Você marcou em minha vida

Viveu, morreu

Na minha história

Chego a ter medo do futuro

E da solidão

Que em minha porta bate...

(Tim Maia – Gostava tanto de você)

Maio de 2018

Laís

Dentre a lista das coisas que eu mais queria na vida, me formar vinha bem no topo, em um imutável primeiro lugar. O plano parecia, a princípio, bem simples: entrar na faculdade aos dezenove e sair dela devidamente formada, com o meu tão sonhado diploma de Veterinária, ao final de 10 semestres, enquanto eu me virava aos fins de semana em bicos para levantar uma grana e conseguir me sustentar. Eu não vinha de uma família rica, mas minha mãe sempre fizera de tudo para que nada faltasse a mim e a minha irmã, o que incluiu abrir uma caderneta de poupança para cada uma de nós, quando ainda éramos crianças, e fazer todo um esforço para depositar um dinheirinho mensal, já com o foco em nossas faculdades. Era como se, de alguma forma, ela já soubesse que não estaria mais conosco quando este momento chegasse. O problema é que eu tinha escolhido um curso que não existia nas poucas universidades próximas à cidade pequena onde morávamos, e isso obrigou-me a fazer uma mudança radical para o Rio de Janeiro. Mesmo conseguindo um trabalho para os finais de semana, os custos eram muito altos com mensalidade, livros, aluguel e demais despesas e, se não fosse a grana da poupança, eu não teria de forma alguma como me manter.

E era por dar muito valor a todo o esforço feito pela minha mãe para juntar aquele dinheiro que eu me sentia tão mal quando acontecia de eu fazer coisas como naquele momento: matar uma das aulas do turno da noite, a duas semanas das provas de final de semestre (o penúltimo para que eu enfim conseguisse me formar), para me enfiar em uma bendita balada.

— É meu aniversário, Laís! Melhora essa cara! — Manuela praticamente gritou enquanto empurrava para mim a latinha de Coca-Cola que o garçom acabava de deixar em nossa mesa.

Manu era a grande culpada por aquele meu desvio do bom caminho. Tínhamos nos conhecido uma semana antes do início das aulas do meu primeiro semestre da faculdade. Dividíamos um apartamento. No início éramos três, mas a outra menina, Giovana, concluíra os estudos há alguns meses, o que fez com que abríssemos uma vaga à procura de alguém para nos ajudar a pagar o aluguel. Aparentemente, a coisa já estava resolvida.

— Sua irmã podia ter vindo com a gente — Manu comentou enquanto mexia distraída no celular.

Minha irmã... Esta era outra coisa que me deixava ainda mais angustiada do que a rebeldia em matar aula. Ela tinha me ligado há poucos dias, com a pergunta inusitada a respeito da vaga no meu apartamento, dizendo estar interessada. Insisti para saber os motivos da súbita decisão de se mudar de cidade, mas tudo o que ela me dissera foi que tinha conseguido um emprego e que se mudaria em alguns dias. Tinha chegado há apenas algumas horas, eu estava na faculdade quando recebi seu telefonema informando que ela e Isabel já estavam no apartamento e que tinha encontrado a chave reserva que deixei escondida para ela embaixo do tapete. Eu estava bem ansiosa para chegar em casa e, cara a cara com Letícia, perguntar novamente que loucura tinha sido aquela.

A verdade é que Letícia andava muito estranha de um ano para cá. Com isso, acabamos nos afastando um pouco, a frequência dos telefonemas – que antes eram diários – diminuiu, juntamente com as minhas visitas. Como eu trabalhava aos finais de semana, já há algum tempo que voltava para casa apenas algumas vezes ao ano. Com isso, acabei espaçando ainda mais as visitas. Estávamos em maio e eu não a via desde o último Natal.

— É sério, Laís, poderia ao menos fingir que não está odiando comemorar o aniversário da sua melhor amiga?

Ela não merecia, mesmo, a cara feia que eu sabia que estava fazendo. Manu e eu éramos muito diferentes e, em um primeiro momento, achei que jamais seríamos amigas. Contudo, acabei aprendendo a gostar dela já nas primeiras semanas de convivência. Agora, eu já amava tanto aquela chata que dava a ela o poder de me convencer a, em uma sexta à noite, trocar uma aula de Epidemiologia por uma balada, mesmo eu não sabendo dançar e não gostando de beber. E uma balada cara, para completar! O preço da entrada ali faria um considerável rombo no meu orçamento do mês.

— Eu só quero conseguir me formar... — repeti o mantra supremo da minha vida.

