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Aproximadamente Século XIV

Helena Lewis

Sinto o suor escorrer do meu rosto fazendo trilhas até chegar em meu pescoço em meio ao som da espada de Bernard em atrito com a minha. Estamos no imenso pátio da nossa residência, próximo ao gramado e da fonte, nossa casa ao fundo, se trata de uma enorme e bela construção de pedra, bem parecida com um castelo, localizada nas terras férteis de Village. Bernard, meu irmão é forte e resistente, sempre fora, por isso seguro com as duas mãos de forma firme a minha arma e vou-lhe empurrando com tudo enquanto vejo seu rosto se enrijecer e as veias saltarem de sua têmpora revelando o tamanho de seu esforço. Meu coque negro se desfaz deixando uma longa mexa cair em meus olhos, e ao contrário do que esperam, não permito que me tire a concentração, afasto as pernas mesmo com dificuldades por causa do vestido longo, além dos espartilhos que as vezes me apertam demais, lutar com essas roupas não é muito justo, entretanto a ideia de que uma mulher use calças parece um absurdo aos ver de todos, principalmente a papai e Eduard, meu irmão mais velho, chamam tal possibilidade de inviável e descabida 

Esta sou eu, Helena Lewis.

Sei que não é comum ver uma mulher lutando com uma espada. É porque sou um tipo de jovem bem diferente das moças que possuem a minha idade. Eu deveria estar preparando para me casar, construir uma família, como uma verdadeira dama é preparada sua vida inteira. Mas devido algumas circunstâncias ruins, também fui preparada para outras finalidades. Afinal sou a única mulher entre três homens, cresci admirando meus irmãos, Eduard, Bernard e Edgar sendo treinados para se tornarem grandes soldados, carregando a responsabilidade nos ombros em dar continuidade a carreira militar do nosso pai, o tão honrado general Theodoro Lewis. Meu pai é aclamado em toda cidade, afinal lutou em grandes guerras e batalhas em defesa do nosso povo, conquistou honra e respeito durante os seus muitos anos e lutas no exército com grande esplendor. Hoje ele se aposentou, deixou as espadas e escudos, pois a idade já não lhe permite mais, mesmo assim ainda é admirado por toda sua bravura no tempo em que lutou.

As vezes me sinto perdida, como se estivesse vivendo uma vida que não é a minha. Mas então qual é o meu designo? O casamento não me atrai, minha vida as vezes é monótona e entediante, a não ser quando estou treinando, é o único momento em que sinto prazer de verdade. Mas eu sei que isso acaba aqui, pois quando me casar, certamente meu futuro marido não me permitirá continuar treinando, afinal manusear armas e dominar golpes não são modos de uma dama.

O som cômico da risada de meu irmão invade meus pensamentos. Sinto meu corpo sendo lançado para trás quando ele ainda me empurra com sua espada.

— Acorde, Lena! Pare de pensar em seus vestidos de seda para a grande noite, e se concentre na batalha! 

Lena é uma forma carinhosa que meus irmãos me chamam, foi assim desde sempre… e adoro, nos torna ainda mais próximos..

Respiro fundo ignorando suas palavras irônicas, ele deseja me desconcentrar, é típico de homens quando estão diante de mim numa batalha. O encaro enquanto preparo meu novo ataque. Parto para cima novamente e logo nossas espadas entram em contato uma com a outra de forma voraz. Gosto de lutar com ele, entre meus irmãos, Bernard é o  que acredita em meu potencial. Não é relutante quanto papai e Eduard, Edgar nem tanto, mas não é como Bernard, eles acreditam que uma mulher não foi designada para manejar espadas, arcos e flechas e sim para bordar e se submeter ao marido e aos afazeres da casa e é claro... Ter filhos muitos deles... Eu deveria ter me dedicado mais a isso se não fosse a tragédia que acometeu nossa família há dez anos atrás: 

"Nossa pequena cidade de Village foi atacada brutalmente por um exército inimigo, tudo foi destruído, as casas do vilarejo foram queimadas e muitas pessoas mortas. Os inimigos sabiam que papai era general e o alvo deles era nos matar, acabar com todos os Lewis.

