04

Dois meses depois ...

Os dias pareciam bastante longos e completamente entediantes. Depois que papai me proibiu de treinar não tenho muito o que fazer, na verdade poderia estar ocupada em minhas aulas de grego, mas precisei inventar algum mal estar, meu estado de espírito não me permitia pensar em nada que não fosse Bernard. Faz quase dois meses que não temos notícias de meu irmão. Vivemos em constante angústia. A guerra tem alcançado as colônias, há boatos de que o império de Naor está dominando todo Norte, e Bernard estava lutando por lá aos arredores de Constantine e Molavid. 

Edgar retornou bastante assustado com o que enfrentaram, ele sofreu um ferimento de flecha no braço, e está se recuperando. Ele viu quando nosso irmão foi levado pelos inimigos depois de dizimarem seu exército. Edgar está em estado de choque com tudo que presenciou, quase não fala, nem ao menos sai de seus aposentos. Sempre passo pelos arredores de seu quarto e sinto o cheiro forte da tinta que ele usa para suas telas, quando não está bem meu irmão entrega a sua arte. Papai está arrasado, preocupado com o estado de Edgar, por isso não intervém mesmo nunca tendo se agradado de tais modos artísticos do meu irmão, no entanto, sabe bem que se trata de um refúgio para ele depois de todo horror que viveu.

Cavalgo pelas campinas litorâneas até chegar ao alto rochoso, desço de Eros, meu cavalo segurando minhas saias erguendo-as, enquanto a brisa brinca com um fio do meu cabelo solto, amarro suas rédeas em um lugar seguro. O dia está lindo e assistir as ondas do mar se quebrando na praia talvez me ajude a colocar os pensamentos em ordem. Costumo vir muito aqui quando preciso de um momento sozinha, fica apenas alguns minutos da nossa propriedade, se trata de uma parte deserta, onde há anos atrás meu bisavô recebia os cavalos que chegavam das longas viagens marítimas, e ficavam aos cuidados dos escravos, hoje é uma colcheia abandonada, depois que chegaram os portos ninguém mais âncora por aqui, os cavalos são levados para um lugar específico onde recebem alimentação e cuidado. 

Me sento na pedra maior ajeitando meu vestido novamente. Imagens do meu irmão invadem minha mente. Lembranças de Bernard com seu cabelo negro levemente ondulados, como os meus, sua pele clara e uma beleza que causavam suspiros por onde passava. Me recordo das moças lançando olhares para meu irmão, dos nossos treinos, ele se esforçando para me ensinar tudo o que sabia, de flechas, de lanças... Uma lágrima escorre de meus olhos, a dor aperta todas as partes do meu corpo, ouvi papai dizer antes de sair de casa que uma tropa de Molavid havia sido enviada para um resgate há semanas. Ainda há esperanças de que encontrem meu irmão com vida, talvez tudo se ajeite e eu e ele ainda possamos lutar mais uma vez, mesmo que escondido de papai. Sorrio esperançosa ainda entre as lágrimas, fungo e limpo meus olhos enquanto o vento insiste em balançar meu cabelo. Retiro a mexa dos olhos e novamente admiro a paisagem a minha frente desejando ser acalentada pela beleza da natureza, o mar está calmo, o céu num azul imenso de uma tarde quente. Uma certa imagem me inquieta, noto ao longe, nas areias da praia algo se rastejando, observo mais atentamente, talvez seja algum animal encalhado. Minha garganta está seca, por isso bebo um gole de água no cantil e confiro Eros confortavelmente se alimentando de uma grama debaixo da sombra em que o deixei. Olho novamente para praia, uma ideia me vem a mente, poderia descer e ajudar o pobre animal encalhado, seja lá qual fosse.

Levanto num salto e desço as pedras com habilidade. Passo entre as árvores e salto alguns galhos no chão, certamente a última tempestade derrubou alguns troncos. Já ofegante e suada pelo calor inquietante começo a me argumentar se essa realmente havia sido uma boa ideia. Entretanto minha curiosidade se aguça quando noto que estou muito perto para recuar.

