Capítulo dois

“Mesmo quando tudo pede um pouco mais de calma

Até quando o corpo pede um pouco mais de alma

Eu sei, a vida não para

Enquanto o tempo acelera e pede pressa

Eu me recuso, faço hora vou na valsa

A vida é tão rara

Enquanto todo mundo espera a cura do mal

E a loucura finge que isso tudo é normal

Eu finjo ter paciência

E o mundo vai girando cada vez mais veloz

A gente espera do mundo e o mundo espera de nós

Um pouco mais de paciência

Será que é tempo que lhe falta pra perceber

Será que temos esse tempo pra perder?

E quem quer saber?

A vida é tão rara

...tão rara’

 (Lenine – Paciência)

Laís

— Vai... embora... daqui. — Minha voz saiu mais pausada e baixa do que eu achei que seria capaz. Provavelmente um artifício encontrado por mim para não gritar a ponto de acordar o prédio inteiro.

Aquele homem diante de mim... como era mesmo o nome? Que diabo, eu não lembrava! ...permaneceu ali, parado, olhando-me com uma expressão que deixava clara sua total falta de intenção de ir embora. Seus olhos verdes me olhavam de forma firme e desafiadora.

Num surto, tentei fechar a porta, mas ele a segurou, forçando-a até finalmente conseguir entrar, me empurrando junto para dentro da sala. Em seguida fechou a porta e eu voltei a temer que ele tentasse algo contra mim e planejasse levar Isabel à força. Não ia permitir aquilo. Ele teria que me matar antes.

— Já disse que não vou sem levar a menina. Quem você pensa que é para me impedir?

Quem eu era? Como Letícia não estava ali, eu só tive uma resposta a dar:

— Eu sou a mãe dela! — Mentiras não eram a forma mais eficaz de se conseguir qualquer coisa. Porém, o que mais eu poderia fazer? Se dissesse a verdade, sendo ele o pai da Isabel, teria grandes chances de conseguir levá-la com total apoio da justiça

— Você não está em condições físicas nem financeiras de cuidar de uma criança.

Mas do que ele estava falando? Como assim Letícia não tinha condições? Como assim estava doente? Eu não podia perguntar a ele sem confessar a minha mentira, mas precisava dar um jeito de descobrir o quanto antes.

— Isabel já tem quatro anos. Você nunca se interessou em conhecê-la, e agora quer tirá-la de mim?

— Eu nunca me interessei? — ele gritou, completamente alterado. — Você nunca me permitiu saber que eu era pai.

— E quem te garante que ela seja mesmo sua filha?

Ele riu, de forma descontrolada.

— Você me manda um e-mail contando da menina, eu mobilizo advogados, um laboratório de confiança e o inferno para fazer o teste de DNA e depois de um resultado positivo você quer voltar atrás?

A coisa parecia estar bem mais complexa do que eu imaginaria a princípio. Organizando mentalmente as informações que eu tinha até o momento: Letícia estava com alguma doença e, por isso, tomara a iniciativa de fazer aquilo que sempre jurara que jamais faria: procurou pelo pai de Isabel. Mandou um e-mail para ele contando sobre a filha, permitiu que ele mandasse fazer um teste de DNA e de alguma forma o deixou acreditar que poderia ficar com a menina. Por que tinha feito aquilo? Eu era a irmã dela, oras! E, mal ou bem, tínhamos um pai. Não é como se ela estivesse completamente sozinha, sem ninguém para cuidar de Isabel caso viesse a acontecer alguma coisa com ela.

Pensando melhor... será que não mesmo? Nosso pai não tinha criado nem as próprias filhas. E, com relação a mim... eu andava tão ausente da vida delas, que não poderia culpá-la por não confiar a mim algo tão importante.

— Em algum momento eu lhe disse que deixaria que levasse a minha filha de mim? — arrisquei, já temendo a resposta.

— Não seja sonsa. Até ontem à noite, este era o trato.

Ontem à noite... Aquela maldita noite. Eu não sabia o que tinha acontecido, mas seja lá o que fosse estava ligado ao acidente dela.

Pensei no que diria a seguir, mas travei ao ouvir a voz de Manuela.

— Laís...

Virei-me rapidamente em direção ao corredor de onde Manu vinha, esfregando os olhos. Provavelmente tinha acordado com os gritos daquele babaca. Quando ela percebeu a presença dele ali, parou, confusa. Percebi que ameaçou dar um sorriso, na certa imaginando coisas que não existiam. Só a Manuela mesmo para achar que eu teria cabeça para encontros depois do ocorrido com a minha irmã.

Antes que ela pudesse dizer qualquer coisa, eu a “corrigi”, falando subitamente:

— A Laís foi embora! — Ela fez cara de quem não entendia do que eu estava falando, então prossegui, forçando para ela o olhar mais cúmplice que eu conseguiria demonstrar. — A Laís precisou ir embora, Manu. Só fiquei eu aqui.

