Capítulo 5

Malu

Na manhã seguinte, ao acordar, passo a mão pela cama e tudo o que sinto é o colchão vazio e o lençol esparramado. Vou abrindo os olhos aos poucos, tentando me acostumar com a claridade do sol que entra pela parte de vidro da janela de alumínio e, olhando ao redor, me certifico que realmente não tem ninguém. Fico imaginando se o ocorrido da noite passada foi coisa da minha cabeça ou se sonhei com a mamãe voltando, mas não é possível que seja isso.

Olho as horas no visor do meu celular que está na mesinha do abajur ao lado da cama e vejo que estou super no horário, não me atrasei para o trabalho, apesar de ter bebido um pouco ontem. Levanto e pego a toalha pendurada no varal que fica do lado de fora da janela. É o único lugar onde podemos estender nossas roupas, por ventar bastante, já que não temos quintal. Saio do quarto para ir ao banheiro, mas sinto um cheiro delicioso de ovo frito na margarina. Sorrio, porque somente uma pessoa costuma fazer isso para mim, desde que eu era criança.

Giro os calcanhares, passando pelo corredor, indo até à cozinha. Ao passar pela entrada sem porta, meu coração salta de felicidade em ver a minha mãe aqui, de frente para o fogão e murmurando alguma música. Sem chamar sua atenção, eu a abraço, mesmo ela estando de costas.

— Oi, filha. — ouço sua voz doce e serena, emanando carinho e ternura.

— Pensei que tivesse sumido de novo… — murmuro, sem parar de abraçá-la.

Ela desliga o fogo e vira de frente para mim, segurando meu rosto entre as mãos.

— Eu não menti pra você, fui sincera. — encaro seus olhos, enquanto ela profere tais palavras.

A analiso para garantir que está falando a verdade e, pela primeira vez em tempos, parece que sim. 

— Eu não quero mais viver assim, mãe. Cansei de te esperar, de esperar que em algum momento você realmente queira mudar de vida. — um nó se forma em minha garganta.

— Eu sei, Malu. Juro que nunca quis isso pra você, pra nós duas. Eu juro. — sua voz soa embargada.

— Se não queria, porque se permitiu chegar a esse ponto? Olha seu estado, mãe! Está acabada! — me refiro as olheiras bem escuras e profundas, seu corpo, que antes era tão cheio de curvas, assim como o meu, agora muito magra, a ponto de sua saboneteira formar um buraco, os lábios ressecados e pálidos, entre outras coisas.

Sinto seus dedos deslizarem por minhas bochechas, limpando duas lágrimas que rolaram sem eu perceber.

— Não chora, por favor. Esse olhar de tristeza e decepção está me matando, não era esse tipo de exemplo que eu queria te dar. — ela engole em seco.

— É impossível, mãe. Impossível! Eu nunca te julguei por se prostituir, por ganhar a vida dessa forma, porque, depois que o vagabundo do meu pai nos deixou, sei que procurou outras coisas, mas essa foi a única oportunidade que encontrou para colocar comida em nossa mesa. Mas isso não justifica você usar drogas. Sempre foi contra isso, me ensinou a ficar bem longe e agora está assim e não consegue mais parar. 

Me solto dela, afastando-me. Por mais que eu esteja feliz em vê-la aqui, estou realmente muito cansada de tudo isso. 

— Eu sei, tenho consciência de tudo o que fiz e faço. Mesmo que no momento, eu não perceba… Não foi porque eu quis. 

Franzo o cenho sem entender.

— Como assim? Do que está falando? 

Ela solta um longo suspiro, antes de me responder.

— No início, quando procurei um emprego, logo depois que seu pai foi embora, conheci um homem num bar lá do asfalto, ele sentou na mesa que eu estava e jogou uma conversinha fiada de que já vinha me observando há um tempo e talvez tivesse uma boa oportunidade de trabalho pra mim.

A ouço atentamente, cruzando os braços abaixo dos seios.

— A cara dele não negava do que se tratava o tal trabalho — faz aspas com os dedos — Mas, dadas as circunstâncias, eu já estava sem esperança, não sabia mais o que fazer, não é fácil para uma mãe ver sua filha passando fome. Sabe que não estudei, morando na favela, com as condições em que vivemos, é muito difícil alguém nos dar uma chance. Foi aí que deu merda e tudo foi por água abaixo. Aquele lugar é horrível, filha. Jamais quero que você passe nem perto.

— Mas você passou… — a interrompo, sabendo que estou sendo cruel. Contudo, decidi que não irei mais passar a mão na cabeça dela.

— Sim, Malu. Só que não é esse futuro que eu quero pra você, minha filha. Não te criei pra isso, droga! Tu não faz ideia da humilhação que uma mulher da vida passa nesses lugares, não importa se o homem é limpo ou não, se pagar bem, temos que fazer o que pedem, até mesmo usar drogas. Porque, sim, alguns têm fetiche com essa porra! — ela eleva seu tom de voz e trinca o maxilar. 

Consigo sentir sua dor e desgosto. Isso me deixa péssima.

