Malu
Durante o restante do dia, minha mente esteve longe, não houve um só momento em que eu não estivesse pensando em minha mãe, pedindo mentalmente que as horas passassem rápido para que eu pudesse ir embora e me certificar que o aperto no peito que eu estava sentindo era coisa da minha cabeça e quando eu chegasse em casa, ela estaria sentada no sofá, assistindo novela e comendo pipoca ou cozinhando para mim.Assim que encerrei meu expediente, me apressei em organizar minhas coisas para ir embora. Aparentemente, a Joice estava com medo de mim, porque ficava me olhando de soslaio e quando eu a desafiava, olhando bem na cara dela, desviava o olhar. Chegava a ser engraçado, confesso. Mas isso é ótimo, pessoas preconceituosas precisam aprender onde é o seu lugar.Segui meu caminho até em casa, vendo novamente o vapor do Pardal bem perto, a vontade que eu tenho de meter a mão na cara dele e perguntar porque está rondando é imensa. É óbvio que não farei isso, pois, corro o sério risco de levar uma bala no meio da testa, no mínimo ele me espancaria, como esses bandidos estão acostumados a tratar as Marias fuzis que vivem em cima deles como urubu na carniça. Ridículos!Sem dar a menor importância a presença dele, empinei meu nariz e entrei em casa.— Mãe? — chamo, ao mesmo tempo em que olho ao redor para ver se realmente cumpriu sua palavra e não cedeu ao vício, derrubando a casa, em seguida, como sempre.Mas, não, ela não fez isso. Está tudo intacto.— Mãe? — chamo novamente após fechar a porta.Como não obtenho resposta, deixo minha bolsa no sofá e vou procurando por ela em cada canto da casa, escancarando todas as portas, porém, não tem ninguém, está vazia. Pego meu celular no cós da calça para ligar para a Yasmin, disco seu número, mas apenas chama e nada de ela atender. Continuo tentando, até que, finalmente, sou atendida.— Amiga, está em casa?— Tô, sim, aconteceu alguma coisa? Parece preocupada…— E estou, Ys. Posso passar aí para conversarmos pessoalmente? — retorno para a sala.— Pode, sim, amiga. Espero que não tenha acontecido nada grave.— Fica tranquila, vai ficar tudo bem.A verdade é que nem eu mesma posso garantir isso, porém, espero muito estar certa.Ignoro completamente o meu cansaço físico e mental, e a fome, guardo meu celular na cintura e saio de casa.(...)Parada em frente a casa da Ys, dou dois toques na porta de madeira com os nós dos dedos.— Oh, minha menina! Que bom te ver, faz dias que não aparece aqui. — a mãe da minha amiga me recebe calorosamente com um abraço apertado.— Me desculpe, tia, sei que estou igual político ultimamente, mas os problemas têm me perseguido. — forço um sorriso.— Tá mesmo, só aparece quando precisa — ela diz rindo — Mas tem algo errado, minha filha? — sua voz soa carregada de preocupação e vejo-a franzir o cenho.— A senhora nem faz ideia. — suspiro pesadamente e murcho os ombros.— Vem, vamos entrar. A Yasmin já deve estar saindo do banho, não repara a bagunça. — ela abre mais a porta e faz menção para que eu entre.Acabo rindo porque ela sempre diz isso, o que eu realmente não consigo entender, já que, apesar da simplicidade da casa, é muito bem limpa e organizada.— Quer sopa? Acabei de fazer.— Não precisa se incomodar comigo, tia. Não estou com fome. — a respondo, sentando no sofá e, no mesmo instante em que digo isso, ouço meu estômago roncar, me contrariando.Ela dá uma gargalhada gostosa, inclinando a cabeça para trás.— Até eu ouvi. — minha amiga surge, secando as tranças com uma toalha e usando um baby doll, deixando seus mamilos aparecerem sob o tecido da blusa.A mãe dela vai para a cozinha, nos deixando a sós e minha amiga se j**a ao meu lado no sofá.— O que tá rolando?— Minha mãe sumiu de novo, Ys… O pior nem é isso, desde cedo tô sentindo um aperto no perto, sabe? Uma sensação ruim, não consegui parar de pensar nela o dia todo. — minha mente viaja e torço os lábios.— Essa não seria a primeira vez que isso acontece, tu tá ligada, né? Tu aí toda preocupada e ela pode estar em uma boca qualquer por aí ou no lugar onde trabalha.— Não sei, Ys… Dessa vez é diferente, não sei explicar. Na verdade, eu só queria saber se vocês a viram. — a encaro.— Como isso seria possível, Malu? A gente nem sabia que sua mãe tava em casa, não foi tu mesma quem disse ontem que ela fez merda e se saiu?— É, eu sei… Quero tentar encontrá-la, tu me ajuda a procurar? — arqueio as sobrancelhas, esperando por sua resposta.