— E eu só quero comemorar o meu aniversário de vinte e três anos ao lado da minha melhor amiga, é pedir demais?

— Bem... eu estou aqui, não estou? — Abri a lata e a virei sobre um copo, olhando enquanto o líquido de cor escura caía. O som das batidas eletrônicas fazia a minha cabeça doer.

— Está, mas parece que veio a um velório e não a uma festa. Sei que não gosta de dançar, mas por que não vai procurar uns boys e dar uns beijos na boca? Na boa, amiga, tem tempo que você não fica com ninguém. Uns beijinhos vez ou outra não fazem mal pra ninguém.

— Boys pra dar uns beijinhos, Manu? Sério? Você me trouxe para uma boate LGBT!

— Tem sempre algum hetero perdido por aqui.

— No caso, nesta noite, este hetero sou eu.

Ela deu de ombros, levantando-se para abraçar um grupo de amigos que chegava. Eram cinco pessoas: três rapazes e duas garotas, e eu sabia que ainda teriam muitos outros a caminho. A Manu era bem sociável e cheia de amigos, e eu ainda não conhecia a maior parte deles. Segundo ela, eu era uma amiga ausente que só pensava em estudar. E, bem... havia bastante verdade nisso.

Como previsto, mais pessoas foram chegando e logo a mesa que eu a princípio julgava ser enorme foi ficando pequena. Passada cerca de uma hora, Manu decidiu que havia bebido demais e que precisava ir dançar. Vários de seus amigos a acompanharam e os que ficaram conversavam entre si. Eles até tentaram me integrar. Quando descobriram que eu fazia Veterinária e que era eu a amiga-inteligente da Manu, que passava cola para ela nas provas e colocava seu nome nos trabalhos em dupla que sempre fazia sozinha, começaram a falar sobre seus cachorros, o que seria um assunto bem agradável se fosse apenas aquela clássica troca de histórias divertidas sobre as travessuras dos bichinhos de estimação. Contudo, as pessoas enxergavam estudantes de Medicina Veterinária como se nós carregássemos na testa um letreiro escrito “Consultas Grátis”. O fato é que, depois da quinta latinha de refrigerante a minha bexiga doía, dando-me a desculpa perfeita para fugir dali por ao menos alguns minutos. Apanhei a minha bolsa e me levantei, anunciando que iria ao banheiro.

Precisei atravessar toda a extensão da pista de dança, no caminho recebendo duas cantadas de mulheres (uma delas eu poderia jurar que era uma das amigas da Manu). Até que, enfim, cheguei ao banheiro. Após terminar o que precisava fazer, lavei as mãos devagar, retoquei o batom sem o mínimo de pressa e saí. Porém, não voltei para a mesa. Segui reto por uma escada que levava ao piso superior, um mezanino com vista para a pista de dança. Debrucei-me no parapeito e deixei a minha mente vagar. Por um momento, pensei no quanto gostaria de conseguir deixar um pouco de lado o peso das responsabilidades, relaxar e seguir os conselhos da Manu: me divertir, dançar, beijar na boca e me permitir viver a minha vida e juventude. Eu tinha apenas vinte e três anos, afinal de contas. Nem mesmo a minha irmã Letícia que já tinha uma filha era tão insuportavelmente responsável como eu. Ela era uma ótima mãe e, ainda assim, não tinha aberto mão de viver e se divertir sempre que podia.

Pensar na minha irmã de repente fez o meu peito se apertar. Eu sentia muito pelo nosso afastamento e deveria estar feliz agora que ela vinha morar comigo, pela chance de resgatar nossa proximidade da vida inteira e de estar enfim mais presente na vida da minha sobrinha. Contudo, por qualquer motivo, naquele dia eu não estava me sentindo bem. Meu coração estava aperado, angustiado, como eu não me lembrava de ter me sentido em nenhum outro momento da vida. Algo me dizia que Letícia não estava bem. Há tempos que eu tinha tal sensação, mas esta se tornara mais forte quando ela me ligou perguntando se poderia ir morar comigo e com a Malu. E fora ficando ainda mais intensa no decorrer daquele dia. Queria muito ir logo para casa, dar um abraço apertado nela e olhar nos olhos dela para perguntar se estava tudo bem. Talvez fosse coisa de irmãos gêmeos. Ou meramente uma neura minha, intensificada pelo stress de final de período da faculdade.