— Certo... A Laís saiu e só ficou você...

— Sim, Manu. Eu, a Letícia! Bebeu demais na festa de ontem e não está me reconhecendo, é isso?

Tirando eu, que era toda certinha, a Manu só tinha uns amigos bem loucos. Estavam sempre se envolvendo em todo tipo de confusão. Por conta disso, minha amiga acabava sendo bem esperta, do tipo que analisava situações e embarcava em histórias sem fazer maiores perguntas. E foi exatamente o que ela fez naquele momento.

— É, eu exagerei um pouco na bebida esta noite. Foi mal, Letícia. — Ela olhou para o visitante, percebendo que ele era a fonte dos problemas e das mentiras do momento. — E você é...

— Alguém que já viu mais do que devia. — Voltei a olhá-lo, percebendo uma expressão enojada em seu rosto. — É neste tipo de ambiente que você pretende criar a minha filha?

Aquele “minha” me irritou mais do que qualquer outra coisa. Só porque um dos espermatozoides dele concebeu uma criança cinco anos antes, não bastava para fazê-lo pai.

— O que quer dizer com “neste tipo de ambiente”?

— Não tente se fazer de desentendida. Eu te vi ontem naquele lugar.

Ainda levei alguns segundos para processar que lugar seria aquele. A noite tinha sido tão longa, que a comemoração do aniversário da Manu parecia pertencer a um passado bem mais distante.

A boate gay, era isso! Olhei para o contorno bem definido dos braços dele por baixo da jaqueta jeans, em seguida para os cabelos escuros e lisos e curtos. Era ele o cara que estava me observando no mezanino. E era isso, também, o que ele queria dizer com o “Sabia que te conhecia de algum lugar” dito logo que abri a porta. Ele estivera me observando lá por me achar familiar, provavelmente acreditara que eu era homossexual, e agora “confirmava” isso ao ver que eu dividia apartamento com outra garota. Se eu já o achava um imbecil pela forma como exigia levar minha sobrinha com ele, sua demonstração de preconceito fez com que eu o considerasse completamente desprezível.

— Se estava no mesmo lugar que eu, não deveria ser tão intolerante.

A expressão dele me disse que tomara minha resposta como uma ofensa. Ou, talvez, esta fosse apenas uma impressão minha. Já não me importava mais. Eu odiava aquele sujeito!

— Eu sou sócio daquela boate — ele se apressou em responder. — Temos várias pelo país.

— Então o dono de uma rede de boates LGBTs é homofóbico? — Voltei a olhar para Manu, que, enquanto falava, cruzava os braços diante do corpo e apoiava o ombro na parede do corredor. — Isso está ficando a cada minuto mais interessante.

— Eu só quero garantir que minha filha cresça em um ambiente saudável.

— Está vendo alguém doente por aqui? — Manu retrucou. Quase a abracei. Minha amiga sabia lidar muito melhor do que eu com situações como aquela.

No entanto, o imbecil olhou para mim e, com o esboço de um sorriso sarcástico nos lábios, respondeu:

— A verdade é que estou vendo, sim.

Engoli em seco, segurando a vontade de voar no pescoço daquele infeliz. Ao mesmo tempo, quis chorar e exigir que ele me explicasse aquela história de que Letícia estava doente. Mas não faria isso. Não colocaria tudo a perder. Estava tão desnorteada, que agradeci a Deus por Manu estar ali comigo e, percebendo o meu estado, ter tomado alguma iniciativa.

— Eu não sei o que você veio fazer aqui, cara. Mas se não quiser que eu chame a polícia, é melhor ir logo embora.

Não sei se foi a ameaça em si, a postura intimidadora a qual Manuela mantinha para falar com ele, ou mesmo por algum rastro de consciência de que estava passando dos limites. Talvez tenha sido uma mistura dos três fatores. Mas ele, enfim, decidiu ir embora, não sem antes me olhar diretamente nos olhos e fazer uma última tentativa:

— Pense bem no que está fazendo. A maior prejudicada de sua teimosia será a criança.

— Você não vai tirar a Isabel de mim — respondi, sustentando o olhar dele.

Ele apanhou um cartão de visitas no bolso de trás da calça e o estendeu em minha direção:

— Tome novamente o meu endereço para o caso de ter perdido propositalmente. Vou te dar mais três dias. Para que pense bem nesta sua nova decisão. É melhor resolvermos isso de forma consensual, não precisamos envolver advogados nisso.

Era uma ameaça. Mas eu não ia ceder diante disso.

— Não há nada o que pensar. Agora vá embora!

