— O que você quer? — perguntei.
— Diminua esse tom ao falar comigo — exigiu minha mãe.
Eu tinha dezessete anos, muitos hormônios e revolta dentro de mim, mas eu sabia que deveria respeitá-la. Só que era complicado fazer isso quando ela tornava tudo tão difícil.
— Agora lembrou que é mãe? Que tem uma filha para cuidar e não uma que cuida de você?
— Calliope! Chega disso. — Ela respirou fundo e apontou para o sofá na sala — quero ter uma conversa importante com você. Por favor!
Uma parte de mim temia sobre o que ela queria falar, se tinha algo a ver com a noite anterior. Outra parte desejava que não fosse a ladainha de sempre. “Vou mudar agora, sem mais bebida.” “ Vamos voltar a ser uma família.” Nunca durava mais que alguns dias suas promessas.
Ainda assim fiz o que ela pediu e fui para a sala, nossa casa não era enorme, mas grande o suficiente. A sala era aberta para a cozinha, um sofá de três lugares confortável ficava embaixo de uma das janelas, a estante com TV de frente para ele. No canto uma estante com livros e algumas fotos que eu ignorava tomava a parede lateral.
— Quando eu cheguei em casa ontem e vi sangue achei que tivesse perdido você, isso me acordou para algumas coisas.
Lembrei do sangue que Draco deixou pela casa e que segui até meu quarto, nem lembrei de limpá-los no dia anterior.
— Não era meu, algum animal deve ter entrado aqui — menti — quando entrei no meu quarto a janela estava aberta, então o que quer que fosse fugiu.
Minha mãe estreitou os olhos para mim, não parecia que mentira tinha a convencido.
— Você não me deixou entrar no seu quarto para checar.
— Não quero você no meu quarto — minha resposta saiu rápida demais, bem suspeita principalmente para uma mãe de adolescente. — Não gosto que mexam nas minhas coisas, estou com alguns projetos de arte e você sabe que não gosto que ninguém os veja antes de estar pronto.
Eu sequer desenhava havia meses, mas houve um tempo em que eu pintava e desenhava muito então essa desculpa serviria para ela.
— Cali — meu nome deixou os lábios da minha mãe como uma lamúria, uma que soava com arrependimento e remorso — Eu sinto muito que nossa relação tenha se tornado tão distante que eu sequer sabia que você estava desenhando novamente. Ou que não confie em mim para mostrar seus rascunhos. Isso que me aflige, você vai fazer dezoito anos em breve e uma responsabilidade tão grande vai cair sobre seus ombros… Eu só, eu sinto que perdi o tempo que nós tínhamos.
A faculdade não era uma responsabilidade para esse tipo de drama que ela estava fazendo, mas eu me mudaria e talvez parte dela sempre soube disso, então estava certa sobre ter perdido o tempo que poderia ter tido comigo. Eu partiria e nem ela poderia me fazer ficar.
— Não adianta lamentar pelo que não pode voltar — falei — não acho que a ruptura na nossa família possa ser restaurada, mãe. Sinto muito.
Eu estava sendo sincera.
Não a odiava, nem rancor eu guardava dela. Entendia que a mulher que se tornou era resultado da mesma dor que me dilacerava quando lembrava do meu pai. Mas eu não tinha como recuperar cinco anos de abandono da parte dela e agir como se pudéssemos ser melhores amigas novamente. Esperava que ela estivesse sendo sincera e pelo menos buscasse ajuda para se reerguer e quem sabe um dia poderíamos voltar a ter uma relação saudável e boa.
Mas isso não aconteceria naquele dia ou em um futuro próximo, teria que ser o fruto de muito tempo de esforço. Ela era adulta, sabia disso melhor que eu.
— Quero te dar uma coisa — ela disse quando eu estava prestes a me levantar — eu deveria te dar no seu aniversário daqui a quatro meses, mas senti a necessidade de fazer isso agora.
Esperava que não fosse o que eu estava pensando.
Ela foi até a cozinha onde estava antes e trouxe uma caixa preta retangular.
— Era para ser um presente do seu pai para você.
Meu coração afundou. Era exatamente o que eu estava pensando. Um presente póstumo e eu não estava pronta para isso. As cenas daquele dia ainda estavam frescas na minha mente como se tivessem acontecido dias atrás e não anos. O sangue escorrendo de seus lábios enquanto ele tentava falar comigo, a forma que ele me protegeu. Era pra ter sido eu.
Me levantei bruscamente.
— Eu não quero — protestei — não quero!
— Cali, eu entendo que seja difícil, mas era a vontade dele..
— Não! — lágrimas borraram minha visão, eu estava sendo injusta, mas não conseguia explicar porque eu não conseguiria aceitar aquilo — Não hoje.
Ela acenou com a cabeça. Talvez eu pudesse me preparar até o dia do meu aniversário e então poder abrir esse presente.
— Tudo bem, mas não é apenas um presente leviano, minha filha. É uma herança importante que você não pode negar.
Apenas concordei com a cabeça, minhas mãos frenéticas tentando enxugar as lágrimas que escorriam desenfreadas pelo meu rosto.
— Preciso ir para escola.
