Um vampiro no meu quarto.
Um vampiro no meu quarto.
Por: Lili Thun
Quem é você?

Eu não era uma garota de me intimidar, mas também nunca fui um exemplo de coragem. Minha regra sempre foi: não incomode e não será incomodada. Isso valia para mim e para quem me incomodasse também. E era por isso que meus dias naquele lugar eram sempre neutros e tediosos.

A chuva fina caía tão suavemente que parecia neve através da janela do refeitório, eu costumava almoçar lá fora, embaixo da amendoeira no fim do pátio e início do parque florestal. Com a chuva fui obrigada a ficar dentro desse hospício chamado escola, que eu não via a hora de me livrar.  

Os outros adolescentes gritavam e riam, alguns se pegavam descaradamente, não é como se alguém fosse impedi-los. Até nossas inspetoras eram preguiçosas demais para isso. Todos nessa cidade eram preguiçosos demais. 

Eu ansiava em viver uma aventura, qualquer coisa seria uma aventura nessa cidade até andar a cavalo na rodovia principal, ou fazer uma trilha a noite… não, isso eu já tentei e não me rendeu nenhuma história legal para contar. O tédio me rodeava e sufocava nessa cidade, por isso eu contava os dias para me formar no ensino médio e partir para a faculdade na capital. 

Adeus TedioTown!

— A vista nem está tão bonita para você está tão focada no que está vendo lá fora, gatinha — assim me suado meu melhor amigo, com um dedo puxando meu queixo para olhar para ele.

— Discordo, a chuva e as montanhas com todo esse verde florestal tem seu charme.

Lion revirou os olhos e ignorou meu mau humor.

— Olha gatinha, eu sei que você tá entediada e tudo é uma merda e blá blá blá — Lion pegou umas batatas fritas na minha bandeja e continuou com a boca cheia e sem educação que eu já estava acostumada — mas ficar com essa cara de bunda não vai mudar nada.

Ele sorriu como se tivesse dado um super conselho e aquela covinha no lado direito de seu rosto fez seu trabalho de me enfeitiçar e fazer meu mau humor sumir.

— Não ficar com cara de bunda também não vai fazer diferença então foda-se a minha cara no fim das contas.

— Ledo engano, um sorriso nesse seu rostinho bonito poderia te tirar do tédio se você aceitasse sair com algum dos garotos da escola.

Bufei e alto para ele.

— Agora é que minha cara não muda mesmo. Você acha que eu quero beijar algum desses garotos nojentos e escrotos daqui? — Puxei minha bandeja para mais perto de mim e dei um tapa na mão de Lion que estava roubando toda a minha comida — Pode ficar tranquilo que sua amiga vai viver muitas emoções na faculdade daqui a seis meses e dez dias.

— Esqueceu as horas — zombou.

— Você é um hipócrita, fala como se estivesse dando muitas chances por aí.

Ele teve a audácia de dar de ombros para mim.

— Meu caso é diferente do seu, além de não ter muitas opções de garotos para eu ficar, também não posso ficar mal falado por ser G-A-Y — ele soletrou as letras com as mãos escondendo a boca, como se a palavra fosse um crime. E como se a maioria das pessoas já não desconfiasse também — Cidade pequena é uma merda.

Lion queria sair da cidade tanto quanto eu, só não fazia tanto drama quanto eu gostava de fazer. E era uma pessoa muito alegre e positiva para ficar resmungando por aí, embora tivesse uma melhor amiga que fazia exatamente isso o dia todo. Parecia um golden tanto na personalidade quanto fisicamente com os fios dourados em sua cabeça e nos pelos de seu corpo.

Antes que eu respondesse meu amigo o sinal alertando o fim do almoço tocou. Nos levantamos para ir a sala de aula, nossas próximas aulas eram todas juntas.