— Puta que pariu, Malu! Tu já viu que já anoiteceu, né? Onde, caralhos, a gente vai achar tua mãe? Pensa, filhona. — b**e os dedos na própria testa.— Eu sei, Ys, mas preciso ao menos tentar, por favor, me ajuda. Não sei a quem mais recorrer. — faço cara de cachorro que caiu da mudança e noto que ela revira os olhos.— Ok, mas depois não diz que não avisei.— Vamos, então?— Deixa só eu trocar de roupa e já venho. — diz, levantando.— Ninguém vai a lugar algum antes de comer. — dona Rebeca vem em nossa direção, segurando um prato nas mãos.— Oh, tia, não precisava.— Sem história, Maria Luiza, pode comer. — coloca uma almofada em minhas pernas e o prato com a sopa de carne e legumes borbulhante, sobre ela.Fecho os olhos, aspirando o delicioso aroma no ar.— Pra mim, ninguém traz sopinha na mão né, dona Rebeca?— Vai procurar o que fazer, menina grande a toa. Vou pegar a sua ainda. — ela limpa o suor da mão num pano de pratos que está pendurado em seu ombro.— Aí eu dei valor. — minha amiga saltita como uma criança e gira os calcanhares para ir se trocar.Enquanto a espero, vou tomando a sopa que está deliciosa.— Tia, a senhora tem mãos de fada, isso está delicioso.— Obrigada, querida. Vem me visitar mais vezes que eu faço aquele doce de banana que você ama.— Aí é covardia. — falo e ela ri.— Alguém aí falou doce de banana? — a esfomeada da minha amiga volta toda produzida.Ela senta para comer e, como eu já estava terminando, não demoramos a sair a procura da minha mãe.(...)Batemos de porta em porta, até dos menos conhecidos, perguntando se alguém a viu, mas a resposta era sempre a mesma, alguns diziam que não, outros simplesmente não queriam se envolver. Passamos pela frente da boca e vemos um grupinho de homens conversando, entre eles o Pardal e outros vapores conhecidos, inclusive, o que vive rondando a minha casa.— Aê, mina! — a voz do Pardal, seguido de um assobio, nos faz olhar em direção a boca.— É o quê, que esse cara quer? — pergunto a Ys, sem a menor paciência para dar trela a bandido.— Tá surda, porra? — ele grita novamente.— Acho melhor a gente ir lá, mona. Não tô afim de levar porrada de bandido. — Yasmin comenta comigo.Bufo e me sinto sendo obrigada a concordar com ela.— Assim que eu gosto… — o idiota deixa a frase no ar, à medida que nos aproximamos dele.— Diz logo o que tu quer, não tenho tempo a perder. — falo, o encarando com firmeza.— Iiih, essa é marrentinha, hein, patrão. — um vapor diz, fazendo graça.— Estou esperando. — sem dar a menor importância ao que foi dito pelo vapor, pergunto novamente ao Pardal.— Tá fazendo o que na rua uma hora dessa? Tá pagando de doida? Esqueceu que rolou invasão hoje? — ele pergunta como se fôssemos amigos íntimos.— Primeiramente, o que eu faço ou deixo de fazer da minha vida, não te diz respeito, segundo, eu sou tão cria do morro quanto você, posso andar a hora que eu quiser e não vai ser você quem vai me impedir. Agora posso ir, vossa majestade? — lhe pergunto com deboche e o desafio com o olhar.Noto seu olhar desviar dos meus para minha boca.— Malu… — minha amiga tenta me fazer parar.— Só vou perguntar mais uma vez e espero que me responda… O que porra tu tá fazendo na rua a essa hora?Reviro os olhos.— Tô procurando minha mãe, ela sumiu e como teve invasão, pode ter acontecido alguma coisa… — somente em citá-la, meu peito se aperta novamente.Ele ri anasalado.— Tua mãe? — sei bem o que ele quer dizer com isso.— Sim, algum problema?— Ok, vou com tu.— Não lembro de ter te convidado.— Não te pedi permissão, acho que tu tá se esquecendo quem manda nessa porra aqui, né. Tu aí, vai com a amiga dela procurar, enquanto eu ajudo ela — Pardal dá ordens a um dos vapores e eu queria dizer para Yasmin vir comigo, mas sei bem a resposta que eu teria — Bora lá. — meneia a cabeça, fazendo menção para andarmos.Mesmo que eu quisesse retrucar, sei que ele não permitiria, então apenas o faço, até porque, o fato de ele ser o dono de morro, me dá uma vantagem maior em encontrá-la.O caminho é todo feito em silêncio, não somos amigos, não teríamos qualquer assunto em comum para conversar. Após alguns minutos andando, literalmente, em círculos, ouvimos um grito atrás de nós, seguido da Yasmin correndo em nossa direção e parar com as mãos nos joelhos, recuperando o fôlego.— Respira, amiga.— Fala tu aí. — Pardal pede a ela, com seu tom de voz autoritário.