Ainda era noite quando invadiram nossa residência, meus irmãos lutaram bravamente, papai havia ordenado alguns soldados que faziam a nossa guarda que levassem a mim e mamãe e nos mantivessem seguros. Mas os dois soldados foram atacados no meio do caminho e não restou outra alternativa que não fosse lutar e tentar nos salvar. Mamãe tentou me proteger de todas as formas, como qualquer mãe desesperada faria, mesmo sem nenhum treinamento militar, mas ela era tão indefesa quanto eu e se colocou a minha frente sendo atingida por um dos homens com uma espada, mesmo apavorada eu precisava reagir, havia assistido a muitos treinos dos meus irmãos e quando estava sozinha ficava os imitando, usando pedaços de madeira como se fossem espadas, não sei ao certo se era um dom natural ou coisa parecida mas quando aquele homem me segurou com brutalidade na tentativa de me levar, eu mordi seu pescoço com toda minha força fazendo com que ele me soltasse, senti meu corpo cair abruptamente, e vi uma espada ao chão de um dos soldados que nos faziam escolta, ele estava morto. Peguei a espada e lancei com toda força que eu tinha, pois, era muito jovem e pequena, entretanto, não foi impedimento para rasgar a garganta do homem.

Naquele dia perdemos a mamãe, ela não sobreviveu ao ataque. Logo o reforço do exercito de Village em peso surgiu salvando o que havia restado da nossa cidade. Todos nós ficamos arrasados com a perda da mamãe. Mas naquele dia meu pai decidiu que eu seria treinada, havia ficado orgulhoso em saber que reagi e ataquei o inimigo, e pude me salvar. Assim recebi um excelente treinamento de guerra, segundo papai, somente para minha própria autodefesa". 

Treinar despertava algo bom dentro de mim.

Volto-me atenção para Bernard e nossa luta, certa de que não estou distraída, prova disso é que dou um giro passando por seus ombros e costas conseguindo pegá-lo pela retaguarda. Antes que Bernard diga qualquer coisa, minha espada está em seu pescoço.

— Renda-se, soldado!— falo satisfeita.

Sorrio pela vitória.

Ouço a respiração ofegante de meu irmão enquanto ainda o tenho em meus braços firme.

— Eu me rendo! — ele fala lançando sua espada ao chão. Mesmo se tratando de uma derrota, sinto que ele está orgulhoso  — Pobre daquele que se tornará seu marido, minha irmãzinha, você tem muita força nos braços para uma dama.

Eu o solto e ele levanta os braços em rendição.

Ouço as palmas de Edgar e Eduard, mesmo com certa resistência, parecem orgulhosos em me ver com Bernard rendido. Nem lembrava de que eles estavam ali assistindo tudo. 

— Não posso negar que foi uma boa luta, embora acredito que nossa irmã deveria se ocupar com a preparação para o jantar de noivado logo a noite — Eduard fala relutante.

Apesar de não apoiar meus treinos e acreditar que papai mima muito a mim, Eduard é meu irmão mais velho, e temos um bom relacionamento assim como com os outros. Respiro fundo quando novamente me lembro que vou me comprometer com alguém que nem ao menos conheço.

Quando completei 17 anos recebi meu primeiro pretendente, Eliot Grem, mas o rapaz ficou bem assustado ao descobrir que eu sabia manejar bem uma espada, depois de uma boa demonstração ele nunca mais voltou, apenas mandou um mensageiro com uma carta dedicada a papai dizendo que desejava uma esposa mais "caseira". Claro que Eduard aproveitou para repetir milhares de vezes que isso era uma tragédia esperada, e que nenhum homem aceitaria se casar com uma jovem que passava horas com rapazes em treinos e com lanças ou espadas nas mãos. E ele tinha razão, de alguma forma todos os meus pretendentes fugiam do compromisso. 

Mas desta vez, papai insiste em ter encontrado o noivo perfeito, um Cavaleiro do exército do norte, ele acredita que casando-me com um bravo guerreiro, me aproximo do grande amor que carrego pelas espadas, e assim meu casamento será um sucesso. Talvez papai esteja equivocado, tal fato não me anima nem um pouco, mas não posso decepcionar minha família, preciso cumprir o meu papel.

Alexandre Trover, esse é o nome do meu pretende, nesta noite teremos o nosso primeiro encontro oficial num jantar de noivado.

Bernard se recompõe da surra que acabara de levar e ignora Eduard.

— Parabéns, Lena. Embora tenha perdido a luta, estou orgulhoso. Você se tornou uma grande guerreira, tem um coração muito valente — ele diz a frase que se tornou comum, Bernard insiste em dizer isso todas as vezes que treinamos.