Então vejo ele... o suposto animal, me sinto demasiadamente agitada quando percebo que estive enganada esse tempo todo. Não se trata de um animal, mas... Talvez seja uma pessoa.

Me aninho atrás de uma pedra, preciso me manter segura, afinal não sei ao certo do que se trata. Me aproximo lentamente ainda entre algumas pedras tentando me esconder. Agora mais próxima fico surpresa, pois tenho a certeza de que não se trata de nenhuma espécie marítima, mas sim de um homem, certamente soldado, ele está usando uma armadura, parece estar desacordado ou morto porque as ondas batem em seu corpo por repetidas vezes e ele não se move. E mesmo sem conhecê-lo sinto um aperto no peito temendo tal possibilidade. Ainda fico parada onde estou agachada por detrás de uma pedra o observando. Penso que ele possa ser até mesmo algum inimigo abatido, por isso fico em alerta.

Alguns minutos se passam e ele ainda não se move. Estou muito ansiosa, talvez seja apenas curiosidade. Por isso, preciso chegar mais perto para ter certeza de que ele realmente está morto, e mesmo angustiada não hesito. Talvez ainda haja tempo de fazer algo para ajudá-lo.

Em pequenos passos me aproximo, ouço minha respiração pesada e tento controlá-la. Vejo que o peito do soldado se movimenta em ritmo lento por sobre a armadura descendo e se erguendo sem brusquidão. Ele está vivo! 

O que é um bom sinal, porém se for alguém perigoso sei muito bem me defender, então fico atenta. Penso e respiro para mim mesma com valentia. 

Analiso a figura mais uma vez e enquanto o observo, me sinto estranha, confesso que meu estômago se contrai e minha boca fica seca, talvez seja porque ele é diferente de todos os homens que eu já vi. Ele é alto e grande, como todos os soldados, me sinto pequena perto dele, sua pele tem um tom bronzeado e seus cabelos estão bastante cortados, o que é bem incomum, sua barba um pouco crescida e apesar de toda areia em seu rosto ele parece ser bonito. 

De repente o vejo se mover devagar, e em minha defesa eu me esquivo rapidamente. Então o ouço gemer como se sentisse muita dor. Mesmo temerosa, acredito que devo ao menos tentar descobrir de quem se trata e se está ferido, parece muito fraco para me atacar, respiro fundo e chego perto mais uma vez. Ele fica imóvel novamente, então me ajoelho e começo a procurar por alguma identificação ou arma, assim como Bernard me ensinou.

"Sempre se certifique de que o suspeito está desarmado, e de quem se trata, para sua própria segurança."

As palavras de meu irmão invadem minha mente.

Toco em seu corpo a procura de algo, meu coração b**e de forma acelerada com toda adrenalina do momento. Passo a mão em seu peito me demorando um pouco pela extensão do peitoral, ele é ainda maior assim de perto, desço a mão por seu braço direito e na sequência o esquerdo, de repente coro, é estranho tocar alguém desta forma, nunca toquei em um homem assim, se meu pai ou meus irmão imaginarem que fiz isso, certamente terei problemas, e mesmo sabendo o quanto é errado concentro no que estou fazendo, afinal é para minha própria segurança. Logo meus olhos se voltam por suas pernas, as calças estão coladas em seus músculos encharcadas pela humildade, fico imaginando se são tão desenhadas quanto o restante, meu rosto queima novamente e certamente fico ruborizada, me sinto perturbada com esta sensação estranha causada por um desconhecido. Entretanto é necessário continuar, preciso me certificar se ele não está armado. Então, passo a mão na parte inferior de suas calças, apalpando lentamente, ignorando o ritmo frenético em que meu coração insiste em b**er. Então, sinto que ele tem algo nos bolsos, imediatamente enfio as mãos dentro do tecido e confirmo, há um saquinho de veludo bem amarrado, logo o retiro e um som de moedas tilintando soam, dou mais uma conferida no rosto do homem para ter certeza de que ainda está inconsciente. Curiosa abro o saquinho que está encharcado pela água do mar, há algumas moedas de ouro como eu imaginava, mas algo me chama atenção, as moedas tem o brasão de Molavid, e me recordo de papai dizendo que o exército que resgataria Bernard viera desta cidade. Uma esperança se ascende dentro de mim, talvez seja algum bom sinal.