De repente, fui tomada pela sensação de estar sendo observada. Aflita, virei o rosto para o lado, vendo rapidamente a silhueta de um homem que parecia olhar para mim. Mas não consegui ter tal confirmação porque nesse momento um grupo de pessoas parou conversando em um círculo exatamente entre nós dois. Ainda tombei a cabeça para o lado, tentando enxergá-lo, mas apenas o avistei já de costas, aparentemente conversando ao celular enquanto descia as escadas. Tentei segui-lo com os olhos, mas, ao chegar lá embaixo, ele se misturou à multidão. Em meio às luzes piscantes da casa noturna, eu não tinha conseguido ver o rosto dele pelo breve momento em que o havia avistado. Mas algo nele havia chamado a atenção. Talvez os braços com os músculos bem torneados, o porte, a altura, sei lá... Ou pela sensação que tivera, de que ele estava me observando.

Porém, que diferença isso fazia? Ele provavelmente era gay, estávamos em uma balada LGBT, no fim das contas. E, ainda que não fosse, eu definitivamente não seria uma boa companhia naquela noite. Não quando a minha mente estava na aula de Epidemiologia.

Ou eu queria que estivesse. Na verdade, eu não conseguia parar de pensar na minha irmã.

Ela sabia que eu iria ao aniversário da Manu e, com isso, dissera para eu ficar tranquila, que não me esperaria acordada e que conversaríamos no dia seguinte, sábado, antes que eu fosse para o trabalho. Mas ainda era cedo, então, se fosse agora para casa, provavelmente chegaria antes que ela fosse dormir. Não queria abandonar a Manu em um dia importante, mas conversaria com ela no dia seguinte e sabia que ela compreenderia. Se não compreendesse, eu compraria o seu perdão assumindo alguns dias dela na faxina.

Foi com este pensamento que eu enfiei a mão na bolsa e peguei o celular, na intenção de chamar um táxi pelo aplicativo. Olhando para o visor, deparei-me com nada menos que doze chamadas não atendidas. Chequei os registros, vendo que era o número da minha irmã. Minhas mãos tremeram quando me veio o pensamento de que algo poderia ter acontecido a Isabel e apressei-me em retornar a ligação. Uma voz feminina atendeu, mas não era a de Letícia. Em um misto de calma e frieza, a mulher me informou o que havia acontecido.

Com a mão livre, apoiei-me na barra de metal do guarda-corpo, sentindo minhas pernas tremerem e tudo ao meu redor começar a girar.

*****

Em toda a minha vida, nada nunca havia me destruído tanto quando enterrar a minha mãe. Porém, eu agora descobria que poderia existir algo tão avassalador quanto. A ideia de que eu poderia perder a minha irmã gêmea me tirou o chão, causando-me uma dor tão dilacerante quanto a da perda da minha mãe. E eu estava a um passo de ver esse pesadelo se tornar real.

Quando cheguei ao hospital, fui recebida pela notícia de que o estado de Letícia era grave. O carro dela se desgovernara, invadiu o acostamento e de chocou em cheio contra a mureta de segurança. Ela estava sem cinto. Pelo que me informaram, o estado do veículo tornava um verdadeiro milagre o fato de ela ainda estar viva. Porém, agora ela precisaria de outro milagre ainda maior para sobreviver. Eu não sabia se milagres costumavam acontecer duas vezes em sequência para a mesma pessoa.

Em um primeiro momento, desesperou-me a ideia de que Isabel poderia estar com ela no carro. Mas não estava. Manu me acompanhou até o hospital e, de lá, foi para o nosso apartamento e me ligou logo que chegou, informando que a menina estava lá, com uma babá. Eu me perguntava para onde Letícia teria ido, já que não conhecia nada da cidade. Se fosse a um mercado, farmácia ou qualquer coisa do tipo, certamente teria levado a filha junto, ao invés de contratar uma babá. Mas esta era uma dúvida que poderia esperar para ser resolvida. No momento o que mais importava era que minha irmã saísse de lá sã e salva.

Passei a noite no hospital, buscando todas as informações que eu poderia ter. Pela manhã, percebendo que não havia o que fazer ali e já vencida pelo cansaço, enfim fui para casa.

Ao entrar no apartamento, fui recebida pelo silêncio. Ainda não eram nem sete da manhã, por isso achei que Manu estivesse dormindo. Contudo, surpreendi-me ao vê-la saltando do sofá logo que fechei a porta.

— E aí, como ela está?

Não consegui evitar respondê-la com outra pergunta:

— Por que estava dormindo no sofá?

— Não estava dormindo. Estava lendo um pouco. — Apontou para o livro caído no chão. — Que bom que voltou para casa, achei que fosse passar a noite no hospital.