— Alguns desses homens ficam obcecados e não querem ser atendidos por outra mulher, e se você aceita usar qualquer tipo de droga uma vez, vai ter que usar sempre que esses filhos da puta quiserem, porque a gente só obedece, entendeu? É assim que funciona. Não é uma coisa bonitinha como alguns filmes tentam mostrar, é vida real, Malu. 

Acabo fungando e sinto uma lágrima escorrer, imaginando tudo o que ela precisou passar esse tempo todo.

— Foi por isso que estava transtornada daquele jeito ontem quando cheguei do trabalho? — toco no assunto, fazendo com que ela desvie o olhar do meu.

— Sim… — responde em um sussurro — Não é exatamente uma questão de escolha, acabei me viciando nessa porra e não foi só um tipo, foram vários, não consigo mais parar. Então, nem sempre sei o que tô fazendo. Mas eu não quero mais isso, Malu. Não quero te fazer mal. Estou disposta a mudar de vida, até ser internada em uma clínica de reabilitação, se for preciso. Só não quero mais viver assim, estou me destruindo e isso está te afetando. 

— Está falando sério?  — pergunto com expectativa na voz e olhar.

— Sim, minha filha. Não será fácil, tenho noção disso, mas estou decidida. Será um novo começo para nós duas. 

Sem falar mais nada, eu a abraço o mais forte que consigo, lhe transmitindo todo o amor possível, tudo de mais lindo que existe, para que ela saiba o quanto a amo e estarei aqui sempre que precisar.

— Vamos conseguir, juntas. Tenho certeza que dará tudo certo. — digo após me afastar do abraço e vejo-a sorrir.

— Obrigada por me dar esse voto de confiança, Malu. Você é tudo o que me resta, não tenho mais com quem contar.

— Se está realmente disposta a isso, jamais poderia te negar ajuda, você é minha mãe. Eu te amo. — me aproximo dela, a envolvendo em um abraço.

Ela me enche de beijos e estamos tão próximas que consigo sentir o cheiro de sua pele, misturado a nicotina, mas esse gesto transmite uma onda de sensações para ambas. Só Deus sabe quantas vezes senti falta disso, quantas vezes quis e precisei do seu abraço e ela não estava por perto. 

— Preciso ir trabalhar agora, mas, por favor, me promete que não vai sumir… Que quando eu chegar em casa, estará aqui… — peço-lhe.

— Claro, meu amor. Pode confiar em mim, te dou minha palavra. — diz, cruzando os dedos em frente aos lábios e dando dois beijinhos neles.

Antes de ir me arrumar, a encaro por alguns segundos. É difícil acreditar que ela está dizendo a verdade, quando já me decepcionou diversas vezes, mas decido lhe dar um voto de confiança.

— Agora vai se arrumar, pra não se atrasar. — diz, dando um tapinha em minha bunda e rindo, mania essa que ela sempre teve em sinal de brincadeira, como aquelas mães que dizem que irão bater nos filhos com cipó.

Faço o que ela pediu, indo direto para o banheiro. Durante o banho, o sorriso permanece em meu rosto em todo o tempo, estou muito feliz em tê-la aqui, em casa, depois de alguns dias em que ela esteve sumida, antes de fazer aquela baderna em nossa casa ontem a noite e eu não fazia ideia de onde estava.

Após alguns minutos no banho, desligo o chuveiro, enrolo uma toalha no corpo e retorno ao quarto. Paro de frente para o guarda-roupa na intenção de procurar algo que preste, a fim de não ir trabalhar parecendo uma mendiga. Pego uma calça jeans de cintura alta surrada que, de tanto eu usá-la, já deve até saber o caminho dos lugares que eu vou. Daqui a uns dias vai sair sozinha. Preciso de roupas novas com urgência, mas com o dinheiro que eu ganho e, levando em conta as vezes em que minha mãe já me roubou para comprar drogas, fica meio difícil pensar nisso, só tenho tido dinheiro mesmo para o essencial, que é pagar contas e comer. De vez em nunca me sobram uns trocadinhos para curtir, pegar um cinema e tomar uma breja. 

Nessas horas a gente para pra pensar o quanto existe desigualdade social no Brasil, como costumo dizer: uns com muito, uns com pouco e outros sem nada. 

Visto a calça e um cropped de alcinha, com um pequeno decote em v, nada ousado, já que estou indo trabalhar e não para uma festa. Porém, não me preocupo, porque passo o dia inteiro usando o avental, que é tipo uma fardinha, então não dá para ver minha barriga meio desnuda. Calço uma sandália de saltinho plataforma, porque passo o dia todo em pé, então ela me traz conforto nos pés e, por último, solto minha juba, passo um corretivo no local onde fixou meio roxo, devido ao tapa que levei ontem e coloco um batonzinho nude, somente para dar vida aos meus lábios. Pisco para a morena refletida no espelho da porta do guarda-roupa e vou comer algo antes de ir trabalhar.

Assim que chego na sala, pretendendo ir para a cozinha fazer meu prato, vejo minha mãe vindo em minha direção segurando em uma das mãos um prato contendo dois pães de sal com ovo e na outra, um copo de achocolatado, pois, não suporto café. Ela os coloca na mesa e gesticula com a mão me chamando para sentar. Então, deixa um beijo em minha testa e me deixa comer tranquilamente.