Várias coisas se passam em minha mente, a principal seria de que ele soubesse de alguma notícias do meu irmão, por um instante meu coração se enche de alegria, como há dias eu não sentia, desde que soube que levaram Bernard. Entretanto, começo a pensar se ele não seria algum inimigo que acabou roubando as moedas, esta também é uma hipóteses que não posso descartar. Então me sinto confusa, sei o quanto isso pode ser perigoso.

Uma onda se arrasta passando por cima dele molhando seu corpo, e ele novamente geme. Dou um passo para trás temerosa quando ele abre os olhos vagarosamente.

Pronto, novamente meu coração se comporta de forma estranha, b**e irregularmente, talvez seja insegurança não sei, apenas não consigo controlá-lo. Principalmente quando um par de olhos castanhos claros, quase verdes invadem os meus. Pisco várias vezes imóvel, engulo seco imaginando alguma forma de me defender caso ele reaja, mas é impossível, ele parece estar muito fraco e cansado, talvez faminto. Sua pele tem leves queimaduras de sol. Enquanto ele me analisa fico paralisada, imóvel no mesmo lugar.

— Por ... Favor... Me ajude... — ouço sua voz fraca e suplicante.

Seu tom rouco e másculo, entra em meus ouvidos penetrando meus tímpanos causando um leve arrepio por minha pele me estremecendo por completo. Outra sensação que eu nunca havia sentido.

Mesmo muito fraco, ele leva a mão por debaixo das costas como se quisesse me mostrar algo, depois a ergue me apresentando, fico surpresa quando vejo o sangue por entre seus dedos certamente está ferido.

— Por-favor... me-ajude, não-vou-te fazer mal... — fala e começa a perder a consciência.

Num impulso me ajoelho.

— Você está muito ferido, eu posso ajudá-lo… — me sinto tão aflita que apoio as mãos em seu peito. — Quem é você, qual o seu nome? Conhece meu irmão Bernard Lewis? — Uma onda fria toca meu vestido me deixando com as saias bastante molhadas. Mas não me importo. — Você é de Molavid?— me calo ao notar que ele não irá responder a nenhuma das minhas perguntas pois havia perdido os sentidos mais uma vez.

Ainda sem saber o que fazer, resolvo seguir meus institutos, mesmo sabendo que se trata de uma loucura, preciso cuidar dele. Ergo-o do chão, e faço um grande esforço para colocá-lo em pé, como eu disse, ele é grande muito mais que minha altura. Passo seu braço por meu ombro e sigo lhe arrastando, decido dar a volta pela trilha, pois não conseguirei subir as pedras com ele sobre mim. O desconhecido permanece desacordado, continuo minha árdua caminhada lhe arrastando até a colcheia. 

Após longos e cansativos minutos o arrastando por sobre o caminho pedregoso, finalmente chegamos à porta da colcheia. Estou exausta, ofegante e completamente suada, além do vestido em farrapos que se arrastou pelo chão durante o trajeto, Sra. Benect ficaria louca se me visse neste estado. Felizmente o local está vazio e abandonado, deito o homem no chão e saio para buscar meu cantil de água.

Quando volto, me abaixo e rasgo uma parte da barra do meu vestido afim de usar para limpá-lo. Molho o tecido e passo delicadamente no rosto do homem. Agora tenho certeza do quanto ele é bonito, seus traços são rígidos, maxilar quadrado, nariz bem definido e lábios carnudos. Quando percebo estou parada tempo demais olhando para ele. Quem será? Ele vem de Molavid? Terá uma família? Um frio me invade o estômago, naquela sensação estranha, como se plumas me fizessem cócegas dentro de mim, é estranho mas bom.

