Ouvi o som do carro estacionando na garagem e meu coração deu um pulo! Larguei o biscoito que estava comendo, minha boneca, a comidinha de massinha que fazia e saí correndo para a porta. Jojo me olhou com tristeza e falou:
— Sofia, querida, lembra do que conversamos? Seu pai não gosta de abraços.
Joana era minha babá, mas fingi que não escutei o aviso. Papai estava em casa! Fazia tanto tempo que eu esperava por ele. Fiquei na ponta dos pés para espiar pela janela. Quando a porta se abriu, meu peito quase explodiu de alegria. Queria correr e pular nos braços dele, mas tive medo que brigasse comigo. Então, fiquei ali, parada, quietinha, perto da porta. Talvez, se ele me visse, me desse um sorriso.
Ele entrou, estava no celular, falando daquele jeito sério:
— Preciso que o relatório esteja pronto amanhã cedo. Sem desculpas, entendeu?
Depois, ele desligou o celular, e eu tentei chamá-lo:
— Papai?
Mas ele só fez um gesto com a mão, como se pedisse para eu esperar, e foi direto para o escritório. Meu coração apertou, e corri atrás dele, desesperada para falar, mas, quando cheguei, ele já tinha fechado a porta. Encostei meu ouvido contra a madeira fria, tentando escutar alguma coisa. Ouvi sua voz firme. Ele estava bravo. De uns tempos para cá, ele sempre estava bravo.
Voltei para a sala para lanchar, abraçando minha boneca. Não era assim antes. Papai brincava comigo. Ele ria e dizia que minhas tranças eram antenas de extraterrestres. Mas agora ele só trabalhava. Desde que a mamãe ficou doente, ele mudou... E desde que a vovó se foi, ele nunca mais teve tempo para nada.
Mordi o biscoito, mas senti um gosto estranho. Quando olhei, tinha sangue e meu dente estava na minha mão. Fiquei com muito medo.
— Calma, Sofia! Está tudo bem — a Jojo veio ao meu encontro. — O seu dente caiu. Viu, querida? Você não quis deixar arrancar e quase engoliu ele. Mas eu já peguei. — Ela me abraçou apertado e tentou me acalmar, mas tudo o que eu conseguia pensar era no quanto eu ia sentir falta dela. Como ela podia ir embora? Não parecia justo. Papai disse que a Jojo "não combinava com a visão da nossa família". Eu não entendia direito o que isso queria dizer, mas ele achava que ela era boazinha demais e que isso não ia me ajudar a crescer pronta para o mundo.
Talvez ele tenha razão, porque eu me sinto pequena para tudo. Bem pequena. Só que o que mais machucava mesmo era pensar em como seria sem ela ali. Quando a babá Jojo estava por perto, o vazio não parecia tão grande.
Ela lavou minha boca com cuidado e me deu um copo d’água.
— Jojo, onde você vai trabalhar agora?
— Bem, querida, seu pai me arrumou um novo emprego. E, apesar de a nova família ser maravilhosa, você sempre será a minha garotinha de sete anos favorita.
Me senti um pouco melhor com a frase dela e, depois, com aquele sorriso calmo que ela sempre tinha, disse:
— Coloque embaixo do travesseiro que a fada do dente virá te dar uma moeda.
Ela me deu um beijo e foi para a cozinha. Eu não queria uma moeda; queria outra coisa. Queria meu pai feliz de volta.
Sentei no tapete e olhei para o desenho que tinha feito mais cedo. Peguei uma folha nova e escrevi bem devagar, para ficar bonito:
"Querida fada do dente,
Você pode me ajudar? Eu dou meu dente para você, se fizer o papai sorrir de novo. "
Dobrei o papel com cuidado, fui para o meu quarto e escondi ele bem no fundo da minha mochila. Deitei na cama abraçando o travesseiro, pensando no meu papai e na Jojo. Meus olhos começaram a ficar molhados, mas eu apertei a boca bem forte e escondi o rosto no travesseiro, com medo de que alguém me visse chorando e brigasse comigo. Acabei adormecendo.