Acabei sorrindo.

— Sinto te informar, mas foi o que aconteceu. São seis e meia da manhã, Manu. Aparentemente você dormiu, sim, no sofá, e nem se deu conta.

— Nossa, já? Bem... talvez eu tenha cochilado um pouco. Mas, responda, como está  sua irmã?

O breve sorriso em meus lábios foi desfeito quando fui novamente lembrada da realidade. Fui até o sofá, sentando-me ao lado da minha amiga.

— O estado dela é grave. As chances são pequenas, e é muito provável que, caso sobreviva, tenha sequelas.

— E o que o seu coração de gêmea diz?

— Que, com ou sem sequelas, eu não posso perder a minha irmã.

— Não vai perder, então.

Naquele momento, esforcei-me para me agarrar ao otimismo da minha amiga. Perder Letícia definitivamente não era uma opção para mim. Isabel não podia perder a mãe. Eu não podia perder a minha irmã. O mundo não podia perder uma pessoa tão maravilhosa.

Estava prestes a cair no choro, mas respirei fundo e forcei-me a me manter forte. Precisava ser racional e prática diante da situação.

— E a tal babá? — perguntei. Sabia que não era nenhuma amiga ou conhecida da Letícia, porque ela não conhecia ninguém na cidade além de mim. E tive tal confirmação quando Manuela respondeu.

— Ela trabalha em uma firma. Não conhecia a sua irmã. Aliás, conheceu apenas ontem, quando chegou aqui para o trabalho.

— E Letícia não disse nada a ela, sobre para onde estava indo?

— Não. Tentei tirar algumas informações dela, mas tudo o que fui informada é que ela foi contratada por três horas. Estava furiosa pelo atraso e exigiu um dinheiro adicional por isso. E que sua sobrinha é uma peste, mas isso eu não confirmei porque ela já estava dormindo quando eu cheguei. Mas Letícia não disse a ela para onde ia.

Nada que fugisse do esperado. Deixando o assunto para lá, decidi fazer algo mais importante: ver minha sobrinha. Antes, dei um abraço em Manu e agradeci por todo o apoio, aproveitando para também me desculpar por ter acabado com o aniversário dela. Ela disse que comemoraríamos em outra ocasião, e eu agradeci a Deus por ter colocado uma amiga tão maravilhosa na minha vida. Levantamo-nos e ela seguiu para o quarto, para dormir um pouco. Entrei no quarto à frente do dela, que há até dois dias estava vago e agora seria da minha irmã. Esperava que ela retornasse logo para ocupá-lo.

Uma tênue claridade entrava através das frestas da cortina branca, e eu pude ver as caixas espalhadas pelo chão. As coisas de Letícia e Isabel tinham chegado dois dias antes, junto a uma firma de mudança. Duas malas e uma mochila infantil também estavam no chão, com suas bagagens aparentemente intocadas. Na cama de casal, um pequeno embrulho de cobertas se movia suavemente, exibindo a respiração de alguém que estava em um sono pesado. Aproximei-me devagar, sentando-me na ponta da cama e afastando delicadamente uma mecha do cabelo ondulado e loiro-escuro, que cobria o rostinho redondo. Bel estava ainda mais linda do que da última vez que a tinha visto, há seis meses, e tinha crescido bastante também. Já estava, agora, com quatro anos e... três meses. Fiz a conta rapidamente, me assombrando com o fato de que já tinha se passado tanto tempo desde que ligara para ela, pedindo mil perdões por não poder ir à sua festinha de aniversário. Por mais que eu soubesse que não poderia mesmo ter ido por conta do trabalho, senti-me péssima ao pensar em como a vida passava e acabávamos perdendo momentos importantes. Eu não me lembrava da última vez que tinha parado para brincar ou mesmo conversar de verdade com a Isabel. O último Natal que passamos juntos tinha sido um verdadeiro caos. Passamos todos juntos na casa do meu pai. A atual esposa dele tinha dois filhos pequenos e extremamente irritantes e agitados, que gritavam e corriam o tempo todo. A mãe era do tipo desagradável, que não fazia qualquer questão de se mostrar simpática com as filhas do marido. Além disso, tinha outros convidados por lá, amigos dela e do meu pai. Passei a noite inteira fugindo das cantadas de um velho chato e inconveniente e mal consegui conversar com a minha irmã ou curtir a minha sobrinha. Lembro que Letícia chegou a comentar que tinha algo importante para me contar, mas por fim acabou desistindo, percebendo que não havia clima em meio àquela bagunça.