Confesso que estou muito surpresa com tudo isso, mas vou apenas aproveitar.

Não demoro a terminar de comer e iria lavar o que sujei, até ser interrompida por minha mãe, dizendo que ela mesma faria. Não a retruquei, porque sei que ela está se sentindo culpada, então peguei minha bolsa no quarto, onde estava meu celular e afins, me despedi dela e saí de casa. 

Assim que abro a porta, vejo novamente o mesmo vapor do Pardal rondando, bem próximo. Hoje, diferentemente de ontem, que estava escuro, consigo ver cada traço seu. É mal-encarado como a maioria deles, como está meio de lado, vejo o braço esquerdo fechado de tatuagens, tem a pele clara e cabelo cortado bem baixinho, quase careca. Ele está fumando um cigarro, que imagino ser maconha, tranquilamente, soprando a fumaça no ar e me observando de soslaio. Não paro um segundo sequer para lhe questionar por estar rondando minha casa, apesar de ter uma vontade imensa de fazer isso.

(...)

— Bom dia, meninas! — cumprimento todas, enquanto passo pela porta do salão.

— Bom dia, gata! Salva pelo gongo, hein. — Elô comenta, conferindo o relógio redondo de parede.

— Um minuto, querida. Apenas um minuto. — lhe respondo com deboche e sorrindo de canto.

Ela ri.

Vou até à área dos funcionários, deixo minha bolsa e visto um dos aventais que ficam pendurados num cabideiro de madeira de chão. Amarro-o em minhas costas e pescoço e começo a atender as clientes do dia.

As horas vão passando e chega o horário do almoço.

— Eita, calor do inferno! — comento após terminar de atender uma cliente e passo a mão no pescoço, limpando o suor.

— Uma gelada ou um refri cairia bem agora, né? — Julia fala.

— Sem dúvida alguma, mas a pergunta é: quem vai comprar? — Elô pergunta, olhando para nós.

— Pede pelo aplicativo, eles entregam. — Julia a responde.

Estalo a língua e bufo.

— Sai dessa, daqui que chegue pelo aplicativo… Deixa vai, eu vou lá no bar do Cezinha ou em qualquer outro, mas vocês pagam. — informo com ar de deboche.

— Tá muito folgada, hein. — Elô diz.

— Claro, meu anjo. Quer cu e ainda quer raspado? Tô me dispondo a ir lá, aqui não é frete grátis não, filhona. E aí, o que vai ser? — pergunto, já levantando e estendo a mão para todas elas verem que estou falando sério.

Elas tiram o dinheiro de suas bolsas e me entregam, logo em seguida, saio em direção ao bar. Não vou negar que estou com um friozinho na barriga, fico imaginando que posso presenciar a mesma cena da última vez que pisei lá naquele lugar, porém, disperso desses pensamentos e sigo meu caminho. Não devo nada a ninguém, não posso ter medo de bandido.

Uns cinco minutos depois, avisto um outro bar que fica mais próximo do salão, fico dividida entre ir lá ou não. O calor está demais, mas nesse, em específico, está cheio de bandido. Detesto passar por esse tipo de situação. No entanto, não quero ter que andar mais debaixo desse sol escaldante. Decido respirar fundo e ir até lá. 

— Delícia! — um deles comenta a meu respeito assim que entro, mas nem me dou ao trabalho de olhá-los, continuo andando na direção do balcão.

— Oh, lá em casa, na minha cama…

— Uma dessa eu até apresentava pra coroa. — reviro os olhos ao ouvir isso.

— Bom dia, já que ainda não almocei, quero duas coca de dois litros e um fardo de Skol litrão. — peço gentilmente ao dono do bar.

— A cerveja, você pode pegar no freezer ali — aponta com a mão para o lugar, me fazendo olhar para trás. Tento ao máximo ignorar os bandidos que estão me secando na maior cara dura — Já trago a coca-cola.

Assinto com um menear de cabeça e ele vira de costas. Vou até o freezer, puxo a tampa para cima e inclino meu corpo para a frente, mas tenho um pouco de dificuldade para pegar a cerveja, porque está bem no fundo, então me inclino o máximo que posso, quando sinto uma mão em minha cintura — quase na minha bunda — e a outra ao lado da minha no refrigerador. Olho para trás e paraliso ao me deparar com o Pardal, com sua pose imponente, acabo o encarando demais, completamente sem fala. 

Pela primeira vez, me permito observar cada um dos seus traços, a pele mais ou menos no mesmo tom da minha, marronzinha, o peito desnudo e cheio de tatuagens, cabelos cacheados, um pouco grandes, um cavanhaque que lhe deixa com um ar sério e, ao mesmo tempo, de cafajeste, e segura uma camiseta no ombro esquerdo. Até tento abrir a boca para tentar dizer algo, mas não consigo. Só o vejo arqueando as sobrancelhas, como se esperasse que eu falasse.

Leia este capítulo gratuitamente no aplicativo >

Capítulos relacionados

Último capítulo