Capítulo 4

Malu

— Oi? Terra chamando Malu… — a voz da Yasmin, seguida do estalar de seus dedos repetidamente em frente ao meu rosto, me faz voltar à realidade.

Pisco algumas vezes, a encarando e noto seu cenho franzido.

— O que disse? — lhe pergunto.

— Tava no mundo da lua, foi? 

Pigarreio.

— Acho que só fiquei assustada com o que acabou de acontecer, nunca tinha visto esse cara tão perto. — minto, não em mencionar que o Pardal e eu nunca estivemos muito perto, mas sobre o fato de ter viajado por causa disso.

A verdade é que algo naquele homem tão imponente e cheio de si, me deixou paralisada e, como se não bastasse, com a calcinha molhada. O Pardal não faz o meu tipo, então, por que fiquei assim?

— Ah, deixa de ser mole, foi bem maneiro a cena. — Yasmin diz em tom de descontração e me dá um soquinho de leve no ombro.

— Não foi nada maneiro, Ys. Já pensou se aqueles caras resolvem matar o Cezinha? Nós seríamos testemunhas de um crime, se liga. — lhe dou um peteleco na testa.

— Vamos sentar ou tu vai ficar tagarelando igual a um papagaio aí? — seu comentário me faz perceber que já estamos há uns bons minutos em pé.

— Ok, mas não vamos demorar. — informo, puxando uma cadeira plástica amarela com a logo da Skol.

— Aê, Cezinha! — minha amiga grita para o dono do bar, como se nada estivesse acontecido há poucos minutos — Desce uma gelada aí! 

Por mais que eu não queira, acabo rindo do seu jeito. A Ys é uma figura, digamos que ela é minha luz em meio a tanta merda que rodeia minha vida.

Puxo um guardanapo do porta-guardanapos que está sobre a mesa, limpo minha boca e dedos sujos, após terminar de comer a casquinha do sorvete.

— Então, amiga, o que vai fazer? — sua pergunta me faz franzir o cenho.

— Do que está falando, Ys? 

— Pensa bem, Malu — diz sem deixar de me encarar um segundo sequer — Sei que estamos falando da sua mãe, mas você não pode continuar vivendo debaixo do mesmo teto que ela — tento retrucar, mas ela não deixa, pondo a mão na frente do meu rosto — Espera! Tipo, mona, sei que tu vai arranjar mil e uma desculpas, mas tu sabe que eu tenho razão. E se na próxima vez a Maria Helena tentar te matar? Mesmo que seja inconscientemente, que ela não saiba o que está fazendo, ainda assim seria errado. 

— Minha mãe não faria algo assim comigo. Eu a conheço bem… — a verdade é que nem eu mesma tenho certeza sobre isso, não levando a conta a forma como ela vem agindo ultimamente.

— Para de ser besta, Malu! Que droga! Eu sei o quanto você a ama e tudo mais, mas às vezes tu precisa ser egoísta, pensar somente em seu bem-estar. Tu nem sabe onde ela tá agora, nesse exato momento. Pode até estar morta.

— Não fala assim, Ys! Ela é minha mãe. — sinto o peso das lágrimas em meus olhos.

— Só se for sóbria, porque quando tá cheia de droga na mente, ela nem se lembra que tu existe. Desculpa falar assim, pode até parecer maldade, mas não é. Só estou pensando no seu bem, não quero te ver mal toda vez que ela está por perto. Você merece bem mais que isso.

Limpo uma lágrima teimosa que insiste em rolar em minha bochecha e o Cezinha traz uma garrafa de cerveja e dois copos, deixando-os na mesa.

— Valeu. — minha amiga o agradece.

Ele dá uma olhada em mim e me vejo forçando um sorriso. Sério, só quem tem alguém que ama muito metido no mundo das drogas sabe como dói. Você simplesmente desconhece aquela pessoa, parece que os entorpecentes os tornam em alguém totalmente diferente e nunca sabemos quando fará alguma bobagem.

— Quero deixar bem claro que tu sempre terá um lugarzinho em meu cafofo, nem que seja na casa do cachorro. — acaricia minha mão sobre a mesa, porém, seu comentário me faz rir, e acabo cuspindo um pouco da cerveja.

— Tu nem tem cachorro, Ys. — ela dá de ombros.

— Lembra de quando éramos criança e você sonhava em ser médica ou enfermeira? Seus olhinhos até brilhavam em tocar no assunto.

Suas palavras me fazem viajar em uma época tão boa da minha vida, onde não haviam problemas. Na qual eu tinha uma família perfeita, por assim dizer.

— Lembro, sim. E você costumava sonhar em ser advogada, queria prender todos os criminosos e inocentar aqueles que fossem presos injustamente. — falo em meio a uma risada, lembrando de como minha amiga costumava agir somente em tocar no assunto.

Ela acaba me acompanhando na risada entre um gole e outro.

— E daquela uma vez que fomos no mercadinho da Rosa e acusaram um menino de ter roubado um biscoito? — ela pergunta, me fazendo gargalhar, porque me recordo perfeitamente disso.

— Esse dia foi hilário, você quase mordeu a canela do marido dela, para não permitir aquilo. 

— E era pra eu ter feito exatamente isso. Bando de filhos da puta, o coitado tava com fome e ele iria pagar o biscoito. 

— Ah, amiga… Tempos bons que não voltam mais… — solto um suspiro após conseguir me acalmar da crise risos.

— Não voltam, mas isso não quer dizer que não possamos criar novas memórias. — ela sorri para mim.

Confesso que suas palavras me fazem pensar, porque sei que ela tem razão, ainda que eu não queira admitir.

