“Mudaram as estações, nada mudou
Mas eu sei que alguma coisa aconteceu
Tá tudo assim, tão diferente
Se lembra quando a gente
chegou um dia a acreditar
Que tudo era pra sempre
sem saber que o pra sempre
sempre acaba...”
Renato Russo – Por enquanto
Fevereiro – 2014
Laís
Eu estava no carro quando o meu celular tocou. Tinha acabado de sair de uma loja de conveniência, onde fui fazer algumas compras necessárias para a mudança que faria em dois meses. Letícia sabia o quanto eu era, como ela mesma dizia, a “chata certinha” que não admitia a ideia de atender o celular enquanto dirigia e, exatamente por isso, eu sabia que ela jamais insistia caso eu não atendesse logo nos primeiros toques. Quando passou alguns segundos e o aparelho continuou a tocar, logo me veio à mente que seria alguma emergência. E foi pensando nisso que eu embiquei o carro na primeira calçada livre que encontrei. Estava em frente a um portão de garagem e, ainda que eu nem fosse sair do veículo e pretendesse passar poucos instantes ali, aquilo me deixou bem incomodada.
Ao atender, tive a confirmação de que realmente se tratava de uma emergência. Porém, era uma maravilhosa emergência que me fez sorrir.
Eu estava prestes a me tornar, oficialmente, a “tia Laís”.
Voltei a dirigir, dessa vez pegando um caminho diferente do que eu seguia inicialmente. Parti para o hospital, numa velocidade maior do que estava habituada, torcendo para que conseguisse chegar a tempo. Tinha prometido para Letícia, tantas e tantas vezes, que estaria com ela durante o parto. Mas o bebê decidiu que não queria me esperar. Veio de surpresa e veio rápido. Quando cheguei, a pequena menininha já havia nascido, duas semanas antes do previsto, pesando pouco menos de três quilos. Uma emoção indescritível tomou conta de mim quando entrei no quarto do hospital e avistei minha irmã na cama, segurando nos braços aquela criaturinha que já era tão amada. Aproximei-me devagar, olhando quase que hipnotizada para a minha sobrinha.
— Ela não é linda? — foi a primeira coisa que minha irmã disse.
Desviei os olhos do bebê para ela, pensando no quanto era estranho achá-la mais linda do que em qualquer outro momento da vida. Tinha o rosto extremamente cansado, os cabelos despenteados e olheiras enormes. Ainda assim, havia um brilho a mais em suas feições. Não havia em seus olhos nada além do mais puro e completo amor por sua garotinha. E isso era tão forte, que acho que qualquer um que a olhasse poderia perceber.
Letícia e eu éramos gêmeas univitelinas. Mas éramos tão diferentes, que nenhuma pessoa seria capaz de se confundir. Eu mantinha o meu cabelo natural castanho-claro, quase loiro, longo e ondulado. Já Letícia – ao menos até descobrir a gravidez – desde muito nova tingia os seus de um loiro bem claro e os alisava, mantendo-os em um corte mais curtinho e despojado. Ela sempre usava roupas mais curtas e abusava das cores, dos detalhes, dos decotes. Já eu, era sempre básica, amante da boa e velha combinação de jeans e camiseta. Ela curtia festas, agito... eu amava o silêncio, a companhia de um bom livro, e mantinha um foco bem direto nos meus estudos. Meu maior sonho era conquistar o meu diploma de Veterinária e dar muito orgulho para a minha mãe, ainda que ela já não estivesse mais conosco para presenciar tal conquista.
Foi impossível, ali, deixar de pensar no quanto ela estaria feliz com o nascimento de sua primeira neta.
Passei algum tempo em silêncio olhando para a bebê, até que voltei a olhar para Letícia e percebi algo de tristeza em seu rosto. Por mais que fôssemos, em personalidade, completamente opostas, nenhum laço nesse mundo poderia ser mais forte do que o de alguém que dividiu um útero com você. E era por isso que eu a conhecia melhor do que ninguém.
— Ei, Lê... O que foi?
— Acho que bateu o medo. De não dar conta de tudo sozinha.
— Você não está sozinha. Eu vou ficar contigo durante os primeiros dois meses, e depois voltarei para ficar com vocês em todos os fins de semana e feriados.
— Não é a mesma coisa, Laís. Nós nunca ficamos longe uma da outra.
Tentei me manter forte, mas meu coração pareceu quebrar diante daquela constatação. Se eu pudesse, agarraria Letícia pela mão e a levaria comigo, junto com sua bebê. Mas eu estava indo para outra cidade para dividir um micro apartamento com outras duas garotas que eu sequer conhecia, porque era tudo o que eu poderia pagar se queria que a grana da minha parte na herança da mamãe rendesse para me manter durante os primeiros anos de faculdade, até que pudesse conseguir um estágio remunerado. Uma ideia se passou pela minha cabeça e eu quase não a expus, pois já sabia qual seria a resposta.