Lion caminhou lado a lado comigo pelos corredores, não éramos populares, mas também não éramos alvos de bullying, apenas mais dois alunos invisíveis na escola. Embora eu achasse que meu amigo poderia ser muito popular se quisesse devido a sua beleza, ele parecia fazer questão de se rebaixar vestindo roupas que mais pareciam trapos rasgados. Ele dizia que era estilo, eu sabia que ele não queria chamar atenção para não se tornar um alvo por sua sexualidade e sofrer na escola. 

Já eu, diferente do meu amigo, não tinha uma beleza rara. Era mais uma morena com olhos azuis opacos e a única coisa que chamava atenção eu escondia muito bem com meu cabelo. A cicatriz que começava na minha bochecha e descia pela lateral do meu pescoço até a nuca estava sempre coberta com maquiagem e com a capa negra dos meus cabelos também. 

No fim, Lion e eu nos unimos com o mesmo objetivo de não chamar atenção para nós mesmos. Cada um com sua cicatriz para proteger, a diferença entre nós é que a minha era externa e visível, a dele não.

— Boa tarde professora Denbry. — cumprimentou Lion ao entrar na sala.

A mulher de meia idade sorriu para meu amigo, mas não respondeu. O segui para nossas carteiras no meio da sala e me surpreendi quando vi a professora na minha frente assim que sentei.

— Tudo bem Cali? — perguntou para mim.

Eu deveria responder rapidamente que sim, mas por algum motivo me senti compelida e constrangida sob o olhar da mulher que sempre fora neutra para mim. Foi como se apenas naquele momento eu pudesse percebê-la, os olhos escuros pareciam estar mais pretos que nunca querendo me hipnotizar. Seu cabelo era do mesmo tom escuro de seus olhos o que fazia sua pele se tornar mais pálida, ou talvez fosse a luz branca da sala e eu estivesse louca. 

Às vezes, eu tinha essa mania de ver coisas onde não tinha para criar uma história mirabolante e fugir do tédio. Era só a professora de história, um pouco chata às vezes, mas apenas uma mulher que era obrigada a passar o dia com vários adolescentes inconvenientes que deviam tirar sua paciência, mas ela não podia fazer nada sem ser presa ou demitida. 

— Estou bem sim, professora. — respondi finalmente. — Algum problema que eu deva me preocupar?

Ela nunca falou comigo diretamente, então certamente tinha algo.

— Na verdade, vou precisar que você fique até depois do horário comigo, o seu trabalho de história está com alguns erros que gostaria que fosse resolvido hoje para não afetar a sua nota.

Que merda.

— Eu não posso consertar o texto em casa e trazer para a senhora amanhã?

Ela sorriu embora a veia em sua testa me dizia que ela queria me matar.

— Temo que não, Cali, você terá que me fazer companhia depois das cinco, ao menos é claro que prefira perder pontos no seu trabalho.

Eu não preferia não. Minhas notas eram boas e qualquer que fossem esses problemas no meu trabalho, se podiam ser consertados em algumas horas, então não eram o suficiente para me dar uma nota tão baixa que me reprovaria. O problema era que passar na faculdade da capital que eu tanto queria frequentar, eu precisava tirar as notas máximas, assim eles não me recusariam. 

Uma pontada no meu dedo indicador e percebi que estava comendo minhas unhas e a carne em volta dela, uma mania nervosa que eu tentava a todo custo perder. Sorri para a professora por fim.

— Tudo bem, eu te encontro na sala dos professores quando minhas aulas terminarem, Sr. Denbry.

A mulher apenas virou as costas e seguiu para a frente da sala onde iniciou a aula. 

A tarde passou devagar, depois da aula de história ainda tinha uma aula de matemática, o que deixou minha cabeça fervendo para encontrar a professora Denbry depois que o sinal indicando o fim das aulas tocou.

— Eu ficaria com você — começou Lion quando me deixou na porta da sala dos professores, seus dedos dançando pelo cabelo loiro escuro — mas minha mãe me ligou dizendo que precisava de mim em casa. 

— Não esperava que ficasse, manda uma beijo pra sua mãe.

Ele me deu um beijo na testa e saiu.

— Te ligo mais tarde.