Não precisava, chegaria uns vinte minutos mais cedo que o necessário, mas eu precisava sair dali então aproveitaria para ir andando.
Quando abri o portão para a rua dei de cara com Lion na calçada, de uniforme e com a mochila nas costas.
— O que você está fazendo aqui?
— Olá para você também pior melhor amiga do mundo! — Lion me olhou com um misto de desconfiança e preocupação — Eu te mandei mensagem avisando que vinha, te liguei também mas foi tudo para a caixa postal.
Eu tinha colocado o celular em modo avião e não tirei desde que acordei.
— Desculpa, eu estava muito cansada e coloquei o celular em modo avião.
Ele bufou como se não acreditasse, mas não discutiu.
— Vamos — ele me ofereceu o braço e aceitei, então começamos a caminhar juntos pela calçada arborizada do bairro — me conte tudo sobre ontem.
— Que? — gritei. Talvez meu desespero e surpresa tenha transparecido demais.
— Na escola, o trabalho com a professora — ele estalou os dedos na minha frente — Já esqueceu? Aproveite e me conte também o que te deixou tão cansada para aquela conversa na ligação que não fez sentido nenhum. Sério me deixou preocupado, estará minha amiga enlouquecendo?
Lion seguiu tagarelando e me fazendo sentir cada vez mais leves mesmo com os últimos acontecimentos, tantos em tão pouco tempo.
Eu queria contar sobre Draco, toda a loucura que foi a noite anterior e o que tudo isso poderia significar, quer fosse verdade ou não. Talvez eu estivesse sendo enganada por um estuprador qualquer, um com dentes afiados e que matava lobos com o dobro de seu peso só com as mãos e presas.
Eu estava ferrada, isso era fato e não poder compartilhar isso com meu melhor amigo era insuportável. Foda-se o Draco, eu precisava contar para alguém, para minha própria segurança.
— Preciso te contar uma coisa, Lion.
Os olhos castanhos claros de Lion me encaravam com atenção enquanto eu vomitava tudo que havia acontecido na noite anterior. Nesse ponto já estávamos perto da escola, mas havíamos parado na calçada e sentado no meio fio para que eu terminasse de contar sobre a aventura no meu quarto. — Um vampiro? — Questionou Lion, parecendo em choque. — Tem um vampiro nesse exato momento dentro do seu quarto? Ele ainda estava me encarando com os olhos levemente arregalados, me senti um pouco louca para ser honesta. Falar em voz alta sobre isso para outra pessoa fez tudo parecer surreal demais. E talvez realmente fosse.— A não ser que você tenha me pregado uma peça realmente no fim das contas, sim. Tem um vampiro no meu quarto.Eu esperava que meu amigo risse da minha cara. Que zombasse da minha sanidade, mas o que ele fez acendeu um alerta escondido dentro de mim. Ele ficou puto. — Você está louca? O que você pensa que está fazendo Calíope? Você abrigou a porra de um vampiro? — Ele se levanto
— Como assim tudo? Lion me encarou como se não quisesse responder, mas sua boca se moveu mesmo assim. — Me ensinaram desde criança tudo o que é preciso saber sobre vampiros. Então eu apenas sei. Cali… — Me conta o que sabe — pedi, na verdade, meu tom de exigência. Como assim ele foi ensinado? Lion nunca aparentou sequer acreditar em seres sobrenaturais, e agora estava me dizendo que é formado em vampirismo? — Eles são perigosos — Lion respondeu enquanto pegava o celular e mandava mensagem para alguém — São fortes, poderosos física e politicamente no mundo e extremamente persuasivos. São como cobras e você não pode confiar nele, Cali. Meu amigo guardou o celular e seu olhar se perdeu à nossa volta, como se ele estivesse procurando algo ou alguém, mas então o que ele disse penetrou minha mente. — Nele? Você sabe sobre o Draco? Sabia antes de eu te contar? — Lion começa a se balançar parecendo ficar mais nervoso — pra quem você estava mandando mensagem? Antes que ele respondesse
Eu não era uma garota de me intimidar, mas também nunca fui um exemplo de coragem. Minha regra sempre foi: não incomode e não será incomodada. Isso valia para mim e para quem me incomodasse também. E era por isso que meus dias naquele lugar eram sempre neutros e tediosos. A chuva fina caía tão suavemente que parecia neve através da janela do refeitório, eu costumava almoçar lá fora, embaixo da amendoeira no fim do pátio e início do parque florestal. Com a chuva fui obrigada a ficar dentro desse hospício chamado escola, que eu não via a hora de me livrar. Os outros adolescentes gritavam e riam, alguns se pegavam descaradamente, não é como se alguém fosse impedi-los. Até nossas inspetoras eram preguiçosas demais para isso. Todos nessa cidade eram preguiçosos demais. Eu ansiava em viver uma aventura, qualquer coisa seria uma aventura nessa cidade até andar a cavalo na rodovia principal, ou fazer uma trilha a noite… não, isso eu já tentei e não me rendeu nenhuma história legal para