Enquanto meus olhos não saem de cima dele, sou tomada por um grande susto quando abre os seus olhos e rapidamente encontram os meus. Sinto como se um fogo ardesse em todo meu corpo, tenho dificuldade em respirar, fico assustada com tudo que sinto, entretanto ele fecha os olhos novamente me causando alívio. Confiro sua temperatura, parece bastante alta. Retiro seu colete de couro que tem um rasgado, se trata de uma espécie de armadura com alguns detalhes em metal, e quando vejo o sangue por baixo de sua roupa, retiro a peça para ver a gravidade. É um ferimento de espada, certamente dói muito, pois parece profundo, inicia debaixo do peito e termina atrás das costas, bem ao lado direito da costela. Rasgo mais um pedaço da barra do meu vestido em várias tiras e faço um curativo em volta do seu corpo, o sangramento é leve, mas o corte é fundo.

De repente um de seus braços se ergue e me envolve o pescoço, paro no mesmo instante, prendo o fôlego sem saber o que fazer, nunca estive assim, tão próxima de um homem e sei bem que não é nada adequado, principalmente para uma jovem que está noiva. Entretanto ele não está consciente, certamente foi resultado de algum tipo de reflexo. Quando tento me livrar de seus braços, me inclino afim de passar por debaixo, mas minha bochecha roça em sua barba levemente causando uma sensação boa, paro no mesmo instante e respiro fundo engolindo seco, estou muito próximo de seus lábios que se torna impossível não notar um pouco mais os traços marcantes em volta do contorno de seu rosto. Me esforço para recompor-me e terminar o curativo. Espalho suas roupas para se secarem. Saio para buscar minha capa, também pretendo encontrar um tronco seco e grosso, assim posso deixar pelo menos uma fogueira para aquecer ele. 

Arrasto um tronco para dentro da colcheia e alguns gravetos, consigo uma palha fina e tento fazer fogo. Não é tão difícil, afinal Bernard me ensinou, assim como me ensinou a pescar, e a caçar. Uma boa guerreira precisa saber se virar sozinha, dizia ele.

Olho entre as frestas da madeira, e noto que o sol está quase a se por. Preciso voltar pra casa antes que papai sinta minha falta. Meu coração se aperta por ter que deixá-lo aqui neste estado. Entretanto, não posso levar ele, mesmo sabendo que Sra. Benect poderá tomar os cuidados necessários e papai poderá chamar alguém para cuidar dele, porém ainda não tenho certeza de que se trata de um soldado de Molavid, se esse homem for algum inimigo, papai e Eduard me tomarão como tola, e mesmo sabendo que corro esse risco, algo dentro de mim, diz que faço o que é certo. Amanhã bem cedo eu retorno e pretendo trazer algo para tratar o ferimento e algum alimento forte. Se este homem estiver consciente, posso saber quem ele realmente é, e se for seguro, o levo até papai. 

Pego meu manto e o cubro para que fique bem aquecido, afinal está praticamente sem roupas, coro mais uma vez ao me atentar novamente a este detalhe. 

Quando a fogueira está pronta, olho novamente para o homem misterioso, suspiro desejando que amanhã quando voltar ele ainda esteja vivo. Saio da colcheia ainda preocupada por ter que deixá-lo, dou a volta e subo em Eros, sigo para casa ensaiando minha melhor expressão para que ninguém desconfie que algo esteja errado e alguma justificativa para meu estado deplorável, sem minha capa, completamente suja e faltando partes do meu vestido.

Quando chego descubro que felizmente papai e Eduard ainda não voltaram da cidade. Edgar continua sem sair do quarto. Catherine está a tecer o enxoval do bebê, parece tão empolgada que nem nota meu estado. Sigo rapidamente para o quarto e no caminho encontro alguns servos entre eles a Sra. Benect que carrega algumas roupas de cama, ela me olha assustada, peço que me prepare um banho, e mesmo espantada faz uma mesura e sai. Espero que ela não me delate ao Papai. 

A noite fica quase impossível de fechar os olhos. Todas as vezes a imagem daquele homem invade minha mente e meu coração b**e mais rápido. Temo que ele não suporte passar a noite naquele lugar frio e solitário. Aflita, me sento na cama e enrolo meu cabelo em um coque tentando respirar fundo, me levanto e sigo até a mesa de mogno, pego meu jarro de água e encho um copo, bebo em pequenos goles tentando acalmar meus nervos, mas minha mente vaga a todo momento em um certo desconhecido me deixando a cada instante mais agitada.

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