Levei um susto ao ouvir o som da campainha. Ainda não eram nem sete da manhã e, na atual situação, meu primeiro pensamento foi o de que seriam notícias ruins. Levantei-me em um pulo e corri em desespero até a sala, abrindo a porta sem ao menos olhar no olho mágico para ver quem era, deparando-me com um homem jovem, que devia ter algo em torno da minha idade, talvez um pouco mais. Meu coração acelerou por eu pensar que talvez se tratasse de um médico vindo pessoalmente anunciar uma tragédia, mas logo lutei para me desvencilhar de tais pensamentos ao me dar conta de que não era desta forma que essas notícias costumavam ser passadas.

Fiquei calada, olhando aquele homem diante de mim e aguardando, tensa, que ele dissesse alguma coisa. Senti os nós dos dedos doerem e só então me dei conta de que apertava com força o batente da porta.

Para aumentar ainda mais a minha tensão, ele também se manteve calado, nitidamente me analisando. Pude perceber uma expressão de surpresa em seu rosto e, instantes depois, ele sorriu. Um sorriso que me pareceu meio debochado.

— Sabia que te conhecia de algum lugar... — ele resmungou, causando-me uma surpresa ainda maior.

— O que deseja? — perguntei, por fim. Já tinha percebido que não era alguém que ia me levar alguma notícia da minha irmã, mas isso não fez com que eu me acalmasse. Mil coisas se passaram pela minha cabeça e eu já começava a arquitetar como faria para me defender se aquele estranho fosse algum maníaco ou coisa parecida. A gente vê tanta coisa pela TV, e eu tinha ainda tanto medo da violência urbana que vivia meio neurótica o tempo inteiro. Já me arrependia profundamente por ter aberto a porta sem checar antes quem era. Mas, agora, já estava feito. Precisava de sangue frio para conduzir a situação caso o pior acontecesse.

Ele deixou de sorrir, parecendo até mesmo meio irritado. Meu medo aumentou um pouco mais.

Mas nenhuma tragédia que eu sequer pudesse imaginar era pior do que a frase que ele disse a seguir.

— Sem rodeios, você sabe muito bem o que vim fazer aqui. Vim buscar a minha filha e vou levá-la comigo.

Minha mente deu um giro tão rápido que quase me fez cair. Segurei o batente da porta com ainda mais força, tentando encontrar conexão entre tudo o que eu ouvia. Olhei-o com mais atenção. Tinha visto apenas uma foto do pai biológico de Isabel, tirada em uma festa (a mesma em que ela fora concebida). Ele estava ao fundo, distraído, em meio a outras pessoas. Era alguns anos mais jovem, mas não havia mudado muito. Era mesmo ele. E, ainda que restasse qualquer dúvida, Isabel era muito parecida com ele. Os mesmos traços, o mesmo nariz, os mesmos olhos verdes.

Mas que diabos estava acontecendo? Até onde eu sabia, ele sequer tinha ciência de que era pai. Por que estava ali agora, na minha casa, exigindo que eu lhe entregasse a criança?

Respirei fundo e tentei me manter firme na resposta, por mais que por dentro minhas emoções estivessem no mais completo colapso.

— Eu não sei como você conseguiu o meu endereço, nem o que está fazendo aqui, mas...

— Para com esse teatro. Você mesma deixou o endereço no e-mail.

Eu? E-mail? Ainda levei mais alguns segundos até fazer a conexão. Claro, ele achava que eu era a Letícia. Pessoas com irmãos gêmeos idênticos já deviam estar acostumados a tal confusão, mas eu já morava há tanto tempo longe de Letícia... E, mesmo quando morávamos juntas, ela há anos usava os cabelos alisados e tingidos, além de estilos diferentes de roupas, o que tornava bem mais difícil alguém nos confundir daquela maneira. Mas... por que minha irmã tinha enviado um e-mail para ele, depois de tanto tempo? E ainda dando o meu endereço?

Porém, aquele não era o ponto mais importante. Aquele homem achava mesmo que ia chegar ali e levar Isabel com ele? Ele era um total desconhecido e de forma alguma eu permitiria que chegasse perto da minha sobrinha. Se minha irmã não estava ali para proteger a filha, eu faria isso por ela.

— E com que direito ou razão você acha que vai chegar aqui na minha casa e eu vou permitir que você leve a menina?

— Você está doente. Esta não deveria ser razão suficiente?

Senti o ar me faltar. Eu estava doente?

Letícia estava doente?