— Já pensou em aceitar o convite do papai para ir morar com ele, ao menos por algum tempo?
— Tá louca, Laís? É lógico que não. Ainda mais com aquela mulher nova dele.
— A Cristine até que parece ser legal.
— Papai separou da Cristine, Laís. Tem umas três semanas. E já arrumou outra, claro.
Previsível. Algumas pessoas poderiam achar que o fato de não construirmos laços de amizade com as mulheres do nosso pai era implicância nossa, mas a verdade é que nenhuma delas ficava com ele tempo suficiente para isso. A Cristine tinha ficado por uns quatro ou cinco meses. Possivelmente a nossa mãe tinha sido o grande recorde dele, em um casamento que durara seis anos. Desde então, ele seguira à risca com suas “obrigações” de pagar nossas pensões até os dezoito anos (ele até quis prorrogar, mas nós não aceitamos) e nos visitar uma vez por semana ou a cada quinze dias.
Existia outra alternativa de ajuda – que na verdade também seria apenas a obrigação: o pai da criança. Mas já havia decidido não tocar mais no assunto, atendendo ao pedido da minha própria irmã. Tudo o que eu sabia do cara era que eles tinham se conhecido em uma festa, ambos bêbados. Uns amassos, uma transa sem compromisso e, agora, oito meses e meio depois, um lindo bebê sem pai. Sabia que Letícia tinha meios de encontrar o cara, através de amigos em comum, mas por qualquer razão optara por não fazer isso. Não tinha qualquer direito de julgá-la, mas me preocupava com o fato de minha irmã de apenas dezenove anos ter abandonado o sonho da faculdade de Letras e agora estar sozinha para cuidar, criar e sustentar uma criança. A parte dela da herança seguraria as pontas durante algum tempo, mas não duraria para sempre.
Começava a pensar se não seria o caso de eu adiar por alguns semestres o início da faculdade.
— Ei, Laís... — Letícia me chamou. Pela forma como me olhou, era como se fosse capaz de ler a minha mente. E não duvido que o fizesse. Às vezes eu também achava que conseguia ler a dela. — Promete que não vai desistir do seu sonho? Porque também era o da mamãe: nos ver formadas. Eu falhei nisso, mas você dará esse orgulho a ela.
— Como falhou, Lê? Tem só dezenove anos. Agora é muito difícil por causa da bebê, mas no futuro você pode...
— Para de me enrolar e promete, caramba!
Eu ri. Ela tinha acabado de ter um bebê, por que diabos estávamos discutindo o meu futuro acadêmico?
— Prometo, se você também prometer.
— Minhas promessas agora giram em torno da Bel, Laís.
Sorri, emocionada. Letícia havia decidido que apenas escolheria o nome do bebê quando nascesse, mas ainda assim tinha feito uma listinha de possibilidades. Dizia que olharia para o rostinho da criança e saberia qual combinaria. “Isabel”, porém, era uma das últimas opções da lista, praticamente entrara apenas para fechar os dez possíveis. Era como se chamava a nossa bisavó materna, falecida há mais de uma década e, por mais que a amássemos e sentíssemos sua falta, minha irmã dizia que seria estranho dar a um bebê um nome que nos remetia à nossa bisavó, que lembrávamos como uma velhinha de cabeça completamente branca. Porém, de repente, olhando para a minha sobrinha, aquele nome pareceu o mais perfeito possível. Ela tinha mesmo carinha de Isabel.
Abracei minha irmã, ambas olhando encantadas para a nossa menininha. Ali, em silêncio, fiz mais uma promessa. A de que, por mais que eu agora fosse morar e estudar em outra cidade, seria uma tia presente na vida dela.
Jamais imaginava que não seria capaz de cumprir tal promessa.