Continuamos ali por um bom tempo, bebendo algumas rodadas de breja e jogando conversa fora, confesso que minha amiga sempre consegue me distrair. 

— É melhor irmos embora, Ys. Está ficando tarde e amanhã pego cedo no batente.

— Beleza. Deixa eu só pedir a conta ao Cezinha. — ela diz, acenando para o dono do bar, que não demora a vir até a nossa mesa.

Rachamos o valor e saímos do estabelecimento, seguindo para casa. As ruas estão desertas, porque a maioria dos moradores da comunidade estão curtindo o baile, que só costuma acabar no raiar do dia. 

(...)

— Boa noite, Ys. — digo, quando paramos em frente a casa dela, que é antes da minha.

— Boa! Pensa no que te falei, tá? — ela sorri para mim, sem mostrar os dentes. 

Eu sabia que minha amiga tocaria no assunto novamente, na verdade, tenho certeza que ela não irá desistir dessa ideia até que eu aceite ir morar com ela ou pelo menos tentar encontrar outro lugar para ficar e que eu volte a viver, sem querer carregar o peso do mundo nas costas. Não a julgo, compreendo sua preocupação a meu respeito, somos amigas desde que me entendo por gente.

Não a respondo, apenas meneio a cabeça em concordância, porque, mesmo vendo a situação da minha mãe, ainda assim, é difícil para mim, admitir que a perdi.

Espero ela entrar e fechar a porta e dou mais alguns passos em direção a minha casa. O clima do Rio é meio doido, de dia um calor infernal, a noite, às vezes, costuma esfriar, vai entender. Como estou usando uma roupa bem devassa, por assim dizer, abraço meu corpo enquanto caminho, massageando minha pele, a fim de me esquentar. 

À medida que me aproximo da minha casa, vejo um vapor do Pardal bem próximo, ele está meio de lado, então é possível ver que está com um fuzil atravessado nas costas, tento entender o que ele está fazendo, já que é noite de baile e todos eles deveriam estar curtindo, ou pelo menos é o que eu penso. Espero que não esteja procurando por minha mãe. Será que ela está devendo droga a eles? 

O vapor não me diz absolutamente nada, apenas me observa meio distante e consigo chegar até a porta, abrindo-a e entrando. A realidade vem até mim com tudo. Olhando ao redor, vejo a bagunça que minha mãe fez e, sentada no sofá, tento entender como as coisas chegaram a esse ponto. Sem pensar demais e mesmo estando exausta do dia que tive, começo a organizar tudo, pois, não posso esperar o fim de semana chegar para fazer isso, já que ela revirou tudo.

Quando finalmente termino, vou até à cozinha para forrar o estômago com alguma besteira, depois tomo um banho rápido, tiro a maquiagem do rosto e, após vestir uma camisola qualquer, passo na cozinha novamente para beber água. Como a porta é de alumínio, tenho a impressão de ver a sombra de alguém do lado de fora. Um calafrio percorre minha espinha e eu pego uma faca para poder me defender, se for o caso, então sigo a passos furtivos até lá e ouço o que parece ser uma espécie de choro baixinho, mesmo com medo do que eu possa encontrar, abro a porta e me deparo com ninguém menos que minha mãe, sentada no chão, ou melhor, no meio-fio, já que nossa casa é de frente para a rua.

— Mãe? — chamo sua atenção, abaixando a faca.

Ela olha para trás e ver seu estado faz meu coração se apertar. Está com o vestido rasgado, um dos pés está com o sapato, porém, com o salto quebrado e o outro, descalço e sujo de lama. Seus cabelos desgrenhados, como se ela estivesse brigado ou algo do tipo.

— O que aconteceu, mãe? — me abaixo, ficando em sua altura e a observo, vejo que está com um olhar amedrontado.

— Me desculpa, filha. Eu sou um monstro. Um monstro. — dito isto, minha mãe encosta a cabeça em meu peito e chora copiosamente.

Não parece ser a mesma pessoa que me bateu mais cedo e que quase destruiu nossa casa. Eu a acolho e acaricio sua cabeça.

— Vamos entrar. — falo baixinho.

Ela não diz nada, apenas afasta o rosto do meu peito e limpa as lágrimas.

Entramos, tranco a porta e a guio até o sofá.

— O que houve, mãe? Me fala… 

Ela desvia o olhar de mim, parecendo envergonhada.

— Me perdoa, filha, por favor… Sei que tenho sido uma péssima mãe, mas eu juro que vou tentar largar esse vício e ser melhor. Eu prometo! — suplica, segurando minhas mãos e me olhando diretamente, dessa vez.

Esse episódio não está acontecendo pela primeira vez, já perdi as contas de quantas vezes ela fez esse mesmo discurso, após recobrar um pouco a consciência, depois de surtar por efeito da droga. Sim, estou cansada disso, mas é a minha mãe e eu a amo.

— Tudo bem, mãe. Tudo bem. — puxo ela para um abraço e suspiro pesadamente, aceitando seu perdão, mesmo sabendo que, provavelmente, isso voltará a acontecer.

Depois de um tempo, eu a ajudo a tomar um banho e vestir uma roupa limpa e confortável, com muito custo, consigo fazê-la se alimentar, para que tenha uma boa noite de sono. Ao deitarmos para dormir, acaricio seus cabelos até ter certeza de que já está dormindo e sinto as lágrimas rolarem em meu rosto. Por mais que eu tente, é difícil segurar essa barra sozinha. Realmente espero que um dia isso mude e tudo volte a ser como antes.

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