— Malu, você precisa vir comigo, mona. — sua voz soa resfolegante.— Encontraram ela? — ao mesmo tempo em que pergunto, sinto meu coração errar as batidas, mas não sei se exatamente de uma forma boa.— Talvez… Não sei… Só vem, Malu, pelo amor de Deus! — a maneira como ela fala, faz o desespero ameaçar tomar conta do meu ser.Não penso duas vezes, antes de segurar na mão dela e segui-la, sem nem me preocupar se o Pardal veio atrás.Paramos numa vala e me deparo com um corpo estirado no chão, completamente sem vida e ensaguentado. Ligo a lanterna do meu celular, devido a pouca iluminação do lugar e meu coração paralisa no momento em que reconheço suas roupas, ajoelho devagar, tremendo em nervosismo. Não, não pode ser.Não, isso não pode ter acontecido.MaluÀs vezes penso que não já sofri o suficiente nessa vida, por isso que, volta e meia, acontece alguma merda. Ali, naquele exato momento, vendo a minha mãe, a mulher que me deu a vida, que fez tudo o que esteve ao seu alcance por mim, completamente sem vida, sentia como se o meu mundo estivesse acabado. Se ainda restava algo de valor em mim, não existia mais.Ajoelhada no chão e segurando a cabeça dela, choro copiosamente, sentindo como se o meu peito estivesse se rasgando pouco a pouco. — Mãe… Por favor… Volta… — chamo por ela, mesmo sabendo que não irá voltar, porque ainda há um fio de esperança em meu peito.— Amiga, não há mais o que ser feito, ela se foi. Você precisa ser forte, meu anjo. — Yasmin tenta me afastar do corpo da minha mãe, me forçando a olhar para ela, abaixada ao meu lado.— Não, ela não foi. Sei que não. — profiro, balançando a cabeça para os lados, sem conseguir parar de chorar e sem querer aceitar.— Malu, por favor, me escuta, mona — ela segura meu rosto ent
MaluO dia anterior foi bem agitado, quando parei em casa, já estava morta de cansaço. Minha amiga e sua mãe insistiram durante todo o dia para que eu levasse o corpo da minha mãe para ser velado, mas, para mim, isso seria apenas prolongar ainda mais o meu sofrimento. Sem esquecer de mencionar que, levando em consideração a fama que ela teve todos esses últimos anos, desde começou a ganhar a vida se prostituindo e usar drogas, seria muita hipocrisia da parte dos moradores da comunidade, irem se despedir dela.Não, eu jamais permitiria isso. Dessa forma, a primeira pessoa para quem liguei, foi a Elô, mas nem precisei me explicar, porque, obviamente, os rumores já haviam se espalhado e, entre esses burburinhos, já era possível ouvir, até mesmo, que minha mãe morreu por causa de dívida de droga, ou pior, que algum dos caras que frequentavam o lugar em que ela trabalhava, a matou. Pois é, o defunto ainda nem esfriou e as fofocas já começaram a surgir. Não que eu estivesse surpresa.Depois
MaluVou despertando aos poucos, ao som do que parece ser batimentos cardíacos. Como assim? Estou em um hospital? Meus olhos estão pesados, movo as pálpebras, mas, inicialmente, não consigo abri-los.— Mãe… — murmuro quase que inaudível, já que minha voz está fraca.Consigo abrir um pouco os olhos, porém, a luz forte do lugar me cega, fazendo-me apertá-los com o máximo de força, só então, abro-os. Olho ao redor e vejo paredes brancas, um ar-condicionado velho e algumas macas com outras pessoas nelas, então, constato que não estou no hospital e, sim, no postinho da comunidade. — Ah, meu Deus! Finalmente você acordou, Malu! — essa voz soa familiar, olho para o lado direito e me deparo com a Yasmin e a Elô, ambas com um semblante carregado de preocupação.— O que estou fazendo aqui? O que aconteceu? — pergunto meio grogue e engasgo com a saliva grossa.— Não lembra de nada? — Yasmin pergunta.— Só lembro que estava no banheiro, tinha acabado de levantar para fazer xixi e beber água, depo
Pardal— Vocês estão cercados, não há como escapar, é melhor se entregarem! — enquanto estamos fazendo os funcionários e clientes do banco de reféns, os cu azul cercam a frente do lugar e a voz de um deles ecoa no alto-falante.Estamos todos armados até os dentes, cada um dos meus vapores em um canto, pra garantir que ninguém aqui se meta a besta e tente dar uma de engraçadinho.Pego o radinho que um cu azul colocou aqui dentro pra se comunicar com a gente e tentar um acordo. Só não sei que porra de acordo eles pensam que vão conseguir.— Escute bem, porque eu só vou falar uma vez, tá ligado? Vamo sair daqui pelos fundos do banco e se qualquer um de vocês tentar nos seguir ou fizer qualquer gracinha, vamo meter bala em geral. Quero nem saber quem é inocente, vai todo mundo levar bala. — falo, encarando todos os olhares assustados, direcionados a mim.Alguns choramingando.— Queremos sair daqui numa boa, sem causar alarde, pô. Mas tudo depende de vocês. — concluo.Como não ouço resposta
