no meu quarto. Isso iria além da burrice, eu estava sendo bem idiota mesmo.
— Escuta — sussurrei para o homem, que agora parecia um garoto com o medo estampado no rosto — você precisa me dizer quem é senão não posso te ajudar.
Os olhos dele dançaram entre meu rosto e a porta do quarto, às vezes indo para a janela aberta. Ele queria fugir, por mim ele poderia fazer isso com tanto que não ferisse. Mas uma parte de mim queria muito que ele ficasse para entender quem ele era.
Não é como se ele tivesse a aparência de uma pessoa comum, eu nunca nem tinha visto alguém real com aquela cor de cabelo, ou uma pele tão lisa a não ser com muitos procedimentos estéticos, e olha que ele estava ferido. Aquele rosto limpo deveria ser deslumbrante. Ou seja, eu estava deixando um estranho se esconder no meu quarto só porque ele era bonito.
Nossa Cali, parabéns, é assim que os serial killers matam suas vítimas.
— Te dizer quem eu sou não vai ajudar — respondeu com os olhos voltados para fora, em direção a floresta atrás da minha casa.
Essa era a hora de algum juízo entrar na minha cabeça, mas eu já estava na chuva então iria me molhar. Eu não era uma tonta, se o cara quisesse me matar já teria matado. O jeito que ele se moveu tão rápido há alguns minutos poderia ter feito qualquer coisa comigo, se não fez, é porque talvez não queira. Ou pelo menos esteja tão debilitado que não consegue, nos dois casos minha vida não está em risco. Ainda.
No fim das contas, ele claramente precisa de ajuda aqui, não eu. Não que eu seja uma boa samaritana, mas não era todo dia nessa cidade esquecida que algo que pudesse causar qualquer emoção acontecia.
— Então vou te fazer outra pergunta — comecei — como veio parar aqui? E de onde é esse sangue?
Como se não tivesse notado antes, ele olhou para o próprio corpo, para a camisa ensanguentada.
— Eu estava fugindo — confessou — me atacaram e eu segui o rastro até aqui.
O animal na floresta. Será que tinha sido ele?
— De onde você fugiu?
Ele me encarou, os olhos pegando fogo.
— Eu não deveria ter vindo pra cá.
— Mas agora já está aqui, pelo que disse que não quer voltar para onde veio, então não tem muitas opções.
O corpo dele cedeu, as mãos grandes cobrindo o rosto enquanto ele escorregava de volta para o chão ao lado da minha cama.
— Meu nome é Draco. Isso é tudo que posso dizer sobre mim.
Me sentei na cama, ainda longe dele, bem na pontinha.
— E o que eu faço com essa informação?
— Você me chama pelo meu nome.
Ainda não era o suficiente, mas era um começo. Draco estava muito resistente, como eu faria para conseguir mais informações, merda?
— Me chamo Cali — falei porque não sabia o que falar mais.
— Eu sei.
Ele ouviu minha mãe antes.
— Eu vi um animal ferido na floresta agora há pouco, antes de entrar — confessei e ele continuou me encarando — foi você quem o feriu? Ou ele feriu você?
Longos segundos de silêncio seguiram, achei que ele não responderia mais.
— Ele me atacou, eu não queria matar ninguém.
— Tá tudo bem, eu sou a favor dos animais, mas se um urso me atacasse eu não hesitaria em defender também, mesmo que custasse a vida do animalzinho.
Draco riu. Um sorriso que mudou toda a feição do seu rosto. Enquanto antes ele parecia um predador focado, agora era só um garoto se divertindo. Mas o que chamou minha atenção foram os dentes, que não estavam mais afiados como antes. Minha mente estava alucinando pelo medo, será?
— Não era um urso, Calíope. Não seja tão ingênua.
Como não?
— Era o que então? Um lobo da floresta?
— Um lobo.
Eu não sabia que existia alguma prisão perto dali, ou pela floresta da cidade para no caminho de fuga o Draco ser atacado por um lobo. Não sabia que tinha lobo na floresta também. Resumindo eu não sabia de nada. Não teria me aventurado numa trilha sozinha na floresta ano passado se soubesse da existência de lobos por lá.
— Ele estava morto? — Draco perguntou. — O lobo?
Porra eu esqueci de ligar para a guarda florestal.
— Agora deve estar se ninguém chegou para ajudá-lo.
— Não posso contar com isso.
Ele passou a mão no cabelo e voltou a encarar a noite pela janela.
— Você não precisa seguir pela floresta, sabe. Pode pedir um uber sei lá, não vai ter lobos pela cidade.
Ele riu. Como se eu tivesse contado uma piada muito engraçada.
— Não tenho só lobos a temer.
— A quem mais então?
Ele não respondeu. Ficou em silêncio até eu me cansar de esperar uma resposta. Aquilo estava me cansando, Draco queria ajuda, mas não estava disposto a conversar, como eu o ajudaria?
Me levantei e fui até o meu armário para pegar meu pijama, eu precisava de um banho.— Olha, eu entendo que você esteja com problemas, mas você precisa decidir o que vai fazer. Se vai sair daqui e continuar fugindo de quem quer que seja ou você vai colaborar para eu te ajudar. Se eu decidir te ajudar né, claro.