A sala dos professores estava vazia, apenas a Sr. Denbry estava sentada na enorme mesa redonda. Me sentei ao seu lado onde uma pasta, que deveria ser meu trabalho, já estava disposto sobre a mesa.

— Quais tipos de problema a senhora encontrou no meu trabalho? — perguntei. 

— Abra a pasta e verá — ela indicou a pasta com a mão sem tirar os olhos do notebook a sua frente — deixei todas anotações para você aí.

Assim que abri a pasta fiquei confusa.

— Esse trabalho não é meu.

Ela finalmente olhou para mim, a testa franzida e a boca aberta. 

— Como não? Está seu nome.

Procurei o cabeçalho e não encontrei nome algum.

— Professora eu não sei o que te fez pensar que esse trabalho era meu, mas eu te garanto que não é. A capa está diferente e essa letra não é minha.

Ela me encarou por um tempo até a ficha parecer cair e então ela levantou e foi até seu armário na parede lateral. Depois de mexer lá dentro ela voltou com vários trabalhos escolares na mão. Por vários, quero dizer centenas.

— Você vai ter que me ajudar a encontrar o seu então, por favor.

Só podia ser brincadeira. Quando eu reclamava de estar entediada não era esse tipo de ação que eu estava pedindo.

Concordei e comecei a procurar. Depois de uma hora procurando e checando uma segunda vez chegamos a conclusão que meu trabalho não estava ali. 

— Acho que você vai ter que fazer outro — declarou a professora.

Aquilo não podia ser sério. 

— Professora, eu levei dias para concluir esse trabalho e eu nem lembro mais todas as fontes que usei na pesquisa.

Era um trabalho sobre a segunda guerra mundial em que ela pediu o mínimo de dez páginas. Eu havia levado uma semana e meia para concluir, fiquei noites mal dormidas para escrever aquele texto e ela simplesmente sumiu com meu trabalho?

— Vou levar em consideração, mas preciso que faça um novo ou não poderei te dar nota alguma.

Me levantei com o sangue esquentando todo meu corpo. 

— Eu te entreguei o trabalho que a senhora pediu, eu não posso ser culpada ou penalizada se a senhora o perdeu.

— Abaixe o tom mocinha — os olhos da Sr. Dembry endureceram de uma forma que não havia visto antes em sala de aula. — Você não está em posição de exigir qualquer coisa. Mas vou te ajudar, você pode fazer um resumo apenas, uma redação sobre o tema com tudo que se lembrar, e aceitarei e darei a nota levando essa situação em consideração.

Não era o suficiente. Eu tinha outros trabalhos e matérias para estudar, não era justo que eu ficasse presa ali.

— Posso fazer em casa então pelo menos?

O rosto e a postura da professora enrijeceu.

— Você terá que fazer agora, irei ligar para sua mãe para avisá-la e não se preocupe que te levarei em casa. 

A desgraçada saiu da sala com um ar satisfeito que me deixou com mais raiva ainda. Não era possível que aquilo estava acontecendo. 

Depois de me forçar a me acalmar peguei as folhas em branco oferecidas pela professora e iniciei meu resumo. Não adiantava discutir, se ela queria desse jeito ela era a autoridade e eu precisava da minha nota. Me esforcei para me lembrar de tudo que pesquisei sobre o assunto e duas horas depois meu trabalho estava finalizado. 

A Sr. Dembry olhou no relógio assim que entreguei o trabalho e então ficou mais alguns minutos o lendo. 

— Parece que está tudo certo — falou — vou fazer uma ligação importante e então podemos partir.

Ela me deixou na sala novamente e quando voltou eu finalmente podia ir para casa. A viagem para minha casa foi silenciosa, eu estava com raiva e a professora parecia apreensiva. A perna dela tremia no acelerador e quando chegamos no meu portão ela fez questão de sair do carro e me acompanhar até que eu entrasse. 

Assim que atravessei o portão meu telefone tocou e o nome do Lion brilhou na tela.

— Que timing perfeito — falei ao atender — acabei de chegar em casa.

— Ótimo, ou nem tanto, já que são quase dez da noite, mas me conta o que rolou?