Na manhã seguinte, eu e Jojo fomos visitar papai na empresa. Era um dia triste, porque era o seu último dia comigo. Enquanto esperávamos, papai apareceu vindo na nossa direção, acompanhado de alguém. Levantei rápido da poltrona para cumprimentá-los, mas, sem querer, meu bilhete escorregou e caiu no chão. Foi assim que ela entrou na minha vida.
— Pode entrar. — Com licença, senhor. Uma mulher alta e elegante entrou em minha sala com passos firmes, exalando discrição e compostura. Seu currículo, mandando pela melhor agência do país, estava em minhas mãos e informava que tinha vinte e oito anos, mas sua postura madura transmitia uma experiência que parecia ir além dessa idade. Os cabelos castanhos, presos de forma impecável, reforçavam sua imagem de profissionalismo, e seus olhos atentos, carregavam um ar sereno. Apesar de sua beleza natural, sua expressão mantinha-se séria e reservada, refletindo um autocontrole que inspirava confiança — exatamente o que eu procurava. Joana era uma boa funcionária, mas tinha um grande defeito: enchia a cabeça da minha filha com brincadeiras, filmes e outras distrações inúteis. Sofia não precisava disso. Ela precisava de disciplina, de estrutura, e não de fantasias. Por isso, decidi realocar Joana para outra família. Lá, ela se encaixaria melhor. Sofia preci
Eu ainda tentava entender aquele homem. Será que ele realmente acreditava que essa abordagem era o melhor para a Sofia? Ou seria apenas uma forma de se proteger do mundo, de não ter que lidar com algo que ele não pudesse controlar? As perguntas dele eram tão diretas e objetivas que, por um momento, me senti como se estivesse em uma entrevista para um cargo corporativo, e não para cuidar de uma criança. Ele queria respostas práticas, sem espaço para sonhos ou fantasias — nem mesmo para uma fada do dente. Respondi como Joana me treinou. Será que era mesmo certo fazer isso? Eu acreditava na disciplina e no esforço mas não acreditava na ideia de que o papel do pai não era estar ao lado de filho nas pequenas tarefas diárias mas sim se preocupar em apenas garantir a segurança e futuro deles. E esse era todo o conflito aqui. Aquele homem não sabia que Sofia podia ter as duas coisas. Eu não negava que sua aparência era intimidadora. Ele era alto, imponente, cabelos e b
Estava quase na hora de Celina chegar, e Sofia ainda dormia. Eu já tinha me despedido no dia anterior. Agora sairia assim que Celina chegasse; não queria que Sofia me visse partir e ficasse triste outra vez. O novo emprego era maravilhoso, e eu já conhecia a família. Mas ficar lá e deixar Sofia com alguém que eu não conhecia significaria quebrar minha promessa. Mas com Celina ali, daria tudo certo. Ela é a única pessoa além de mim, que seria capaz de amar tanto Sofia quanto eu. Olhei para a casa onde tinha morado nos últimos doze meses. A avó de Sofia, Regina, havia imposto ao senhor Gabriel que me contratasse e garantiu que eu continuasse ali. Mas fazia dois meses que ela tinha morrido, e isso era tudo o que o senhor CEO precisava para me colocar para fora. Ele nunca concordou com os meus métodos. Achava que eu mimava Sofia demais. E eu? Não soube lidar com ele. Não soube me impor, me defender e, principalmente, defender Sofia. Mas Celina conseguiria. Para c
Assim que Joana deixou a casa, me vi nervosa. Não passava um dia sem que eu pensasse naquela noite que tudo mudou. Eu sei como Joana se sentia, eu me sentia igual. Eu sei que laços de amor nos prendiam e era por isso que eu ia cuidar da pequena Sofia. Mas eu não sei como iria conseguir. Se Joana com toda sua gentileza e carinho não conseguiu, eu não tinha chance. Eu não era doce e nem sabia iluminar a vida das pessoas ao meu redor. Eu só tinha… inteligência. Inteligência que eu passei a vida toda tentando esconder. No meu programa de mestrado, eu era sempre vista como arrogante e mandona, só por questionar as coisas. E agora estava em um lugar onde eu não poderia questionar. Precisava ser exatamente o que Gabriel queria. Fiquei sentada relembrando o passado com a minha mala na mão. Divagando, não perguntei a governanta onde era meu quarto e quando me lembrei, já era tarde demais. Pequenos passos interromperam meus pensamentos. Olhei para o lado e vi