E ele foi. Mas não sem antes deixar o cartão de visitas sobre a mesa de centro. Saiu batendo a porta, com seus passos furiosos ecoando pelo corredor. Mentalmente esgotada, deixei-me cair sentada no sofá e cobri o rosto com as mãos, embora ainda me esforçasse para não chorar. Mais do que nunca, eu precisava ser forte. Senti que Manu sentava-se ao meu lado e levou a mão ao meu ombro. Descobri o rosto e enfim a abracei, buscando um pouco de força ao mesmo tempo em que agradecia:

— Obrigada por ter colocado aquele idiota pra correr.

— De nada, querida. Ninguém se mete com a minha garota.

Em qualquer outro momento eu acharia graça da brincadeira. Contudo, agora ela me remetia à conclusão a qual aquele babaca homofóbico tinha chegado. Isso só contribuiu para o meu ódio aumentar ainda mais.

Mostrando-se confusa, Manu pediu:

— Será que você consegue me contar quem é aquele cara? E que papo louco foi aquele de tirar a Isabel de você?

Deixei de abraçá-la e, embora tivesse segurado bem o choro, uma lágrima tinha escapado de um dos meus olhos e me apressei em passar a mão pelo rosto para contê-la. Respirei fundo e respondi:

— É o pai da Isabel.

Ela ficou em silêncio por alguns instantes, parecendo digerir a informação. Quando abriu a boca, achei que teria mais alguma dúvida ou questionamento a ser feito, mas o que ela fez foi um comentário bem inusitado:

— Sua irmã tem bom gosto pra bofes.

— Manu!

— Que foi? Sou lésbica, mas não sou cega.

— O cara é um imbecil. Ele quer levar a Isabel! E se ele descobrir que a Letícia está no hospital, vai acabar conseguindo.

— Entendi... Então agora você está se passando pela sua irmã.

— Foi a primeira ideia que me veio à mente.

— Sério que o cara foi namorado da tua irmã e não percebeu que não era a mesma pessoa?

— Eles não eram namorados. Eles se conheceram em uma festa, transaram e aí veio a Isabel. Apesar de terem amigos em comum e minha irmã saber onde encontrá-lo, ela nunca o procurou para contar da filha. Bem, na verdade, nunca tinha procurado há até algum tempo. Parece que muitas coisas mudaram nesses últimos meses. Ele falou alguma coisa sobre a Letícia estar doente. Eu preciso descobrir que doença é essa, mas não tenho como perguntar para ele. Se descobrir que a Letícia está no hospital, pode tentar ficar com a guarda da menina.

— Por que um juiz daria a guarda para um cara que nunca viu a filha?

— E por que daria para uma tia que mal ganha para pagar a sua parte no aluguel?

— Bem, se ele é realmente dono da Pride, ele tem mesmo grana para contratar os melhores advogados, além de argumentos para convencer qualquer juiz.

Isso não fez com que eu me sentisse nadinha melhor. Mas era grata pela Manu ser bem realista, porque realmente precisava me manter com os dois pés no chão. Precisava agir da melhor forma possível.

— E sobre descobrir o que sua irmã tem... — ela voltou a falar. — Talvez nas coisas dela você encontre algo.

A ideia me perturbou.

— Não vou mexer nas coisas da Letícia. Quando ela acordar, me contará tudo o que está acontecendo.

— Eu não quero te entristecer, amiga, mas... você já parou para pensar que ela talvez possa não acordar? E que, se ela está mesmo com uma doença, dependendo do nível disso, talvez tenha sido melhor para ela dessa maneira?

— Não parei para pensar nisso, Manu. E nem pretendo parar. Perder a minha irmã não é uma possibilidade na minha mente. Eu sei que ela vai se recuperar e seja lá com que doença ela esteja, eu ficarei ao lado dela e ela vai superar isso. Enquanto isso, vou cuidar para que Isabel fique bem.

— Certo. Mas... existe outra coisa na qual você deve pensar.

— Que seria...?

— Quem vai ficar com ela hoje.

— Como assim quem vai ficar com ela?

— Laís... por acaso esqueceu que precisa ir trabalhar?

Ok, eu realmente havia esquecido. E não tinha uma resposta para aquela primeira indagação. Manu também tinha um trabalho aos finais de semana. Sendo assim, o que eu iria fazer com Isabel? Ela estava dormindo e, por isso, eu ainda não tinha sentido de fato a responsabilidade de sua presença. Mas logo acordaria e eu precisaria colocar em prática todo um plano que eu sequer começara a arquitetar.

Mal pensei nisso e ouvi os passos baixinhos vindos do corredor. Manu e eu olhamos para lá, avistando a pequena menina de cabelos ondulados e olhos verdes. Esfregava as pálpebras com uma mão, enquanto a outra segurava um cachorro de pelúcia.

— Tia, tô com fome. — Foi a primeira coisa que ela disse.

Certo, eu precisaria alimentá-la...

Cuidar de uma criança englobava muitas coisas. E, naquele momento, eu sequer tinha noção da real dimensão disso.

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