Na última parte eu não deveria ter dito em voz alta, merda. Se ele tiver a intenção de me matar, seria naquele momento.
— Não é tão simples — foi a resposta dele.
Draco continuou sentado como estava, olhando para o mesmo lugar, o que estava começando a me irritar.
— Vai ter que ser. Eu vou tomar banho e quando eu voltar tome sua decisão, ou só vá embora do meu quarto. Eu não posso fazer nada para te ferir, e nem quero, mas não posso te manter aqui sem saber o porquê. — Seu rosto se virou para mim e era novamente o predador, mas por algum motivo a química do meu corpo não estava funcionando direito e eu não estava com medo, como deveria — Ou você pode me matar, mas a decisão é sua, então estou indo e já volto.
Entrei no banheiro ao lado do meu quarto esperando que começasse a tremer no momento em que a adrenalina passasse, mas isso não aconteceu. Tirei a roupa e fui para debaixo do chuveiro, e nada de sentir medo ou ansiedade. Ou qualquer coisa que uma garota em perigo claro deveria estar sentindo. Porque eu estava fazendo aquilo?
Terminei meu banho e depois de colocar o pijama escovei os dentes. Torci para que tivesse demorado o suficiente para Draco decidir colaborar comigo, ou ter fugido.
Assim que atravessei a porta vi Draco em pé, sem a camisa ensanguentada e definitivamente o sangue não era dele, porque seu abdome estava intacto. E era um ótimo abdome por sinal.
— Então? — Questionei e ele se moveu, dessa vez lentamente, na minha direção.
— Você vai me manter escondido aqui, até eu decidir que é seguro para mim sair de novo — falou com a voz grave e baixa de um predador novamente.
Seus olhos eram fogo incandescente quanto mais ele se aproximava.
— E porque vou concordar com isso?
Assim que terminei a frase eu me arrependi.
— Porque eu sou um vampiro — seus dentes afiados estavam à mostra de novo, ele estava muito perto — E você não tem escolha.
Começou com uma vontade no meu cérebro e então começou a borbulhar no meu estômago, a gargalhada saiu da garganta com tanta força que tive que cobrir a boca para não chamar a atenção da minha mãe. — O que está fazendo? — perguntou Draco com o olhar perdido. Eu não conseguia parar de rir. Tudo fazia sentido, eu reclamava tanto de tédio que o Lion armou essa para mim. Meu Deus, ele deve ter feito a professora Dembry me prender na escola para dar tempo de fazer tudo isso. Eu ia matar ele. — Eu vou ligar para o Lion — falei para Draco indo em direção ao meu telefone — foi uma ótima sacada da parte dele, quase caí nessa. Vampiro, essa foi boa. Se não fosse essa fala dramática eu teria acreditado, mas vampiro? Por favor né. Quando cheguei na minha mochila para pegar meu telefone Draco surgiu na minha frente e puxou-a da minha mão. A velocidade impressionante como antes. — Você é atleta? Porque deveria ser, é muito rápido para uma pessoa normal. Draco ignorou minha pergunta. — Não v
A cena no meu quarto era assoladora, tinha um animal morto aos pés da minha cama. Tinha um vampiro ensaguentado e machucado sujando minha cama e me sacudindo. Então tinha minha mãe batendo loucamente na porta do meu quarto aos gritos querendo saber o que estava acontecendo, mas eu responderia se nem eu mesma sabia? Meu corpo não queria se mover, apenas meus olhos vagavam pelo meu quarto e para o olhar dourado de Draco a fim de tentar entender o que estava acontecendo. Ele estava falando algo, eu via sua boca se mexer mas não conseguia entender o que falava acima do zumbido da adrenalina e do escândalo que minha mãe fazia na porta. Tentei me concentrar para voltar a realidade e escutá-lo. — Cali, você precisa tirar sua mãe daqui, ela não pode ver o que aconteceu… Cali reage merda! Porra eu vou ter que te dar um choque… — Não, calma — gritei para ele, talvez alto demais — estou aqui, voltei a mim. — Fala com a sua mãe, vou dar um jeito no lobo. — Que? — De repente a realidade bat
Eu não era uma garota de me intimidar, mas também nunca fui um exemplo de coragem. Minha regra sempre foi: não incomode e não será incomodada. Isso valia para mim e para quem me incomodasse também. E era por isso que meus dias naquele lugar eram sempre neutros e tediosos. A chuva fina caía tão suavemente que parecia neve através da janela do refeitório, eu costumava almoçar lá fora, embaixo da amendoeira no fim do pátio e início do parque florestal. Com a chuva fui obrigada a ficar dentro desse hospício chamado escola, que eu não via a hora de me livrar. Os outros adolescentes gritavam e riam, alguns se pegavam descaradamente, não é como se alguém fosse impedi-los. Até nossas inspetoras eram preguiçosas demais para isso. Todos nessa cidade eram preguiçosos demais. Eu ansiava em viver uma aventura, qualquer coisa seria uma aventura nessa cidade até andar a cavalo na rodovia principal, ou fazer uma trilha a noite… não, isso eu já tentei e não me rendeu nenhuma história legal para