Pude perceber o momento exato em que o homem no meu quarto notou minha presença. Assim que as palavras deixaram meus lábios todo o corpo dele parou de uma forma que deveria ser impossível. Nenhum ser vivo consegue ficar tão imovel como ficou naquele momento, nem seu peito se movia com respiração, ou seus olhos vagueavam como estava fazendo antes. Ele parecia um animal, um predador prestes a atacar. Os segundos que o estranho passou parado foram o suficiente para que eu prestasse mais atenção a sua fisionomia, ele estava agachado mas podia dizer que suas pernas eram longas então ele deveria ser alto. Nem seu cabelo curto e prateado se movia com o vento que entrava pela janela e gelava meus ossos. Os olhos dele estavam vidrados na parede oposta, eu dei um passo a frente para tentar me colocar à frente dele e conseguir enxergá-lo melhor, mas então ele se moveu. Foi muito rápido. Impossivelmente veloz. O tempo que demorei para dar um passo ele já estava de pé na minha frente com toda sua
Começou com uma vontade no meu cérebro e então começou a borbulhar no meu estômago, a gargalhada saiu da garganta com tanta força que tive que cobrir a boca para não chamar a atenção da minha mãe. — O que está fazendo? — perguntou Draco com o olhar perdido. Eu não conseguia parar de rir. Tudo fazia sentido, eu reclamava tanto de tédio que o Lion armou essa para mim. Meu Deus, ele deve ter feito a professora Dembry me prender na escola para dar tempo de fazer tudo isso. Eu ia matar ele. — Eu vou ligar para o Lion — falei para Draco indo em direção ao meu telefone — foi uma ótima sacada da parte dele, quase caí nessa. Vampiro, essa foi boa. Se não fosse essa fala dramática eu teria acreditado, mas vampiro? Por favor né. Quando cheguei na minha mochila para pegar meu telefone Draco surgiu na minha frente e puxou-a da minha mão. A velocidade impressionante como antes. — Você é atleta? Porque deveria ser, é muito rápido para uma pessoa normal. Draco ignorou minha pergunta. — Não v
A cena no meu quarto era assoladora, tinha um animal morto aos pés da minha cama. Tinha um vampiro ensaguentado e machucado sujando minha cama e me sacudindo. Então tinha minha mãe batendo loucamente na porta do meu quarto aos gritos querendo saber o que estava acontecendo, mas eu responderia se nem eu mesma sabia? Meu corpo não queria se mover, apenas meus olhos vagavam pelo meu quarto e para o olhar dourado de Draco a fim de tentar entender o que estava acontecendo. Ele estava falando algo, eu via sua boca se mexer mas não conseguia entender o que falava acima do zumbido da adrenalina e do escândalo que minha mãe fazia na porta. Tentei me concentrar para voltar a realidade e escutá-lo. — Cali, você precisa tirar sua mãe daqui, ela não pode ver o que aconteceu… Cali reage merda! Porra eu vou ter que te dar um choque… — Não, calma — gritei para ele, talvez alto demais — estou aqui, voltei a mim. — Fala com a sua mãe, vou dar um jeito no lobo. — Que? — De repente a realidade bat
Enquanto Draco limpava o sangue do meu quarto me toquei que minha mãe deveria ter visto o sangue em direção ao meu quarto pela casa, talvez por isso ela estivesse tão nervosa, não apenas pelo barulho. Amanhã teria que inventar uma desculpa para aquilo, ou não na verdade. Poderia misturar verdade com mentira e contar sobre o lobo que encontrei na floresta, então inventar que me sujei no seu sangue. Faria Draco limpar aquele sangue também. — Você deveria dormir — falou Draco enquanto passava o pano molhado pelo chão e o torcia no balde que peguei para ele. — Enquanto um vampiro assassino reside sob o mesmo teto que eu? Não acho uma boa ideia. Ele riu. Eu estava deitada na minha cama depois de tomar outro banho, embaixo das cobertas como se elas fossem me proteger do mal quando o próprio mal encarnado estava passando pano no meu chão. — Eu não sou um assassino — sua voz saiu baixa, quase amedrontadora, porém mais como se ele não quisesse falar aquilo. — Você acabou de tirar uma
O que isso deveria significar? Continuei o encarando esperando que ele entendesse a pergunta que pairava em minha mente e prosseguisse. O que ele não fez, e quando Draco abaixou a cabeça para encarar suas mãos resolvi perguntar:— Achei que tinha dito que era um vampiro — desdenhei me virando para encarar o teto — agora você é amaldiçoado, se decide aí.— Ser vampiro é uma maldição. A minha maldição.— Você está fazendo parecer algo horrível.Ele emitiu um ruído de irritação que me fez virar para encará-lo novamente. Ele parecia não acreditar no que estava vendo ao olhar para mim, mas acho que tinha mais a ver com o que havia ouvido sair da minha boca. Eu não entendi.— Você está se ouvindo?Dei de ombros e voltei a encarar as rachaduras no gesso do teto.— Posso ter sido influenciado por série e filmes, até mesmo por crepúsculo, mas ser vampiro não me parece uma existência tão ruim assim. Pelo menos não tão entediante quanto a minha nessa cidade. Ele rosnou, baixo e grave.— Você nã