MaluUma semana depois…Os últimos dias não têm sido nada fáceis para mim, tenho sonhado muito com a minha mãe, ou melhor, tido pesadelos, já que são sempre sonhos loucos. Em sua maioria, ou encontro seu corpo sem vida em casa, ou estou a matando, algo que eu jamais faria. Ela podia ser péssima como fosse, mas ainda assim era minha mãe.A Yasmin vive me lembrando sobre o que a enfermeira do postinho falou, para eu me consultar com uma psicóloga, eu só não sei como isso iria me ajudar a superar o luto. Tenho vivido um dia de cada vez, alguns são mais difíceis do que outros, mas como minha amiga disse: já passei por muitas coisas nessa vida, não será isso que vai me derrubar.A Elô disse que eu poderia ficar mais tempo em casa, que talvez eu precisasse disso, porém, isso só tem me deixado pior. Para cada canto da casa, que eu olho, só consigo ver a minha mãe. E a lembrança da última vez em que estivemos juntas, de tudo o que ela me disse, estava disposta a mudar de vida, a forma como me
MaluSaio, literalmente, pisando duro daquele lugar horrendo e sigo para casa me repreendendo por ter sido tão tola, tão idiota ao ponto de me deixar levar pelo momento e quase ter feito uma besteira das grandes.A raiva que sinto de mim mesma é imensa, quando percebo, já estou na frente da minha casa. Antes de entrar, lembro que o Pardal chupou meu pescoço, então, ponho a mão no lado em que ele fez isso, com medo que tenha ficado uma marca arroxeada e minha amiga veja. Ela, certamente, pensaria besteira. Não que ela não tenha razão, já que deve estar explícito em minha pele o que aconteceu a poucos minutos.— A gente junto é mó parada, a gente não presta, zero compromisso, se for sempre assim, nós fecha. — ao entrar em casa, ouço a Yasmin cantarolando um trecho da música Sem Filtro, da Iza, enquanto mexe no celular.— Ele me paga, quem ele pensa que é? — estou soltando fogo pelas ventas, fazendo o possível para não retirar a mão do pescoço.— Demorou, hein… O que rolou? Por que tá ner
MaluDias depois…Faz alguns dias, desde o ocorrido com o Pardal, graças a Deus, minha amiga não tocou mais no assunto. Quer dizer… Sempre que saímos ou quando ela vem em minha casa e vê o vapor rondando por aqui, solta uma piadinha ou outra, na maioria das vezes dizendo que o dono do morro já está tomando conta da fiel dele. Minha amiga não analisa as coisas que fala, então eu costumo relevar.Ultimamente, depois que eu decidi fazer a prova do Enem para tentar uma chance na UFRJ, temos estudado juntas todas as noites quando chego do salão, tem sido maravilhoso, pois, além de ocupar a minha mente, não me deixando pensar em coisas ruins, também tenho relembrado assuntos relevantes que podem vir a cair na prova. Para ser bem sincera, eu não acredito muito que irei conseguir essa vaga, mas estou com o pensamento positivo de que preciso ao menos tentar. É domingo e Yasmin e eu combinamos de pegar um cinema hoje, juntamente com a Eloá e a Julia. Ficamos de nos encontrar na saída do morro
MaluUm mês depois…Essa semana fez um mês que a minha mãe morreu e, mesmo assim, ainda não parece real. Todo dia, eu acordo com a sensação de que em algum momento ela vai passar por aquela porta e me mostrar que tudo isso não passou de um pesadelo daqueles bem macabros… Mas não, infelizmente, sei que isso não vai acontecer, porque eu lembro exatamente do momento em que seu caixão foi colocado naquele buraco e, em seguida, jogaram areia sobre ele.Na data de sua morte, eu estava muito mal, até cheguei a ir trabalhar, porém, a Elô percebeu o meu semblante tristonho, me perguntou várias vezes a razão para eu estar daquele jeito e eu não falava. Não queria colocar aquele sentimento de impotência para fora, porque tenho vivido um dia de cada vez e não tem sido nada fácil e, sim, muito doloroso. Então, se deu conta do motivo e me dispensou. Eu não queria ir para casa, porque, para mim, seria bem pior, por essa razão, ela ligou para a Yasmim e pediu que fosse me buscar no salão, e me levasse