Eduard com suas sobrancelha grossas e seu cabelo negro impecavelmente penteado, que o tornam um tanto engomadinho, continua a provocar:

— Pare com esses elogios, você sabe muito bem que nossa irmã desperdiçou o tempo todos esses anos com esses treinos, Helena deveria estar preparada para se tornar uma boa esposa. Mas todos nós sabemos que ela na verdade será uma negação como senhora da casa.

Apesar de amar tanto meu irmão, confesso que muito das vezes Eduard me irrita.

— Chega, Eduard! — Edgar defende se aproximando. Ele repousa seus braços sobre meus ombros orgulhoso. — Você foi muito bem maninha! Embora vencer Bernard não é lá um grande desafio. — fala em tom brincalhão.

Bernard lhe empurra com os ombros de leve enquanto ri.

— Ah é, é todas as vezes em que te venci? — resmunga Bernard enquanto limpa a testa com um lenço que retirou do bolso.

Edgar retribui com uma risada.

— Você sabe que eu te deixo vencer!

Ele é o mais calado entre nós quatro. Apesar de ser o mais jovem dos homens, Edgar, carrega muitas características de papai, tem olhos grandes e escuros como duas uvas negras, rosto fino e pele clara, assim como todos nós, mas é o único de cabelos cor de mel como os da mamãe.

Eduard se aproxima e me envolve com o braço do outro lado, livre.

— Irmã, sabe o quanto eu também tenho orgulho de você, nem sempre demonstro tal afeição, mas saiba que eu desejo o seu bem — ele diz e se afasta. — A propósito, sei que ir se adaptar ao casamento. 

Reviro os olhos com seu tom prepotente no final da frase 

Neste momento Catherine minha cunhada surge no pátio, ela é loira de lindos olhos azuis é a perfeição em pessoa, parece mais uma pintura em tela, uma mulher bem criada e treinada para se tornar uma boa esposa, assim como eu sei que jamais serei. Ela é casada com Eduard, juntos ele tem Molli, minha sobrinha de cinco anos, um amorzinho. Catherine está parada com as mãos na cintura, assistindo a discussão sobre minha vida, usa um belo vestido cheio de rendas bem costurado ao seu corpo, deixando sua barriga de seis meses de gestação bem nítida.

— Deixa sua irmã em paz, Eduard — Ela fala com sua voz doce e meiga.

Neste momento quem interrompe a nossa discussão é papai que acaba de chegar em sua carruagem.  Nosso cocheiro estaciona do outro lado da fonte e mesmo distante consigo ouvir o som de sua irritação por notar o meu estado e que não estou me preparando para o jantar.

Todos observamos ele se aproximar batendo as botas firmes no chão, fico um tanto tensa. 

— Helena... — a voz de papai soa cheia de recriminação. Eu já esperava.

— Viu, falei para o seu próprio bem — Eduard sussurra de longe como se estivesse ao meu favor, mas na verdade é pura implicância, ele se gaba por achar estar certo o tempo todo. Vejo Catherine  lhe dar um leve empurrão de ombros bem discreto.

Edgar tenta amenizar a situação:

— Papai, a Lena acaba de vencer Bernard na espada, uma esplêndida batalha!

Bernard dá um passo e estufa o peito enquanto limpa suas vestes sujas de lama.

— Devo confessar que Lena foi incrível, papai.

Vejo o Sr. Theodoro me analisar com uma expressão indecifrável. Um "v" se forma em sua testa. Logo ele suspira como se não conseguisse permanecer firme por muito tempo.

— Helena, minha filha... Logo hoje que você tem um compromisso importante?

Eduard como sempre não perde uma oportunidade:

— A deixe, papai. A Lena estava apenas se despedindo das espadas. E Bernard levou uma boa surra!

As últimas palavras de Eduard fizeram o papai soltar um longo sorriso. Sei que no fundo ele se orgulha também.

Bernard tenta se defender:

— Ah, quem de nós, nunca tomou uma surra de nossa irmã caçula?

Logo todos caem na gargalhada, porque realmente já venci muitas vezes meus irmãos, e sei que em muitas delas, nunca houve uma vantagem, já lutei pra valer com todos. 

Felizmente o clima tenso se ameniza.

Entre gargalhadas papai confessa:

— Até mesmo o Sargento Theodoro Lewis já perdeu uma luta para sua filhinha — papai fala se referindo a ele mesmo, se lembrando de nossos treinos. 

Ele se aproxima me encarando nos olhos de forma carinhosa.

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