— Celina. — Pois não, senhor. Precisa de alguma coisa? — continuei fingindo inocência. — A Joana não deixou a agenda de Sofia com você? — Deixou sim, senhor. — A culpa é de quem por esse atraso, então? Sofia não quis vir e eu devo castigá-la por ser desobediente ou foi a … que errou e atrasou as duas? Fiquei paralisada. Uma de nós duas estaria encrencada de qualquer forma. Respirei fundo e respondi: — Eu entendo sua frustração, senhor Gabriel. A culpa é minha, sim. Eu deveria ter supervisionado melhor e garantido que Sofia não se atrasasse. Vou me certificar de que isso não se repita. Porém, também é importante que Sofia entenda que a responsabilidade é compartilhada. Ela precisa aprender que, em alguns momentos, precisa tomar a iniciativa para evitar esse tipo de erro. Vamos usar isso como uma lição para todos nós — respondi sem acreditar em nada do que eu dizia, mas torcendo para fosse o que ele queria ouvir. Meu corpo relaxou quando ele disse
Nunca devia ter acreditado que Sofia escolheria uma punição condizente com o meu erro. Ela era uma criança, com a pureza ingênua de quem ainda não compreende o peso das responsabilidades adultas. Não fazia ideia do que um dia de minha ausência na empresa poderia causar. Para ela, tudo parecia simples, direto, sem consequências de longo prazo. Um dia sem trabalhar? Seu pedido tinha um preço. Um preço alto demais. Eu não podia simplesmente me afastar. A MD Tecnologias e Informação não era apenas um negócio, era o legado da minha família, algo que construí tijolo por tijolo, com sacrifício e disciplina. Cada decisão que tomei, cada noite sem dormir, cada oportunidade que agarrei ou deixei escapar estava impregnada na estrutura daquela empresa. Tudo dependia de mim. Meus funcionários, meus clientes, os investidores — todos esperavam minha liderança inabalável. Mas ali estava Sofia, me olhando com aqueles olhos grandes, repletos de uma expectativa que me desarma
Fechei os olhos por um instante e expirei lentamente. — Está bem, Sofia — concordei. Olhei para ela, e seu sorriso ocupava metade do rosto. Era contagiante vê-la tão feliz, e isso aqueceu meu coração. Mas, junto com essa alegria, surgia a responsabilidade: para que ela continuasse assim, eu precisava garantir que estava preparando-a para o futuro. Tudo bem, eu poderia fazer os dois mundos funcionarem. Ficaria com Sofia e trabalharia de casa. Simples, aqui tinha tudo o que eu precisava, poderia fazer meu trabalho daqui por um dia. Só precisava avisar meu assistente. Estava prestes a pegar o telefone quando, como se pudesse ler meus pensamentos, a Celina me surpreendeu ao dizer: — Não pode passar o dia no telefone ou no computador, senhor. Sua punição é ficar um dia sem trabalhar. Eu estava com o celular na orelha, depois de discar o número do meu assistente, Matheus, quando a frase dela me atingiu como um soco. Sem conseguir processar dir
— Droga! Eu não sou uma pessoa desastrada! Como isso aconteceu? A exclamação ecoou pela cozinha vazia enquanto eu olhava, incrédula, para a blusa encharcada. Água escorria pelo tecido e grudava na minha pele, gelada e incômoda. Ótimo. Como se eu já não tivesse preocupações suficientes, agora estava ali, parecendo uma pessoa que não sabia segurar um copo. Se Gabriel me visse assim, teria um treco. A culpa era de Joana, falei para não ficar me ligando no serviço. Eu estou fazendo o meu melhor, me pressionar não vai fazer o plano andar mais rápido. Mas Joana era teimosa, e eu me frustrei, não prestei atenção e derrubei água em mim. Por sorte, Joana tinha me avisado sobre como o senhor pontualidade gostava de tudo impecável—rigoroso até nos mínimos detalhes. Não era à toa que, evitando imprevistos como esse, eu tinha sido esperta o suficiente para providenciar um esquema infalível: roupas idênticas para emergências. Nada de perder tempo escolhendo outra coisa ou su