Minha boca estava aberta para responder quando um barulho na parte de trás do meu quintal me assustou. Eu não tinha animais em casa então imaginei que pudesse ser minha mãe, o que seria péssimo pois ela não tinha motivos para estar a essa hora no quintal de casa a não ser que estivesse bebendo.

— Daqui a pouco eu te ligo Lion, acho que minha mãe tá inventando problemas. 

— Claro, mas me liga mesmo ou eu vou te ligar até você perder a paciência. O que não custa muito.

Guardei o telefone depois de desligar já seguindo para a parte de trás da minha casa. Meu quintal atrás não era cercado, a casa ficava aos pés de uma montanha com uma trilha para a floresta que não era tão densa. Assim que cheguei onde ficava a churrasqueira e a área gourmet que meu pai havia feito com tanto amor notei que não havia ninguém ali.

Me encaminhei para entrar pela porta da cozinha em casa e então o barulho de galhos se quebrando chegou aos meus ouvidos novamente, dessa vez seguido de uma voz abafada. Não era possível que minha mãe estivesse bêbada na floresta, era?

Joguei minha mochila no chão e corri para a trilha já imaginando minha mãe caída e machucada entre as árvores. Não precisei correr muito, embaixo de uma árvore e apoiado em um tronco estava um urso ou era lobo, estava escuro e eu só conseguia discernir sua forma amarronzada e ensanguentada encolhida. 

Então eu corri de novo. Dessa vez de volta para casa. 

Qualquer que fosse o animal ferido ele também poderia me ferir e por mais que eu amasse os animais, eu não pretendia ser o jantar de algum. Corri para casa já pensando em ligar para o xerife para que ele pudesse contatar a guarda florestal e ajudar o animal, algo que eu não podia fazer. No entanto, assim que entrei na cozinha todos os pensamentos fugiram da minha mente. 

Havia um rastro de sangue. Não era muito, não tanto quanto na floresta com aquele animal, mas era o suficiente para me preocupar. 

Gritei pela minha mãe e ouvi um barulho no andar de cima. Corri para seu quarto, mas ela não estava lá, e nem o rastro de sangue seguia esse caminho. Encarei o chão sem querer acreditar que aquelas gotas estavam se encaminhando para o meu quarto. A porta estava entreaberta e pela fresta eu podia ver uma pessoa agachada ao lado da minha cama.

Meu primeiro impulso foi terminar de abrir a porta com o coração pulsando na minha garganta, pois achava ser minha mãe machucada, mas assim que dei o primeiro passo para dentro do quarto notei meu erro e travei no lugar.

Todo meu corpo estava parado, apenas meu coração insistia em bater loucamente no meu peito. Havia um homem com os cabelos brancos brilhando sob a luz da lua que atravessava a janela. Ele estava caído no chão, uma mão estava vermelha de sangue sobre seu estômago e a outra segurava meu travesseiro contra seu rosto.

Ele parecia cansado e debilitado, parecia que ele só queria deitar e dormir, mas não conseguiu chegar na cama direito.

— O cheiro — ele resmungava, mas sem notar minha presença ainda, como se estivesse justificando algo para si mesmo. Ou estava delirando, era uma possibilidade também.  — Eu segui o cheiro… não devia estar aqui, mas… o cheiro…

Eu quase dei os passos para fora do quarto, para então ligar para alguém que pudesse me ajudar. Eu não sabia quem era aquele homem, poderia ser alguém precisando de ajuda, mas poderia ser o contrário também. Mas algo me impediu de fazer o que uma garota de dezessete anos ao encontrar em seu quarto deveria fazer.

O tédio. Ah, eu reclamava tanto dele e olha só, ali estava uma oportunidade de algo novo acontecer comigo. Morrer talvez, ou ser brutalmente violentada. Mas eu tinha só dezessete anos, ninguém poderia me julgar por ser inconsequente uma vez.

Então, reunindo coragem, encontrei minha voz presa na garganta e perguntei aquele homem:

— Quem é você?

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