Você marcou em minha vidaViveu, morreuNa minha históriaChego a ter medo do futuroE da solidãoQue em minha porta bate...(Tim Maia – Gostava tanto de você)Maio de 2018LaísDentre a lista das coisas que eu mais queria na vida, me formar vinha bem no topo, em um imutável primeiro lugar. O plano parecia, a princípio, bem simples: entrar na faculdade aos dezenove e sair dela devidamente formada, com o meu tão sonhado diploma de Veterinária, ao final de 10 semestres, enquanto eu me virava aos fins de semana em bicos para levantar uma grana e conseguir me sustentar. Eu não vinha de uma família rica, mas minha mãe sempre fizera de tudo para que nada faltasse a mim e a minha irmã, o que incluiu abrir uma caderneta de poupança para cada uma de n
“Mesmo quando tudo pede um pouco mais de calmaAté quando o corpo pede um pouco mais de almaEu sei, a vida não paraEnquanto o tempo acelera e pede pressaEu me recuso, faço hora vou na valsaA vida é tão raraEnquanto todo mundo espera a cura do malE a loucura finge que isso tudo é normalEu finjo ter paciênciaE o mundo vai girando cada vez mais velozA gente espera do mundo e o mundo espera de nósUm pouco mais de paciênciaSerá que é tempo que lhe falta pra perceberSerá que temos esse tempo pra perder?E quem quer saber?A vida é tão rara...tão rara’(Lenine – Paciência)Laís— Vai
“Isabel, eu quero ser como vocêEsquecer e só fazer o que eu quiserSem sequer me preocupar por um segundoNo seu mundo ninguém pode entrarMas não faz mal, porqueIsabel só faz o que ela quer......Ela sabe o que ela querEla quer o mundo e quer sem demoraEla sabe o que ela querEla quer o mundo e ela quer agoraEla sabe o que ela quer...”(Capital Inicial – Isabel)LaísAquela tinha sido a decisão que mais me parecera coerente no momento. Agora eu pensava que, talvez, levar uma criança de quatro anos a um fast food às sete da manhã não era a mais saudável das atitudes. Mas o que fazer se na nossa geladeira não havia nada além de água, um pote de margarina e umas garrafa
“Nada sei dessa vidaVivo sem saberNunca soube, nada sabereiSigo sem saberQue lugar me pertenceQue eu possa abandonar?Que lugar me contémQue possa me parar?...Nada sei desse marNado sem saberDe seus peixes, suas perdasDe seu não respirarNesse marOs segundos insistem em naufragarEsse mar me seduzMas é só pra me afogarSou errada, sou erranteSempre na estradaSempre distanteVou errando enquanto o tempo me deixar passar.Errando enquanto o tempo me deixar.”(Kid Abelha – Nada sei)Laís— Quem sou eu?— Mamãe.— Isso! De novo! Quem sou eu?— Mamã
“Eu hoje joguei tanta coisa foraE vi o meu passado passar por mimCartas e fotografias, gente que foi embora.A casa fica bem melhor assimO céu de Ícaro tem mais poesia que o de GalileuE lendo teus bilhetes, eu penso no que eu fizQuerendo ver o mais distante sem saber voarDesprezando as asas que você me deuTendo a lua aquela gravidade aonde o homem flutuaMerecia a visita não de militares,Mas de bailarinosE de você e eu.Hoje joguei tanta coisa foraE lendo teus bilhetes, eu penso no que eu fizCartas e fotografias gente que foi embora.A casa fica bem melhor assim”(Paralamas do Sucesso – Tendo a lua)Novembro - 2017HeitorJá ha
“Nosso encontro aconteceu como eu imaginavaVocê não me reconheceu, mas fingiu que não era nadaEu sei que alguma coisa minha, em você ficou guardadaComo num filme mudo antes da invenção das palavrasAfinei os meus ouvidos pra escutar suas chamadasSinais do corpo eu sei ler nas nossas conversas demoradasMas há dias em que nada faz sentidoE os sinais que me ligam ao mundo se desligamEu sei que uma rede invisível irá me salvarO impossível me espera do lado de láEu salto pro alto eu vou em frenteDe volta pro presente”(Frejat – Túnel do Tempo)Maio – 2018Heitor— Irmão, será que você pod
“De você sei quase nadaPra onde vai ou porque veioNem mesmo seiQual é a parte da tua estradaNo meu caminho?Será um atalho?Ou um desvio?Um rio raso?Um passo em falso?Um prato fundo?Pra toda fome que há no mundoNoite alta que reveleUm passeio pela peleDia claro madrugadaDe nós dois não sei mais nada...”(Zeca Baleiro – Quase nada)HeitorEu sabia que Letícia havia me passado o endereço do tal apartamento onde ficaria em um dos últimos e-mails que trocamos. E, de fato, não demorei mais do que alguns minutos para encontra-lo pelo celular. Digitei no waze e segui para lá. Por ser um sábado, o trânsito estava ót
“O desertoque atravesseiNinguém me viu passarEstranha e sóNem pude verque o céu é maiorTentei dizer, mas vi vocêTão longe de chegarMas perto de algum lugarÉ desertoonde eu te encontreiVocê me viu passarCorrendo sóNem pude ver que o tempo é maiorOlhei pra mim, me vi assimTão perto de chegarOnde você não estáNo silêncio uma catedralUm templo em mimOnde eu possa ser imortalMas vai existir, eu seiVai ter que existirVai resistir nosso lugar...Solidão, quem pode evitar?Te encontro enfimMeu coração é secularSonha e deságua dentro de mimAmanh&at